Cumpre-se hoje o terceiro ano de ocupação militar do Iraque. Lançado em 20 de Março de 2003 o assalto àquele território, que não contou com qualquer mandato da ONU nem o apoio da UE (pese embora o lamentável apoio de países como Grã- Bretanha, Espanha, Itália e Portugal), foi fundamentado pela administração de George W. Bush sob o argumento do risco que representava o regime de Saddam Hussein, devido ao seu apoio às actividades terroristas da Al Qaeda e à existência de armas de destruição em massa.
Três anos volvidos os EUA não conseguiram apresentar qualquer prova das armas químicas (salvo das que eles próprios utilizaram), nem das ligações à Al Qaeda (fenómeno particularmente difícil dadas as características do antigo regime iraquiano: o mais laico de todos os regimes árabes), nem convencer o mundo que a acção militar que empreenderam produziu quaisquer benefícios para as populações iraquiana e americana (excepção serão os ganhos arrecadados por um reduzido número de “empresários” que sempre lucram com qualquer guerra).
Num cenário que muitos não hesitam em classificar como de guerra civil (veja-se a entrevista do ex-primeiro-ministro iraquiano, Iyad Allawi, à BBC) o presidente americano insiste em querer convencer a opinião pública americana e mundial que aquele país se encontra em melhor situação que antes do ataque (ver notícia da BBC).
Embora apenas tenha sido incluída entre as finalidades da ocupação depois de constada a impossibilidade de provar as acusações iniciais, a administração americana não tem perdido uma oportunidade para realçar a importância da democratização do Iraque, apesar de continuar por resolver o impasse na formação do governo resultante de eleições realizadas há cerca de 3 meses e o número de mortos apresentar a impressionante contagem de cerca de 34 mil civis iraquianos e cerca de 2 mil polícias da mesma nacionalidade, enquanto entre as forças de ocupação as baixas já ultrapassam os 2.500 soldados.
Os atentados perpetrados por grupos de resistentes começaram por ser dirigidos às forças de ocupação, mas pouco a pouco foram sendo reorientados para outro tipo de alvos, originando uma crescente tensão entre as duas principais comunidades religiosas – os xiitas, confissão muçulmana maioritária no território, e o sunitas, minoritários e tidos como principais apoiantes de Saddam. Após o atentado de 22 de Fevereiro de 2006, que teve como alvo o mausoléu do Imã Ali, em Samarra, as represálias exercidas pelos xiitas sobre templos e populações sunitas e a resposta destes, pode bem ser definido como um verdadeiro clima de guerra civil, particularmente mais acesso nas regiões onde se verifica alguma convivência entre as duas comunidades.
Sendo verdade que a rivalidade e o confronto entre estas duas correntes do islão não resultam da intervenção americana, não é menos verdade que a gestão desastrada que foi aplicada pelos americanos, quer durante o consulado de Paul Bremer (comissário americano encarregue pela administração Bush da governação do Iraque até às primeiras eleições constituintes), que se notabilizou pela aplicação de uma política de limpeza sectária da corrente sunita da administração, exército e polícia, quer sob a gestão de Iyad Allawi (xiita secular, líder de um dos partidos oposicionistas de Saddam e fonte ocidental de informação sobre as armas de destruição em massa).
Esta prática foi prosseguida pelo seu sucessor, Ibrahim Al Jafaari (xiita, líder de um dos principais partidos xiitas, o Dawa). Como seu resultado os movimentos de guerrilheiros terão registado grande afluência de sunitas, dos quais muitos com formação militar, transformado-se progressivamente em potenciais rivais de idênticas organizações paramilitares xiitas. Destas destaca-se o exército do Mahdi, liderado pelo clérigo Moqtada Al Sadr, que foi alvo do primeiro cerco a Fallujah.
Para além das consequências já relatadas, outras houve de grande repercussão com a invasão americana. Logo nos primeiros dias da entrada em Bagdad das forças de ocupação, órgãos de comunicação ocidentais reportaram o saque que foi perpetrado sobre as enormes riquezas arqueológicas que se encontravam guardadas nos museus locais. Sabe-se hoje que o próprio FBI chegou a deslocar para o local equipas de investigação, facto que poderá indiciar que este saque foi em parte executado por ocidentais, e cujos resultados permanecem por divulgar.
Igualmente preocupante, pelo menos à luz do direito internacional, é o julgamento de Saddam Hussein por um tribunal especial iraquiano, sob a acusação de crimes contra a humanidade. Esta opção é tanto mais estranha quanto os próprios americanos se encontram empenhados no julgamento, por um tribunal internacional, de outros criminosos acusados de idênticas práticas (como é o caso do julgamento dos crimes de que são acusados altos dirigentes sérvios), opção que será garantia de uma maior imparcialidade no processo, salvo se existirem receios que do acto venham a resultar revelações comprometedoras.
Fazendo fé nas declarações de responsáveis e analistas de vários quadrantes, a situação actual no Iraque é duplamente preocupante, uma vez que o risco de generalização de um clima de guerra civil é muito grande e que este poderá mesmo estar a ser fomentado pelos principais responsáveis pelo processo de democratização do território que ocuparam.
Se não vejamos (há semelhança do que aqui fiz):
- quem apresenta particular interesse numa rápida retirada das tropas estacionadas no Iraque?
- quem tem vindo a aumentar a pressão sobre o actual primeiro–ministro, Ibrahim Al Jafaari, e os partidos iraquianos para a resolução da crise em torno da constituição do próximo governo?
- quem, repetindo argumentos já utilizados para a invasão do Iraque, afirma que existem sérios riscos para a comunidade internacional oriundos do vizinho Irão?
Os recentes desenvolvimentos da crise iraniana, a que não é seguramente estranha a situação criada com o afastamento de Saddam Hussein, não pressagiam nada de particularmente tranquilo ou seguro para aquela região do globo. Sabendo a administração americana as dificuldades registadas em 2005 para manter o ciclo de renovação das suas tropas (desde a Guerra do Vietname, nos anos 60 e 70 do século passado, que os EUA não registavam semelhantes dificuldades na incorporação de novos militares), facto que inviabiliza a manutenção de duas frentes de guerra distintas e os crescentes sinais do anseio dos “falcões” da administração de George W. Bush de lançarem uma ofensiva sobre o Irão (tema que já abordei aqui) não será de estranhar que venham a pretextar o clima de guerra civil para retirarem o grosso das suas tropas do Iraque.
Num cenário desta natureza o futuro governo iraquiano arrisca-se a ter que assumir uma atitude idêntica à do seu congénere afegão (refugiado num qualquer “bunker” em Bagdad e fortemente protegido pelas poucas tropas americanas no local) o que transformará o Iraque em mais um país abandonado à sua sorte em nome dos interesses primários e imediatos do Império Americano.
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