quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

OS SATÉLITES TAMBÉM SE ABATEM…

Finalmente, no passado dia 20 o Pentágono logrou mostrar ao mundo a superioridade da sua tecnologia anti-satélite.

A pretexto do risco que comportaria a queda no solo do satélite USA-193, dispositivo de espionagem lançado na órbita terrestre em Dezembro de 2006 e que por razões de avaria deixou a sua órbita geoestacionária, procedeu à sua destruição. As razões de segurança invocadas prender-se-iam com os riscos resultantes da exposição aos gases libertados do depósito de combustível, provocados pela presença de uma substância altamente tóxica: a hidrazina.

Esta aparente explicação e a grande ênfase dada ao factor de protecção e segurança das populações, embora louvável, não impede que se devam formular algumas questões pertinentes sobre esta decisão.

É do domínio público que ao longo das últimas décadas muitas têm sido as ocasiões em que outros satélites têm caído sobre a superfície terrestre, sem que isso tenha motivado idênticas preocupações às agora reveladas, tanto mais que o composto químico agora referido, misturado com oxigénio líquido ou com peróxido de hidrogénio, é usado desde a II Guerra Mundial como carburante para foguetes. É igualmente do conhecimento geral que a probabilidade de alguém ser atingido pela queda de um satélite, ou outro fragmento cósmico, é muitíssimo inferior à de sofrer um acidente de viação, o que aumenta o grau de estranheza perante a preocupação agora manifestada.

Ninguém negará a evidência da reacção de desagrado manifestada pelos militares e pelo governo norte americano quando em inícios do ano passado a China procedeu ao ensaio de um míssil balístico envolvendo também a destruição de um seu satélite, elevando assim a fasquia tecnológica no muito competitivo negócio da produção e comercialização de armamento e proporcionando um significativo impulso para o desbloqueamento de ainda maiores verbas públicas para o complexo militar-industrial.

Assim, apesar da relativamente reduzida novidade que constitui a utilização de um míssil do tipo SM3, instalado a bordo de uma fragata da classe Aegis, os EUA demonstraram ao mundo a operacionalidade do seu sistema de defesa anti-satélite enquanto parte integrante do antigo projecto da “guerra das estrelas”, que remontando ao período de Reagan as sucessivas administrações foram mantendo de forma mais ou menos encapotada.

Outras explicações para este acontecimento prendem-se com a hipótese dos EUA recearem que a tecnologia ultra-secreta usada no satélite espião agora abatido pudesse cair em mãos não recomendáveis, ou mais prosaicamente, com a hipótese daqueles usarem este acontecimento fabricado para desviar algumas atenções de outros problemas (veja-se a situação no Médio Oriente e as invasões do Afeganistão e do Iraque) que os militares não têm revelado capacidade para resolver.

Certo é que da realização de mais uma desnecessária demonstração de força não vão resultar quaisquer melhorias para a generalidade da população mundial, mas apenas um ainda maior prejuízo para as iniciativas de mediação pacífica de conflitos e um aumento dos gastos na investigação de maiores e mais eficazes meios bélicos.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

UM CONCRETO MAL-ESTAR

Contrariamente ao que sugere a SEDES no seu documento de análise da situação nacional o mal-estar geral está longe de se dever considerar difuso. Ele é bem concreto e os seus autores sabem-no!
Uma leitura mais atenta do documento revela que embora este aponte fundamentalmente razões de natureza social – a degradação da confiança no sistema político e a crise de valores de justiça e igualdade – estas têm subjacente um modelo de distribuição de riqueza desajustado e injusto. Desajustado porque ao fomentar a concentração da riqueza na posse de um número cada vez menor de cidadãos não proporciona aos restantes o estímulo e as perspectivas de melhoria social e económica que recompense o esforço socialmente necessário ao desenvolvimento colectivo; injusto porque não distribuindo minimamente a riqueza socialmente produzida, condena os que menos oportunidades tiveram a disporem de cada vez menores recursos.


É a este fenómeno, devidamente transposto para o universo empresarial, que se referiu Abel Pinto[1], nas Jornadas de Teologia promovidas pelo Instituto de Estudos Teológicos de Coimbra que actualmente decorrem naquela cidade quando refere a existência duma «...cultura de gestão assente no medo, na subserviência ao chefe e numa postura acrítica ao que se passa na empresa».

Só a interiorização de um clima de medo[2] pode justificar que um país que viveu na última geração um acelerado processo de democratização da sua sociedade registe hoje estruturas salariais como as que há umas semanas a revista VISÃO apresentou, onde se constata que os administradores das grandes empresas públicas e privadas nacionais recebem salários médios muitas (demasiadas) vezes superiores aos salários médios dos trabalhadores.

Estes dados, publicados no número 775 daquela revista, são confirmados num artigo do DIÁRIO DE NOTÍCIAS, que citando um estudo do Eurostat conclui que em «...Portugal, os 20% mais ricos recebem 6,8 vezes mais do que os 20% mais pobres», desigualdade que não só é a mais elevada dos países da EU como se encontra longe do país que nos segue[3] nesta triste comparação.

Mas tanto ou mais grave que o não reconhecimento político desta realidade são algumas das explicações que aqui e ali vamos lendo e ouvindo sobre esta calamidade, como a que recentemente avança um editorial do DIÁRIO DE NOTÍCIAS em que se afirma que a «...grande explicação para o fosso social português é a subqualificação de boa parte da nossa população (...) temos cerca de 30% de pessoas com o secundário completo ou mais e 70% com instrução abaixo dessa fasquia. Na Europa, a regra é o inverso: 70% da população com o secundário completo ou mais e apenas 30% subqualificada», para concluir pomposamente que «só a qualificação elimina as desigualdades sociais... [pois] ...os mais qualificados, por serem mais escassos, são valorizados mais do que noutros países em termos relativos ».

O editorialista não se fica sequer por este raciocínio, vai mais longe e assegura que a desgraça que se abate sobre os trabalhadores com menores rendimentos resulta do mero funcionamento das leis do mercado, porque, «...sendo relativamente menos (do que os seus congéneres europeus), os mais bem qualificados ganham relativamente mais. E, em consequência, os rendimentos dos portugueses têm, entre os extremos sociais, um fosso maior do que nos restantes países europeus…» e assim, pela simples e crua aplicação das leis da oferta e da procura, entende explicado (e explicável) o gritante fosso entre rendimentos, esquecendo, ou esperando que nenhum leitor se lembre, que é precisamente entre o segmento dos jovens portugueses com maiores qualificações que se encontram as maiores taxas de desemprego.

Anacrónico? Antes, pelo contrário! O que esta aparente contradição pode demonstrar é outra das vertentes da origem do tal mal-estar a que alude o documento da SEDES, mas a que não dá “rosto” nem “nome”- é o da inépcia do tecido directivo nacional corporizado nos “patrões” de empresas subqualificados que, como via para a redução dos custos e melhoria dos lucros, preferem contratar trabalhadores mais baratos que são tanto ou menos qualificados que eles e os “directores” altamente qualificados que, sob a capa da defesa da redução dos custos e da maximização dos lucros dos accionistas, preferem não contratar trabalhadores cuja qualificação lhes possa fazer sombra.

O texto que consubstancia o alerta que agora deixou a SEDES, todo ele orientado para a dimensão política do problema, tem ainda o cuidado de concluir que a sua resolução tem que passar pelo quadro político partidário, mas não da forma como o fez num artigo de opinião no EXPRESSO e numa entrevista ao CORREIO DA MANHÃ o director do Observatório de Segurança, general Garcia Leandro, que parece mais orientado para uma reorganização daquele espaço do que para a sua regeneração como defendem os primeiros.

Subtilezas aparte, ambos vieram a público repetir o que outras personalidades, como o Bastonário da Ordem dos Advogados, já disseram em ocasiões anteriores, mas continuando por apontar a origem do problema e quando se aproxima o início de um novo ciclo eleitoral no país, muito dificilmente assistiremos a um verdadeiro esforço de correcção do modelo de distribuição de riqueza que tem conduzido as populações mundiais a estados cada vez mais próximos da pobreza absoluta.
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[1] Mão amiga fez-me chegar o endereço onde a Agência Lusa difundiu um resumo daquela comunicação sob o título Organização do mundo do trabalho acentua "cultura baseada no medo" em detrimento de cultura de excelência.
[2] Este processo tanto inclui a repressão profissional, normalmente expressa na ascensão hierárquica dos menos capazes mas subservientes, como a um nível ainda mais elementar a obsessão pela perca do posto de trabalho, tornado “leit motiv” na sociedade portuguesa através da desregulamentação e liberalização dos despedimentos e demais instrumentos de política laboral.
[3] O triste comparador é a Letónia, onde o rácio é de apenas 4,8.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

PROMESSAS E REALIDADE

Cada vez parece mais generalizada a ideia de que os políticos perderam os poucos restos de dignidade que ainda havia quem lhes reconhecesse. Já não são apenas aqueles – muitos – que prometem mundos e fundos para alcançarem a eleição e que após esta rapidamente esquecem esses compromissos, mas também os que “esquecem” os princípios que os terão colocado nos cargos que ocupam.

Embora pudesse estar a referir-me à generalidade dos políticos nacionais, o que hoje me levou a pegar neste tema foram algumas notícias recentes em torno da condenação à pena capital de um jovem afegão, estudante de jornalismo e colaborador de um jornal local, por ter difundido um texto sobre o islamismo e a condição feminina e o facto do presidente afegão, escolhido pelos americanos pelas suas posições pró ocidentais já se ter manifestado favorável àquela condenação.
A reprodução e distribuição de um texto de origem iraniana, encontrado na internet, valeram ao jovem Sayed Perwiz Kambakhsh a acusação de blasfémia e de difusão de comentários difamatórios sobre o Islão. Detido em Outubro de 2007 foi julgado por um tribunal de Mazar-i-Sharif, localidade na província de Balkh, que lhe terá recusado a devida defesa por um advogado e que em 22 de Janeiro o condenou à morte, não importando sequer o facto de não ser o autor do texto.

A ONG REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS tem-se desdobrado em esforços para divulgar esta situação[1] e tentar influenciar a comunidade internacional a intervir em benefício de Kambakhsh enquanto denuncia a hipótese do verdadeiro alvo da perseguição ser Sayed Yaqub Ibrahimi[2], irmão do condenado e também ele um jornalista que se tem destacado na denúncia da corrupção e de violações dos direitos humanos na região.

Caso fracassem as tentativas de apelo, a sentença de morte poderá ainda ser comutada pelo presidente afegão, Hamid Karzai, mas o facto deste já se ter manifestado favorável à sentença minimiza as suas hipóteses de sucesso[3] enquanto levanta uma importante questão: até que ponto Karzai estará disposto a enfrentar os dogmas religiosos?

Esta é uma questão de fundamental importância, para o caso concreto em análise e para um melhor entendimento das razões e consequências da intervenção americana no Afeganistão. Se Karzai se revelar um líder titubeante, algo que já revelou ser em inúmeras outras situações e questões, como poderão os EUA esperar dele uma eficaz oposição aos fundamentalistas islâmicos – personificados no Afeganistão pela organização taliban – e qualquer sucesso à tão apregoada luta contra o extremismo?

Será, então, que o verdadeiro objectivo da ocupação do Afeganistão não foi a destituição dos talibans, mas talvez e tão somente a criação de uma nova oportunidade de negócio para o complexo militar-industrial norte americano e para as inúmeras empresas a quem o Pentágono tem subcontratado o esforço de guerra?[4]

Ou, mais simples ainda, para o lucrativo negócio das opiáceas?
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[1] Na página internet da ONG encontram-se notícias sobre o assunto, aqui e aqui e apelos à libertação do jovem afegão.
[2] Esta mesma ideia é corroborada nesta notícia da CNN.
[3] Até ao desenlace final a dúvida é pertinente, embora a própria página da REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS refira num artigo recente que Karzai transmitiu a uma delegação de jornalista afegãos sinais positivos sobre a matéria.
[4] De acordo com uma notícia do LE MONDE, em Novembro de 2007 havia 140 empresas de segurança a operar no Afeganistão, das quais apenas 90 eram identificáveis e não mais de 35 se encontravam devidamente reconhecidas pelo ministério do interior afegão.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

O QUE REPRESENTAM AS ELEIÇÕES AMERICANAS

Quando diariamente jornais e televisões nos “oferecem” notícias, sondagens, comentários e análises sobre as eleições americanas e a posição dos principais candidatos, não é seguramente displicente dedicar algum tempo a perceber o que por lá se passa.

Fortes nos seus mais de 300 milhões de habitantes, distribuídos por quase 10 milhões de km2 de superfície e nos seus mais de 13,5 biliões de dólares de PIB, os EUA apresentam ainda uma outra característica particularmente interessante e merecedora de atenção – o sistema eleitoral.

Classificada entre as nações democráticas os EUA primam por manter um sistema eleitoral que além de particularmente complexo e prolongado no tempo apresenta como expoente máximo o facto do poder executivo – presidente – não ser eleito pelo voto directo dos seus cidadãos.

Mesmo agora que decorre a fase em que os dois partidos – desde a sua fundação no início do último quartel do século XVIII que a política norte-americana se tem desenrolado num sistema bipartidário – procedem à escolha do seu candidato presidencial à eleição que terá lugar em Novembro, no que habitualmente é designado por eleições primárias[1], o processo encontra-se longe de ser simples e directo. Assim, cada partido organiza em cada um dos 50 estados que integram a União um processo eleitoral que pode revestir várias formas (assembleia eleitoral ou caucus, votação aberta – nela podem participar os filiados em cada partido e os não-filiados –, fechada – reservada exclusivamente a filiados – e semi-aberta) e através do qual serão eleitos delegados à convenção nacional de cada partido, sendo nesta que ocorrerá a nomeação final do respectivo candidato.

Este sistema, indubitavelmente complexo e moroso, deverá conduzir à escolha da personalidade que o partido apoiará na eleição geral que encerrará o processo eleitoral para a designação do executivo que dirigirá os destinos da União por um período de 4 anos.

Encerrado o processo das primárias, inicia-se nova “corrida” agora limitada a dois candidatos, embora por vezes surjam outros intervenientes – “outsiders” sem apoio ou ligações partidárias[2] – cujas probabilidades de vitória são extremamente reduzidas, que culminará com uma eleição de um colégio eleitoral que, este sim, escolherá o presidente. Este complicado mecanismo de eleição indirecta esteve na origem da enorme polémica que rodeou o acto eleitoral de Novembro de 2000 quando na ausência de um claro processo de apuramento de resultados no estado da Florida, um tribunal atribuiu a vitória a George W Bush e a maioria necessária de membros no colégio eleitoral para a sua nomeação.

Na presença de um intrincado processo eleitoral que normalmente se inicia com mais de um ano de antecedência faz todo o sentido tentar compreender as razões que sustentam a sua manutenção. Para muitos poderá servir a invocação da dimensão continental do território da União para justificar o processo e a sua morosidade, para outros o tradicional gosto americano pelo espectáculo também terá o seu peso, mas pessoalmente estou em crer que a real razão para tudo isto é tão somente a necessidade de assegurar a eleição do candidato certo!

Se não vejamos... que melhor forma haverá para as grandes empresas e os interesses económicos para assegurar a maior conformação do presidente às suas “necessidades” que obrigar os candidatos a dispor de colossais meios financeiros para suportar a realização de duas campanhas eleitorais (as primárias e a eleição geral) e um sistema eleitoral de por via indirecta?
Para quem duvide desta realidade aqui ficam os montantes de fundos recolhidos (e declarados) pelas diferentes candidaturas:

que nem o facto de algumas das mais endinheiradas já terem anunciado a sua desistência invalida (esse é apenas o custo do simulacro da participação popular).
Quem honestamente poderá esperar dos candidatos que recolheram milhões de dólares de fundos alguma independência face aos interesses económicos que financiaram as suas campanhas e a eleição?

Pessoalmente apenas conheço outro mecanismo mais eficaz para assegurar a impossibilidade de alguém ser eleito fora deste circuito de interesses – a ascensão ao poder por via hereditária ou mediante o recurso ao poder militar.

Esta realidade é tanto mais evidente quanto se conhece o peso crescente no sistema económico e no aparelho político que a indústria militar adquiriu nos EUA desde o final da II Guerra Mundial (ampliado ainda mais com a política de deslocalização das indústrias baseadas em modelos de trabalho intensivo para áreas que apresentem menores custos salariais e quando o país se encontra mergulhado em duas frentes de guerra – Afeganistão e Iraque) e o seu sucesso encontra-se bem patenteado nas cada vez menores diferenças entre as administrações republicanas e democratas, a ponto de durante as campanhas eleitorais serem mínimas as distinções entre os candidatos.

Quanto maior for a máquina montada (e financeiramente sustentada) por detrás de cada candidato maior é a tendência para concentrar a atenção dos eleitores em questões pouco polémicas e para formular grandes promessas – a modernidade, a prosperidade, a boa fortuna ou a mudança – enquanto questões verdadeiramente importantes como a guerra e os biliões de dólares consumidos por ela e pelas grandes empresa que com ela lucram, a degradação das condições de vida, a inexistência de serviços de saúde e de assistência social, a falta de empregos, a emigração, a criminalidade, etc., etc., ficam esquecidas ou não merecem mais que declarações circunstanciais, mas nunca a apresentação de programas políticos estruturados para a sua resolução. Embora o sucesso deste mecanismo que sobreleva a importância da publicidade e da demagogia em detrimento do debate de ideias e da busca de soluções para os problemas correntes das populações seja tão real, aqui e ali, ainda vai surgindo uma ou outra voz dissonante e até na imprensa surge uma ou outra referência a esta realidade tão habilmente manipulada.

Mesmo que até final ainda possa surgir alguma candidatura fora do establishment, como a de Ralph Nader[3] em 2004, é muito pouco provável que volte a dedicar uma linha às eleições americanas.
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[1] Uma eleição primária é aquela em que os eleitores escolhem um candidato para o processo eleitoral seguinte. Enquanto, por exemplo, na Europa os partidos escolhem os seus candidatos em congressos ou assembleias partidárias, no caso americano as primárias desenrolam-se para que cada partido escolha o candidato que apoiará na eleição presidencial.
[2] Apenas uma vez no ultimo século e meio, no ano de 1912, um candidato, o ex-presidente Theodore Roosevelt, não oriundo dos partidos tradicionais (republicanos e democratas) conseguiu obter mais de 20% dos votos.
[3] Ralph Nader, americano de origem libanesa, ainda é, apesar dos seus 74 anos, um advogado de renome; diplomado pelas universidades de Harvard e Princeton, celebrizou-se nos anos 60 pelas suas campanhas a favor dos direitos dos consumidores e na promoção de debates em torno de questões como o feminismo, o humanitarismo, a ecologia e a governação democrática. Defensor da implementação de políticas democráticas e de respeito pelos direitos humanos, tem sido um duro crítico da política externa das últimas administrações norte-americanas que costuma classificar de corporativistas e imperialistas. Na década de 1960 ficou célebre pela publicação de um livro «Unsafe at Any Speed» onde denunciou a poderosa industria automobilística americana sobre as razões das mortes de milhares de cidadãos em acidentes automobilísticos, onde o resultado fatal poderia ter sido evitado se os veículos dispusessem de equipamentos de segurança já existentes naquela época, e que, por meras razões de economia de custos, não eram instalados. Candidatou-se três vezes à presidência dos EUA, em 1996, 2000 e 2004, as duas primeiras com o apoio do partido do verdes (Green Party) e a última como independente. (Adaptado de Wikipédia)

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

CRÓNICA DE UMA INDEPENDÊNCIA ANUNCIADA e outras histórias

Se tivesse verdadeiras capacidades literárias, aquela indisfarçável arte para burilar a frase e torná-la bela e clara dentro ou fora do contexto para que foi criada, nem hesitava em assim nomear o que está em preparação bem no seio de uma Europa que tarda em encontrar o seu próprio espaço.

A leitura no fim-de-semana de uma entrevista do DN à eurodeputada Ana Gomes a propósito do Kosovo e as últimas notícias sobre Timor, ganharam para mim novos significados. Não pela absoluta novidade que uma e outra possam ainda apresentar mas, fundamentalmente, porque me parecem existir evidentes semelhanças em ambas as situações e que, mais uma vez, os dirigentes europeus e mundiais se preparam para dar o seu aval a uma solução ditada por obscuros (ou pelo menos pouco claros) interesses.

É preocupante lermos na entrevista a Ana Gomes que esta ache normal a inevitabilidade da independência do Kosovo, quando é a própria a afirmar que aquele território não dispõe de condições de sustentabilidade como país... Não basta aliviar a consciência propondo medidas estruturais de desenvolvimento de um território quando a priori se sabe que o mesmo não dispõe de condições mínimas de existência.

Depois dos desenvolvimentos a que temos assistido em Timor – território que apesar das evidentes distinções da ocupante Indonésia também não dispunha de uma estrutura económica auto sustentada – e nos famigerados territórios palestinianos – cuja anunciada autonomia, face à absoluta ausência de estruturas e de aparelho produtivo, é apenas mais um exemplo da hipocrisia da diplomacia mundial -, eis que nos preparamos para aplaudir a criação de mais um estado inviável no interior da própria Europa!

Que aos EUA e à Rússia interesse a criação de mais um ponto de conflito onde definam o respectivo poder e influência é algo de absolutamente natural, agora que a UE, que atravessa uma fase de pronunciada instabilidade interna (ao nível político, económico e até organizacional) e será seguramente a maior prejudicada pelas estratégias de projecção de poder de americanos e russos, embarque nesta aventura é que me parece inadmissível.

Depois do que diz ter visto como é que Ana Gomes e o Parlamento Europeu, entidade que foi representar na sua deslocação ao Kosovo, podem concordar com a criação de mais um estado falhado?

Quando confrontados com o facto da população kosovar não representar mais que uma extensão da vizinha Albânia e que os seus governantes ainda não conseguiram resolver sequer o problema do abastecimento regular de energia eléctrica, isto apesar dos 900 milhões de euros investidos pela UE na modernização da rede eléctrica local, que outra leitura poderão fazer os sérvios senão a de que esta é apenas mais uma punição imposta pelos EUA, os grandes defensores da independência?

E é neste ambiente altamente propício a novo deflagrar de um conflito que uma UE fragilizada pelo ciclo de crescimento que ainda não conseguiu harmonizar vai aceitar participar e apoiar os dirigentes de um novo estado cujas profundas ligações ao crime organizado bem conhece?

domingo, 10 de fevereiro de 2008

O PRÓXIMO DOMINÓ VAI SER AINDA PIOR

De acordo com alguns analistas a crise do subprime norte-americano pode bem não ter passado de uma “brincadeira de crianças” porque o risco indiscriminadamente distribuído pelo mercado é quase incalculável. Como exemplo desta hipótese tomemos a dimensão atribuída à bolha hipotecária americana, uns meros 20 mil milhões de dólares, quando existem outras actividades ainda mais especulativas e em valores muito superiores, caso do mercado dos CDS (credit default swaps) que atingirá os 50 mil milhões de dólares.

Para entendermos a real dimensão deste risco convém lembrar o efeito potenciador que teve a política de juros baixos, praticada pelo FED até 2006, sobre o desenfreado crescimento dos volumes de capital aplicados nos mercados financeiros e esclarecer o que são os CDS.

Estes contratos foram criados após o rebentamento da bolha das dot.com[1] e consistem num produto destinado à cobertura do risco de incumprimento no mercado obrigacionista americano; sendo os seus principais intervenientes instituições financeiras não existe qualquer mercado organizado para a sua transacção, pelo que não estão sujeitas a qualquer regulamentação ou controlo.

Especialistas da área financeira estimam um volume deste tipo de contratos em vigor na casa dos 50 mil milhões de dólares (2,5 vezes o valor até agora reconhecido ao mercado subprime), número que ganha a sua verdadeira expressão quando a dimensão do mercado do activo subjacente cujo risco pretende cobrir, a tal dívida privada titulada por obrigações, não ultrapassa os 5 mil milhões de dólares.

A existência de uma relação de 1/10 – um dólar obrigacionista por cada dez dólares de especuladores – dá uma boa imagem da enormidade deste “mercado” e do colossal risco nele envolvido, porque apenas 10% destes contratos foram originados pela real necessidade de cobertura de risco. Os restantes 90% não passam de “jogadas” exclusivamente orientadas pela febre especulativa e pela crescente pressão no interior do sistema financeiro para a realização de cada vez maiores mais-valias.

Esta crescente tendência para desligar o mercado dos produtos derivados dos respectivos activos subjacentes tem sido responsável pelas crises financeiras que a economia mundial tem registado nos últimos anos[2], mas contrariamente à lógica, a cada nova crise não se sucedeu um período de contenção e racionalização da actividade mas antes uma nova escalada para patamares sucessivamente mais altos nos valores envolvidos e nos respectivos riscos.

Este mecanismo verdadeiramente perverso não só está a corroer o sistema financeiro originado em Bretton Woods, no rescaldo da II Guerra Mundial, e a revelar as fragilidades dum sistema baseado numa moeda internacional que é controlada exclusivamente por um estado (o dólar americano, que o FED emite consoante as necessidades da economia nacional e os objectivos militares da sua administração) como originou uma fase de especulação desregrada, totalmente desligada da economia real e que já deu sobejas provas de quão perigosa pode ser para as restantes economias.

É que os CDS além de usados como via especulativa contra as empresas norte-americanas podem igualmente funcionar como veículo especulativo contra os seus emitentes (bancos e outras sociedades financeiras) e detentores por outras instituições financeiras e esta situação será tanto mais real quanto maior for a desproporção entre o volume do activo subjacente e o volume de contratos em vigor.

Confirmando-se aquela proporção de 1/10, sabendo-se da inexistência de qualquer mecanismo de controlo sobre os CDS (tratando-se de produtos derivados não sujeitos a um mercado organizado estão fora de qualquer controlo oficial, por mais complacente que este seja, e nem sequer figuram no balanço das empresas envolvidas o que as isenta da constituição de provisões) e que estes, por analogia com outros produtos e outros mercados, terão já originado outros produtos derivados[3], numa espiral que apenas poderá conhecer um fim catastrófico.

A interpenetração dos mercados financeiros, natural pela dominância de uma moeda e tornada inevitável pelo processo de globalização, e dos produtos neles negociados, associada à ineficácia dos mecanismos de controlo[4] estiveram na origem das crises anteriores e vão voltar a fazer-se sentir porque a própria conjuntura de subida de juros a propicia e porque a inexistência de qualquer provisão para as perdas transformará os primeiros prejuízos numa catástrofe que se repercutirá a enorme velocidade, à semelhança de um efeito dominó.

Talvez seja a isto que se referiu o anterior presidente do FED, Alan Greenspan, numa entrevista à estação de rádio NPR[5] em finais do ano passado, quando disse: «…devo prevenir que algo inesperado vai-nos atingir (…) as hipóteses de tal acontecer aumentam porque estamos a entrar em áreas vulneráveis. (…) O que pretendo sublinhar é que estamos numa fase de mudanças e que os crescimentos extraordinários dos últimos 15 anos são transitórios e isso vai mudar (…) todo o processo vai começar a inverter-se.» e quando a propósito da evolução das taxas de juro acrescentou que «…são determinadas pelos fluxos mundiais de investimento, com um peso bem superior aos esforços concertados dos bancos centrais, FED incluído, o que implica perdermos o controlo sobre as forças que aumentam os preços»…
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[1] Designação atribuída ao período de especulação bolsista em torno das acções das empresas ligadas ao crescimento da Internet e que culminou em 2001. O seu apogeu verificou-se no ano de 1999 quando as empresas do sector viram as suas cotações aumentar de forma exponencial, coincidindo com a criação e a admissão à cotação de muitas empresas cujas cotações subiram em fecha para rapidamente caírem a preços inferiores aos que tinham iniciado a negociação.
[2] Para informação e um breve historial sobre as crises, ver os posts que publiquei aqui e aqui.
[3] O desenvolvimento recente dos mercados financeiros e a premente necessidade de cada vez maiores volumes de aplicações, tem determinado o recurso à prática da titularização de créditos para posterior revenda a outras entidades (principalmente fundos de investimento e hedge funds), fenómeno a que também não será estranho o período de juros particularmente baixos que se viveu e que o designado «Yen carry trade» - estratégia que consistia no endividamento em yens a um juro muito próximo de 0% para o financiamento de actividades meramente especulativas – catapultou para níveis ainda maiores na medida em que potenciava os ganhos por via de um crédito a custo quase nulo.
[4] Esta característica de ineficácia dos organismos reguladores e fiscalizadores dos mercados não é apenas fruto da tendência desregulamentadora que atravessa o sistema capitalista, mas também das características intrínsecas dos próprios produtos derivados, cuja complexidade os torna particularmente difíceis de controlar.
[5] NPR – National Public Radio é uma estação de rádio norte americana sem fins lucrativos, financiada por capitais públicos e privados.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O LOGRO REFORMISTA

De toda a parte chegam regularmente notícias sobre a febre reformista que parece ter atacado grande número de governos das mais variadas latitudes.

A mais recente destas teve origem em França e foi apresentada sob a forma de um «Rapport de la Commission pour la libération de la croissance française» elaborado por encomenda do presidente Sarkozy e sob a direcção de Jacques Attali[1]. No essencial aquele extenso documento enuncia um conjunto de 300 medidas particularmente orientadas para a liberalização da actividade económica e para a reorientação do “investimento” na educação e na investigação.

Bem ao gosto da moda actual, Jacques Attali preconiza um vasto conjunto de medidas orientadas para a liberalização de mercados específicos e sujeitos a fortes medidas restritivas. Em França, como entre nós, faz sempre efeito junto da opinião pública a apresentação de ideias liberalizadoras sob a capa da eliminação de privilégios e que para cúmulo assegurem ainda o crescimento da economia, a redução do desemprego e do défice público.

Diz o ditado popular que quando a fartura é muita o pobre desconfia e isso mesmo fizeram alguns economistas franceses que prontamente vieram a público denunciar as fragilidades do documento e enquanto uns começaram por criticar os seus pressupostos, que acusam de apresentar um diagnóstico arcaico da França, além de não apontarem a queda no consumo privado como principal causa do fraco crescimento económico, mas sim a opção pelo investimento especulativo em prejuízo do investimento produtivo, outros defenderam as vantagens de aumentar o investimento nas tecnologias de ponta em detrimento dos sectores prestadores de serviços a baixo custo e não faltou sequer quem o denunciasse como criador de maiores desigualdades sociais por aumentar a transferência da carga fiscal e social das empresas para as famílias.

Independentemente das virtualidades e defeitos que o relatório contenha, ninguém negará que este apresenta para nós portugueses um evidente ar de “déjà vu” e, pior, de “déjà fait”; quem negará as evidentes semelhanças entre o programa proposto por Jacques Attali e o que o governo de José Sócrates vem aplicando?

Adequadas ou não, o facto é que este tipo de propostas apresentado como um natural e indispensável processo de racionalização e de redução dos custos da actividade pública, se tornou moeda corrente. Um pouco por todos os países se multiplicam iniciativas que visam reduzir o peso do estado na actividade económica.

Recentemente têm, entre nós, feito figura de primeira grandeza as iniciativas decididas pelo governo de José Sócrates de intervenção ao nível do Sistema Nacional de Saúde – em resposta às quais a natural contestação popular já terá custado o lugar ao anterior ministro da saúde, Correia de Campos – a criação de um regime de mobilidade na função pública e as alterações aos regimes da Segurança Social – traduzidas num aumento da vida útil dos trabalhadores e numa redução nos montantes das reformas a receber – as quais não constituem senão outras tantas das medidas habitualmente preconizadas pelos especialistas para a resolução dos “delicados problemas” originados pelos défices públicos.

O que na realidade se procura escamotear é que a coberto de pretensas necessidades de equilíbrios financeiros há alguns anos que se vem generalizando uma controversa prática de esvaziamento da iniciativa pública na vida das sociedades ocidentais. O movimento iniciou-se pretextando a ineficiência da gestão pública para justificar a entrega à iniciativa privada de alguns sectores do domínio público, como a produção e distribuição eléctrica, as comunicações, os transportes públicos, mas hoje tende a alargar-se a muitos outros como as vias de comunicação, a distribuição de água e saneamento público, a recolha e tratamento de lixos e até a alguns tão sensíveis e importantes como a educação, a saúde, a segurança social e a segurança.

Na ausência das adequadas políticas que consistentemente defendam os interesses das populações temos assistido à regular capitulação dos poderes públicos perante a crescente pressão dos grupos económicos. Foi assim que há uns anos assistimos à cedência da gestão de alguns hospitais públicos à iniciativa privada e a situações ainda mais absurdas como a da partilha de instalações hospitalares que revelando graves carências na área pública oferecem condições impares de disponibilidade na área privada.

Enquanto se persiste num processo de auto-redução de funções do Estado em benefício dos lucros do sector privado e quando seria de esperar que aquele seria acompanhado de uma redução das despesas – com a consequente redução de impostos – assistimos a uma constante aumento das despesas públicas que os teóricos neoliberais atribuem ao ainda excessivo peso do sector público (em especial ao elevado número de funcionários) talvez para esconderem o aumento dos custos originados pelo encarecimento dos serviços que as empresas privadas passaram a “vender” ao Estado, entre o quais se contam as recentemente descobertas “necessidades” de vigilância por meios electrónicos.

Para disfarçar o verdadeiro objectivo das políticas que estão a ser aplicadas os políticos que delas se têm encarregado recorrem a tácticas de diversão apresentando outras de menor ou nulo relevo económico como questões fundamentais para a vida das sociedades, de que são exemplo as políticas de reconhecimento do casamento entre homossexuais e as leis antitabagistas.

Estas medidas que os sectores políticos mais “modernistas” nos vêm impingindo como questões importantes e fracturantes mais não servem que para nos atirar poeira para os olhos enquanto tranquilamente vão delapidando as riquezas nacionais e as políticas sociais em benefício das grandes empresas nacionais e estrangeiras, sem que daí advenham os prometidos crescimentos económicos.
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[1] Jacques Attali é um economista, professor universitário e escritor prolixo (onúmero de obras publicadas, sobre os mais diversos temas, aproxima-se da meis centena), natural da Argélia onde nasceu em 1943; antigo conselheiro de François Mitterrand e primeiro presidente do BERD – Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento, cujo ideia fundadora lhe deve ser atribuída, dirige actualmente a associação sem fins lucrativos PlaNet Finance que actua na área do aconselhamento e organização de instituições de microcrédito. Durante a sua presidência do BERD, instituição destinada a financiar a reconstrução dos países da Europa de Leste, destacou-se pelo financiamento de programas de protecção de centrais nucleares, do ambiente e de forma mais abrangente no desenvolvimento de infraestruturas e na política de privatizações.
Em 2001 foi envolvido no processo de tráfico de influências que ficou conhecido em França pelo nome de Angolagate emais recentemente viu-lhe confiada pelo actual presidente francês, Nicolas Sarkozy, a tarefa de elaboração de um diagnóstico sobre os entraves ao crescimento da economia francesa.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

COMO VAI FUNCIONAR O ESTÍMULO DE BUSH

Mesmo correndo o risco de ser repetitivo, é inegável que a nível mundial o assunto de todos os dias é a crise da economia.

Se para os desempregados, cujo número continua a crescer, a existência de uma crie é já uma realidade, para quem trabalha, sente-a nos cada vez mais parcos rendimentos que vai auferindo enquanto acompanha o seu desenvolvimento pelas notícias.

Estas vão referindo as oscilações dos mercados de capitais, que ora apresentam fortes descidas ora ensaiam tímidos movimentos de subida, as reacções dos bancos centrais, com o FED a persistir na estratégia de descida das taxas de juro e em regulares injecções de moeda no sistema bancário, medida em que tem sido acompanhado pelo BCE e pelo Banco de Inglaterra (para só falar nas moedas mais fortes), e mais recentemente o anúncio pela administração norte-americana de medidas concretas para contrariar a situação.

Assim, acompanhando a actuação do FED a administração Bush decidiu implementar um programa para estimular a economia norte-americana. Qual New Deal[1] da era moderna, Bush anunciou que o seu governo vai implementar um programa de 150 mil milhões de dólares para relançar aquela economia.

Para os mais incautos importa esclarecer que não vai haver qualquer alteração na política económica da administração norte-americana, nem se registará nenhuma inversão na filosofia de desregulamentação e de desmembramento do sector público que a actual administração tem conduzido. Sempre na esteira dos mais elementares ensinamentos de Milton Friedman, o que o programa anunciado incluirá são incentivos de natureza fiscal para os investidores e uma redução da carga fiscal para as famílias.

Longe, muito longe, de qualquer programa de investimento directo na economia, o que a ultraliberal administração americana se propõe fazer é oferecer incentivos fiscais a quem pretenda realizar novos investimentos e permitir aos americanos conservar mais algum do seu dinheiro a fim de aumentar o consumo privado.

Com esta intervenção minimalista – sempre na estrita observância dos princípios de não intervenção governamental na economia – a administração Bush espera que o segmento mais endinheirado da população americana aumente as suas despesas de investimento, enquanto dos restantes se espera que gastem o suficiente para tornar mais lucrativos os investimentos dos primeiros.

Este esquema muito simples até poderia funcionar, não se desse o caso da economia americana atravessar uma fase de profunda desagregação, em resultado das políticas de deslocalização da sua produção industrial. Cumprindo as regras essenciais da chamada globalização, há décadas que as indústrias americanas deixaram de operar naquele território e mediante recurso a mão-de-obra nacional; procurando incessantemente a maximização dos ganhos dos seus accionistas, a produção foi deslocalizada para regiões como a do sudoeste asiático pelo que os futuros investimentos terão um efeito muito mais mitigado que o desejado e os fundos necessários ao seu financiamento terão ainda o indesejável efeito de agravar o défice externo.

Pior, porque totalmente dependente de financiamento estrangeiro a economia americana não só verá agravada sua situação deficitária como parte significativa dos ganhos gerados no consumo serão “exportados” para os países produtores dos bens e equipamentos que os EUA hoje importam em larga escala.

Será interessante observar no futuro os efeitos perversos desta política (que o caricaturista Jeff Danziger descreve aqui de forma divertida, mas dramaticamente real) e talvez então, trabalhos que investigadores e economistas vêm publicando há várias décadas[2] sobre os efeitos da actuação de organizações como o FMI e o Banco Mundial, que preconizam a aplicação de medidas daquele tipo às economias em desenvolvimento, se tornem ainda mais esclarecedores e até um pouco premonitórios do que espera os americanos.

Opinião igualmente pouco abonatória é a apresentada por Rodrigue Tremblay, professor de economia na Universidade de Montreal e o autor de THE NEW AMERICAN EMPIRE que assegura que os EUA atravessam já uma situação de estagflação[3] e para o demonstrar recorda a situação de desequilíbrio do orçamento norte-americano – fortemente agravado pelo custo das guerras no Afeganistão e no Iraque[4] e pelas reduções fiscais oferecidas às grandes empresas – o sobre endividamento do conjunto da economia americana associado a uma taxa de poupança global próxima de zero que tem originado o crescimento a dívida externa e a queda continuada da cotação dólar que longe de contribuir para o reequilíbrio está a agravar a balança de pagamentos.

Por tudo isto, salienta aquele autor, as políticas monetárias orientadas para provocar o crescimento das economias através do aumento da oferta de moeda em circulação estarão condenadas ao fracasso, porque o seu principal e mais evidente resultado será uma subida generalizada de preços e, acrescento eu, um mais que duvidoso efeito sobre uma economia fragilizada pela globalização.

O acumular de efeitos como o resultado da loucura que representa a escalada do défice americano, a rapina que tem sido praticada sobre o sector público, a debilidade no controlo das crises financeiras, o crash do mercado imobiliário, a queda do dólar e a subida do preço do petróleo, tudo contribui para que o ano de 2008 marque a confirmação de uma situação de crise que a queda dos mercados financeiros no passado mês de Dezembro veio demonstrar que não é um exclusivo da economia americana mas um problema da economia mundial.
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[1] New Deal foi a designação pela qual ficou conhecido o conjunto de programas com os quais o presidente Roosevelt decidiu enfrentar a Grande Depressão que sucedeu à crise de 1929 e que consistiu no lançamento de grandes investimento em infraestruturas (electrificação e outras obras públicas) por todo o território norte-americano, seguindo as teorias de John Maynard Keynes que preconizava a intervenção do Estado na economia em períodos de crise como forma de criação de emprego e de aumento da produção e da riqueza distribuída.
[2] Entre estes estou a recordar-me de trabalhos como A ARMADILHA DA DÍVIDA EXTERNA, de Cheryl Payer (publicado na década de 70 do século passado), O HORROR ECONÓMICO, de Viviane Forrester (trabalho da década de 90 do século passado) e o mais recente THE SHOCK DOCTRINE, que Naomi Klein publicou no ano passado
[3] Termo criado durante a década de 1970 para definir económica em que se conjugam as características de uma recessão, traduzida na redução do nível de actividade económica, com o aumento da inflação.
[4] Segundo a BBC NEWS um relatório produzido pelo grupo Democrata do Congresso Norte-Americano estimou o custo do esforço de guerra americano em 1,5 biliões de dólares (1,5x1012), valor que além de muito superior aos 840 mil milhões de dólares previstos, poderá ainda elevar-se aos 3,5 biliões durante a próxima década.