quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

DUELO NA SÍRIA

Têm sido recorrentes na última semana as notícias sobre a localidade síria de Ghouta. Não há meio de comunicação ocidental que se preze que não o tenha apresentado em cabeçalho ou notícia principal, referindo essencialmente o número de mortos originado pela ofensiva das forças sírias contra um dos últimos bastiões da oposição.

Por contraposição a outras iniciativas que tiveram lugar na já longa guerra civil síria – sim, o que ocorre naquela região do Médio Oriente é uma guerra civil alimentada por disputas pela hegemonia regional e pelos ancestrais interesses geoestratégicos de russos e americanos – o que está agora a ser relatado como um genocídio perpetrado pelo regime de Bashar Al Assad não deverá ser muito diferente do resultado de muitas outras ofensivas levadas a cabo sob o alto patrocínio das potências ocidentais na região. Recordem-se as ofensivas contra o Daesh, na Síria e no Iraque, ou até as quase silenciadas operações sauditas no não menos martirizado Iémen e tenha-se uma ideia do real quadro na região.


É evidente que todas as baixas civis ou militares devem ser lamentadas, mas a nossa objectividade não pode ser sempre sacrificada em nome dos mesmos interesses, para mais num conflito e numa região onde estes têm assumido uma geometria cada vez mais ao sabor dos humores e da agenda norte-americana. Depois duma guerra Irão-Iraque, alimentada na sequência do derrube do Xá Reza Pahlavi por uma oposição liderada pelos ayatollah xiitas, de duas guerras contra o iraquiano Saddam Houssein, a última das quais quase irradicou um dos países artificialmente criados pelo acordo Sykes-Picot (pacto secreto entre os governos do Reino Unido e da França que, admitindo a hipótese de derrota e aniquilação do Império Otomano na I Guerra Mundial, definiu as respectivas esferas de influência no Oriente Médio e criou o actual mapa político da região), eis-nos agora a atravessar um período que poderá ser definido como de recomposição e reajustamento do intricado xadrez local e onde nunca pode ser esquecido o papel desestabilizador doutra criação artificial das potências ocidentais: o Estado de Israel.

Continuar a difundir a imagem de carniceiro de Bashar Al-Assad, como antes se fez com a de Saddam Housein, ou enfatizar apenas o papel do Irão ou da Rússia de Putin enquanto se esquece o da Arábia Saudita, o de Israel e dos EUA, apenas ajuda a alimentar os diferendos regionais e a dificultar qualquer solução. O fundamental desígnio de pacificação da Síria (como o de qualquer outra região ou conflito) não pode ser alcançado a partir duma visão enviesada da realidade que o tem alimentado, nem dos seus intervenientes directos e indirectos.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

O (DES)ACORDO ORTOGRÁFICO

Voltou esta semana ao Parlamento, por iniciativa do PCP e no Dia Internacional da Língua Materna (21 de Fevereiro), a polémica questão do Acordo Ortográfico e, como esperado o «Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico», embora durante o debate o PS, PSD, CDS e BE tenham admitido a necessidade do seu aperfeiçoamento, mas remetido para as conclusões duma Comissão de Avaliação de Aplicação do Acordo Ortográfico que deverão ser conhecidas daqui por uns meses.


Este resultado deixou o «PCP sozinho na defesa de desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico de 1990» (repare-se que transcrevi tal qual o moderno “suzinho”), que parece ter nascido dos interesses do sector editorial (se calhar pensavam que assim iriam beneficiar do vasto mercado brasileiro), nunca foi cabalmente debatido pela sociedade civil, ao qual muitos linguistas se opõem e nenhum dos outros países da CPLP ratificou.

Crítico desde a primeira hora desta idiosincrasia, quase me apetece reclamar como o saudoso Baptista Bastos (também ele um declarado opositor ao novo acordo) – não me tirem o “p” ao Baptista! – e não tenho qualquer dúvida que o facto de existirem já bom número de palavras homógrafas e homónimas não justifica que se criem mais com a regra da completa abolição das consoantes mudas que têm as especial relevância de fazerem falar...

Claro que, ao contrário das línguas mortas, as línguas vivas sofrem (e sofrerão) os efeitos do tempo e do seu uso, mas em resultado deste desconchavado acordo vigora uma situação de total confusão, onde umas pessoas escrevem sem respeitar o acordo, outras respeitando-o e um terceiro grupo (quiçá os maiores beneficiários desta trapalhada) misturando tudo.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

QUANDO AS BOAS NOTÍCIAS ESCONDEM A TRISTE REALIDADE

Voltámos esta semana a ouvir falar do bom desempenho da economia nacional com a notícia de que o «Produto Interno Bruto cresce 2,7% em 2017», dizendo-se mesmo que «Desde 2000 que a economia portuguesa não crescia tanto».

Saber que a «Economia portuguesa cresceu 2,7% em 2017, o ritmo mais rápido desde 2000» é uma notícia claramente positiva principalmente quando é o próprio INE que afirma no seu relatório que «[e]sta evolução resultou do aumento do contributo da procura interna, refletindo principalmente a aceleração do investimento...», confirmando a validade da tese há muito defendida sobre a importância do efeito multiplicador do consumo interno e que os neoliberais defensores da “austeridade-expansionista” tanto criticam e tanto contribuiram para delapidar.

Mas ninguém pode embandeirar em arco com a afirmação de que a «Economia cresceu 2,7% em 2017 à custa do investimento interno» quando o país continua a registar níveis de investimento preocupantemente baixos, nem será expectável qualquer inversão desta tendência enquanto se mantiver o peso excessivo dum serviço da dívida que outra coisa não é senão um mecanismo de transferência da riqueza nacional produzida para o exterior.


Continuar a defender a renegociação da dívida não é apenas uma necessidade da mais elementar justiça económica e social, é também algo de indispensável a quem quiser assegurar o futuro da economia nacional; sem demagogias nem falsos compromissos, o crescimento salutar do investimento de que continuamos a carecer (aquele que não se sustente em larga medida do recurso ao crédito) apenas poderá ocorrer quando se puser cobro ao processo de contínua transferência da riqueza proporcionado pelo sistema da dívida e nos termos em que este tem funcionado.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

LEGISLAÇÃO POR MEDIDA

Os últimos dias têm sido férteis em notícias reveladoras do estado a que chegou a produção legislativa. Não me estou a referir aos casos mais mediáticos que envolvem juízes e procuradores da República, antes a coisa bem mais prosaicas como a recente alteração legal que faz com que a «A partir de Maio os animais de estimação podem entrar em restaurantes», facto por si só que me levará a questionar a razoabilidade da manutenção da proibição de fumar nos mesmíssimos locais.

Talvez pior ainda que esta incongruência é a notíucia de que o «Governo negoceia portagens para salvar 700 empregos da PSA em Mangualde», na sequência destoutra onde o grupo «PSA avisa que fábrica de Mangualde está em risco de fechar devido às portagens».

Se a primeira situação parece configurar uma evidente incongruência entre a sanha com que se fazem aplicar outras regras sanitárias e o evidente laxismo agora autorizado, a segunda parece ainda mais grave porquanto configura uma surpreendente submissão aos interesses dum fabricante automóvel que pretende ver alterado o mesmo critério de classificação dos veículos para efeitos de cobrança de portagens que tantos condutores há anos reivindicam sem qualquer resultado.


Diga-se, em termos práticos, que o problema do grupo PSA consiste na aplicação duma regra absurda (altura do veículo ao eixo dianteiro) para efeitos de aplicação da tarifa de portagem. A regra agora objecto de reavaliação determina que uma viatura com altura superior a 110 cm no eixo dianteiro seja taxada pela classe 2, foi criada em tempos para exclusiva protecção de um outro grupo automóvel (VAG) que então produzia em Palmela o monovolume Sharam e assim se viu benefiado perante uma cocnorrência que apresentava modelos idênticos mas com mais alguns cêntimetros de altura sobre o eixo dianteiro.

As autoridades rodoviárias e os sucessivos governos que sempre fizeram orelhas moucas aos argumentos demonstrativos do absurdo deste critério, que constitui uma idiosincrática aberração nacional sem exemplo em qualquer outro país, preparam-se agora para o corrigir, não pelo reconhecimento da aberração ou do erro mas simplesmente porque outro interesse surge agora, mascarado sob o argumento da salvaguarda dumas centenas de postos de trabalho.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

O JUSTICIALISMO

Têm crescido os casos de investigação judicial relacionados com suspeitas de corrupção envolvendo empresários, figuras da política e até membros da magistratura, situação que pode ser encarada sob uma perspectiva positiva – a melhoria do ambiente social e a aparência de um efectivo combate a um dos grandes flagelos sociais e económicos – mas que tem igualmente revelado preocupantes sinais fragilidade, seja na aparente irrelevância de alguns casos, como foi exemplo o da suspeita de corrupção lançada sobre Mário Centeno, seja na forma como estes “casos” persistem em chegar ao conhecimento da imprensa.

Se nada deve abalar a eficácia do sistema judicial, menos ainda deve este servir para um julgamento precoce dos indiciados que em última instância funcionará sempre em desprimor da Justiça e benefício daqueles a quem o excesso de ruído ambiente protege do devido escrutínio.


Pior ainda é quando todo o processo de sensacionalismo parece estranhamente enviesado e é canalisado para a esfera do combate político, por intervenientes que, pobres de ideias ou de argumentos, procuram minar o campo adversário.

Se ninguém de boa fé parece negar a necessidade da isenção e probidade da Justiça, já o sentimento de equidade parece cada vez mais ferido e abandonado à sua sorte num contexto onde tudo o que interessa é eliminar os adversários a qualquer preço e por quaisquer meios. Continuando nesta via, perante a passividade e o silêncio quase geral, caminhamos a passos largos para um sistema justicialista e caudilhista que encerrará ainda mais o trilho já demasiadas vezes estreito do debate de ideias e da procura de soluções para os problemas económicos, ambientais e sociais que a todos afligem.

Demasiadas vezes assistimos à redução do debate político a um mero jogo de interesses donde invariavelmente tem emergido o fortalecimento dos interesses duma minoria económica e politicamente poderosa em detrimento dos interesses da vasta maioria das populações.