terça-feira, 29 de março de 2011

DEIXEM-SE DE TRETAS...


Ao ler as últimas crónicas dos habituais articulistas económicos do DN[1] (António Perez Metelo e João César das Neves) nem parece que a mais recente das crises nacionais é de natureza meramente política; ou afinal até talvez pareça, pois duma forma ou doutra ambos escolhem uma certa abordagem sobre a questão do défice e dos desequilíbrios macro-económicos.

Enquanto para Perez Metelo a questão central é o facto de não podermos continuar a necessitar anualmente dum endividamento de quase duas dezenas de milhares de milhões de euros, pelo que «...é mesmo preciso reduzir o endividamento do Estado, das empresas e das famílias» havendo apenas que proceder à escolha duma das vias conhecidas (a do PS que preconiza o recurso a uma política de austeridade que deverá prolongar-se por vários anos e a do PSD que aponta para a «...redução do preço do factor trabalho e a sua mobilidade irrestrita...»); já para César das Neves a receita é bem mais simples, e ele fornece-no-la benevolamente, bastando, para tanto, que as famílias portuguesas sigam fielmente os três passos preconizados pelo professor - apertem o cinto, trabalhem mais e deixem-se de tretas.

A frontalidade de César das Neves merece encómios, especialmente quando cotejada com a lisura e a suavidade de modos de Perez Metelo, pois se no essencial ambos dizem o mesmo, o primeiro apresenta o inegável mérito de facilitar o trabalho de interpretação, ao deixar-se de tretas e preconizar sem peias nem entraves que sejam as famílias e os trabalhadores por conta de outrem a suportar o grosso dos custos e dos sacrifícios... e sem protestos!

No conjunto, nem um nem o outro, esboçam sequer a mínima dúvida ao princípio axiomático da inevitabilidade das políticas de austeridade e se Perez Metelo (e com ele os partidários e os apólogos do PS e de José Sócrates) até parece genuinamente preocupado com o sentimento duma «...população cuja mediana de rendimento não chega aos 800 euros e, em média, declara 16 100 euros anuais em sede de IRS, [e para quem] parece inexplicável que aquilo de que dispõe não esteja alinhado com o esforço que vai fazendo», mas que rapidamente esquece, César das Neves prefere a pura e dura afirmação de cátedra: façam com eu digo, nõa façam como eu faço...

Quanto à explicação das certamente incomensuráveis vantagens da opção de transferir para o factor trabalho os custos duma crise e do conjunto das políticas macro-económicas até agora aplicadas e que invariavelmente beneficiaram o factor capital, ambos recorrem ao silêncio e não seguramente por pudor, antes quase certamente por nem sequer as terem equacionado.

Um e outro – apesar do que os distingue – pertencem à mesma grande família dos teóricos que há muito deixaram de questionar a certeza e a justeza das suas teorias (aquelas que lhes foram ensinadas) e de prestar atenção à hipótese de existirem alternativas à corrente de pensamento monolítico que há duas ou três décadas se vem instilando entre as elites.

Conscientemente ou não, ambos prestam o seu serviço à corrente política dominante e exibindo de forma mais ou menos clara a marca da conformidade, em caso algum arriscam um passo fora dela.


Quando a crise se aprofunda e as ideias novas parecem faltar, mais que nunca, importa renovar os modelos e a forma de olhar para os problemas.

Recusemos o ferrete da desgraça imposta, mas façamo-lo de forma consciente e construtiva – existem outras alternativas além das defendidas por Perez Metelo e por César das Neves[2] – e tomemos como exemplo disso mesmo as palavras ontem proferidas em Lisboa pelo ex-presidente brasileiro, Lula da Silva: «O FMI não resolve o problema de Portugal, como não resolveu o problema do Brasil, como não resolveu outros problemas. Toda a vez que o FMI tentou cuidar das dívidas dos países, o FMI criou mais problemas para os países do que soluções»[3].

Se não a convicção, pelo menos o rigor científico, devia levar os comentadores, analistas e demais jornalistas a informar-se e a divulgar outras ideias além daquelas com que diariamente os políticos enchem os seus discursos.


[1] As crónicas referidas são: «A rasteira e o só mais um» de António Perez Metelo e «Caldo de léria» de João César das Neves.
[2] Além das que tenho referido em “posts” anteriores, como sejam a necessidade de fazer retornar o poder da criação de moeda à esfera pública, a renegociação das dívidas públicas e a imposição de regulamentação ao funcionamento do sector financeiro por forma a reduzir a dimensão e a influência dos fenómenos especulativos na formação dos preços dos bens comerciais e de capital, veja-se um recente artigo de Paul Krugman, publicado no THE NEW YORK TIMES com o título «The austerity delusion» e no qual além de estabelecer comparações entre as opções seguidas nos EUA (priveligiando o crescimento do PIB e a criação de emprego) e na UE (apostando tudo nas vantagens da reduçaõ dos défices) ainda analisa os seus resultados.
[3] Citação de Lula da Silva retirada da notícia do NEGÓCIOS «O FMI não resolve o problema de Portugal»

domingo, 27 de março de 2011

BRICOLAGEM


Já se começa a perder a conta ao número de vezes que os líderes europeus reuniram para concertar uma estratégia de combate à crise que continua a assolar o euro, sem que até à data tenham logrado algo mais que discursos de circunstância e algumas medidas de duvidosa eficácia. Basta ler notícias como esta do NEGÓCIOS que dá conta que a «União Europeia aprova pacote de medidas contra a crise» para se compreender que nada de novo foi tentado, pelo que apenas se insiste na prática de medidas já conhecidas e no recurso a pequenos trabalhos de bricolagem.


Corolário do avolumar do endividamento dos estados economicamente mais frágeis e resultado directo duma crise económica e financeira global que tarda em ser resolvida, os líderes europeus dividem-se sobre a actuação e têm ao longo dos meses adiado sucessivamente para a reunião seguinte a definição de uma solução que além de cada vez mais tardia se revela mais ilusória.

Decorrido quase um ano sobre a intervenção decidida a favor da Grécia – com o objectivo de salvaguardar aquele estado-membro das dificuldades financeiras resultantes duma forte subida das taxas de juro da sua dívida soberana – e cerca de seis meses sobre idêntica actuação a favor da Irlanda, os líderes europeus parecem continuar sem entender a origem e a verdadeira essência do problema que têm de enfrentar.

Persistindo não só numa abordagem individualizada – tratando cada estado-membro como um problema isolado – mas principalmente na aplicação de uma estratégia manifestamente desajustada para a dimensão e para o real objectivo dos acontecimentos, a Comissão Europeia, o BCE e os estados da Zona Euro mais não têm feito que adiar o problema, talvez na vã esperança que o tempo resolva a sua própria falta de capacidade. Persistindo na negação da existência duma estratégia financeira concertada contra o euro (sirva esta para escamotear as fragilidades do dólar americano ou da libra inglesa, ou enquanto actuação meramente predatória de ataque aos mais fracos para a realização de maiores lucros), recusando-se a admitir o fracasso da introdução da moeda única como factor gerador de convergência entre as economias da Zona Euro, bem como qualquer hipótese de actuação firme e concertada de oposição a quem especula contra a moeda europeia e preferindo apontar como responsáveis (e últimos pagadores) os cidadãos dos estados-membros mais flagelados, os líderes europeus, sob pressão da Alemanha, têm pactuado e contribuído abertamente para o alastramento da crise.[1]

O próprio processo de resgate da Grécia e da Irlanda foi despoletado mais pela necessidade de salvar os bancos alemães, franceses e ingleses (como se pode confirmar pelo quadro abaixo) que pela preocupação no apoio àqueles Estados. A confirmá-lo veja-se a lentidão com que tem sido abordada a situação portuguesa e o facto dos bancos mais expostos à dívida pública portuguesa serem os da vizinha Espanha (outro dos PIIGS e o possível seguinte da lista).


De cimeira em cimeira os líderes europeus não só têm adiado uma resposta eficaz ao problema como persistem na recusa em compreenderem a sua verdadeira dimensão: por um conjunto de razões – que vão desde a incúria, à força das circunstâncias – os estados europeus, tal como as famílias, privados de rendimentos adequados – em especial devido à redução de impostos sobre o capital e após a eclosão da crise do “subprime”, em 2007 – endividaram-se em excesso e/ou viram reduzida a riqueza produzida internamente, factos que se recusam a aceitar, da mesma forma que persistem em não aplicar as medidas que efectivamente poderão contribuir para resolver a situação.

Assim, enquanto os dirigentes dos estados periféricos da UE (os tais PIIGS) não se conformarem a aceitar a premissa lógica de que face ao fraco crescimento das suas economias a amortização da dívida é impraticável[2] e que, face à reduzida riqueza produzida, a única medida realista é a da renegociação da dívida pública, não constituírem uma frente comum para obterem dos restantes membros o reconhecimento da especificidade da sua situação e a necessidade de aplicação de programas alternativos (que se centre mais na necessidade de crescimento das economias que no dogma da redução do défice ), a situação não registará melhoras e um após outro cada um dos estados-membros tornar-se-á o alvo preferencial daqueles cuja principal actividade é a da realização de ganhos nos mercados financeiros. A prazo, e se nada for feito em contrário, nem as economias mais desenvolvidas da Zona Euro escaparão, pois se não chegarem a ser objecto directo de ataques especulativos verão progressivamente reduzido o seu crescimento económico devido à retracção nos mercados domésticos dos vizinhos para onde exportam.

Seja sem uma prévia uma redução parcial da dívida ou um aumento no prazo da sua amortização, ou até sem uma combinação das duas, todos os esforços de redução da despesas ou de aumento das receitas estão condenados ao fracasso e não resultarão (em especial no caso da redução da despesa) senão numa ainda maior estagnação das economias. Prova disso mesmo é que as previsões de quase todos os organismos internacionais (Eurostat, OCDE, FMI) apontam para nova quebra do PIB português para o ano em curso, fruto óbvio das medidas de contenção salarial e de aumento de impostos decididos pelo governo de José Sócrates e aplaudidas pelos parceiros comunitários, com a Alemanha á cabeça. 

A solução de restruturação das dívidas (seja mediante a redução do capital e/ou aumento do prazo de amortização), embora raramente ou nunca referida por políticos, analistas e demais comentadores senão para pronta escarmentação, além de não constituir solução inédita (foi a uma medida idêntica que na década de 30 do século passado recorreu o afamado mago das finanças, Oliveira Salazar, para pôr cobro à “balbúrdia” da república e sanear as finanças nacionais) é a única que poderá criar as condições para que medidas adicionais, como uma redução criteriosa da despesa pública e algum ajustamento na carga fiscal, possam alcançar o objectivo da redução do peso da dívida pública.


[1] Visão bem mais clara da situação parecem ter os cidadãos europeus pelo que não será de estranhar que após as grandes manifestações de contestação na Grécia e na Irlanda, após as que juntaram na passada semana em Lisboa, onde a «Av da Liberdade pequena mara os milhares de trabalhadores» e em Bruxelas, onde desfilaram «Milhares em protesto contra “pacto para o euro”», ontem se tenha lido no JN que «500 mil ingleses manifestam-se contra medidas de austeridade» e no futuro abundem as notícias sobre uma crescente onda de agitação e contestação popular.
[2] Veja-se no caso português que na última década a taxa média de crescimento anual do PIB depois de descontada a inflação foi 1,01% e a evolução apresentada foi a seguinte:

quarta-feira, 23 de março de 2011

MAIS PEC, MENOS PEC...

Lamento, mas não consigo alinhar com nenhuma das grandes linhas de análise em torno da questão da rejeição do PEC IV e da anunciada queda do governo de José Sócrates. 

Como o tenho afirmado em várias ocasiões, não concordo minimamente com as linhas gerais dos famigerados PEC’s (Programa de Estabilidade e de Crescimento) nem com a forma como estes têm sido contestados pela generalidade das forças políticas, com o ridículo do PSD criticar agora o mesmo plano de cortes no rendimento das famílias (para o efeito tanto importa que os seus membros se encontrem no activo ou aposentados) que apoiou no PEC III. Questão para mais quase espúria, pois o que quer que venha a acontecer no futuro próximo em pouco ou nada depende da decisão de Sócrates (ou do próximo governo), pois a atestar pela afirmação, reproduzida no PUBLICO, de que «Países da zona euro excluem alterações ao PEC apresentado pelo Governo»[1], há muito está decidido que esta crise voltará a ser suportada pelos mesmos que já pagaram as anteriores; princípio de que aliás comungam PS, PSD e CDS.

Fruto da pura aselhice de Sócrates, ou resultado duma táctica brilhantemente desenvolvida (a opção varia conforme o observador e os objectivos que pretende atingir), e dado que, embora não apresentando qualquer alternativa, o «PSD recusa liminarmente negociar nova versão do PEC» poderemos estar a um passo de eleições antecipadas e duma mais que possível repetição do resultado das últimas legislativas, quando nenhum partido logrou obter o número de votos necessários à formação duma maioria parlamentar e o Presidente Cavaco Silva aceitou, pacificamente, empossar um governo com um apoio parlamentar mínimo e reduzidas possibilidades de enfrentar com sucesso uma conjuntura de crise global.

No passado fim-de-semana, Marcelo Rebelo de Sousa, o conhecido “opinion maker”, ex-líder do PSD e profundo conhecedor dos meandros internos dum partido onde é crescentemente visível a ânsia pelo regresso aos corredores de S. Bento, adiantou perante as câmaras da TVI, que se «...José Sócrates quer tanto aprovar o PEC tem uma solução para apresentar ao PSD: "Fazemos à irlandesa, vocês aprovam o PEC e eu viabilizo eleições"», oferecendo assim uma saída para um impasse perante o qual Cavaco Silva não deu qualquer sinal de pretender intervir, para mais tarde, perfeitamente consciente da possibilidade de novo resultado eleitoral inconclusivo, vir a produzir declarações ao ECONÓMICO que originaram a publicação da notícia que «Marcelo defende coligação entre PS, PSD e CDS».

Conhecida a reacção da UE, ou seja confrontados com a sua intransigência, e depois do próprio PSD ter publicado na internet um comunicado em inglês, veio a notícia de que o «PSD defende ‘coligação alargada’ para legitimar austeridade», parece cada vez menos relevante o que possa suceder ao actual governo e ainda menos que a sua eventual substituição possa traduzir-se em nova política de combate à crise.

É pois neste ambiente de tricas entre comadres que deve ser devidamente enquadrada a anunciada crise política e que, como em tantas outras ocasiões, as eventuais alternativas devem ser ponderadas. Escolher entre manter um governo crescentemente desacreditado e com uma liderança cada vez mais anacrónica ou a realização de eleições antecipadas em plena crise económica e financeira e protagonizadas pelos partidos (PS, PSD e CDS) que partilhando o poder nas últimas décadas conduziram o país ao seu estado actual, não constitui uma verdadeira alternativa, com a agravante desta última aumentar a despesa pública em alguns milhões de euros e colocar o país perante o ridículo de enviar um primeiro-ministro demissionário (mesmo que o seu peso e importância seja quase nulo) à importante cimeira europeia (pelo menos é assim que os líderes europeus a têm apresentado) que a partir de amanhã terá lugar e que deverá introduzir o conceito de flexibilização no recurso ao FEEF (Fundo Europeu de Estabilização Financeira).


Como muito bem lembrou Mário Soares, em «Um apelo angustiado», depois de «...o País acordar dessa campanha eleitoral, que só desacreditará os Partidos - os políticos e o País - quem terá condições efectivas para governar e nos tirar da crise? E por quanto tempo? Passos Coelho? Outra vez, Sócrates?»

Se, como parece, tudo aponta que o resultado de eventuais eleições antecipadas possa não clarificar minimamente o xadrez político, fará realmente sentido mergulhar o país num carnaval de promessas que ninguém tem condições, nem vontade, para cumprir?

Mais, como esperar essa clarificação quando, como lembra Batista-Bastos[2], a «...democracia portuguesa está reduzida a um funcionamento processual, que limitou, dramaticamente, os horizontes das nossas escolhas, dos nossos valores e dos nossos sonhos»? Será que, por algum estranho passe de mágica, a simples presença duma cara nova relançará um efectivo debate sobre a situação, a origem dos problemas e as respectivas hipóteses de solução?

Se, como tudo o indica (e o episódio da revelação do PEC IV é apenas mais um sinal), as grande decisões já deixaram de ser arquitectadas em Lisboa, fará sentido alimentar esperanças vãs de que serão os eleitos nacionais a decidir sobre as futuras políticas de combate à crise? e sobre o alcance das medidas de austeridade?

Por último, merecerão os políticos nacionais – começando pelo acrobático Sócrates, passando pelo ilusionista Passos Coelho e concluindo no inepto Cavaco Silva que a três meses da sua reeleição encontrou espaço e tempo para patrocinar um acordo PS/PSD sobre o PEC III mas, agora, três meses volvidos sobre aquela «diz que ficou sem margem de manobra para actuar» - que se lhes continue a prestar uma atenção que a sua crescente insignificância europeia já não justifica?


[1] Embora mais tarde tenha chegado a informação, veiculada pelo ECONÓMICO, de que a «Comissão diz que PEC do Governo “não está fechado”».
[2] A citação é um excerto do mais recente artigo de Batista-Bastos no DN, com o título «Contra a irracionalidade».

segunda-feira, 21 de março de 2011

CONFUSÕES


Depois de ler e reler múltiplas vezes a «Carta aos empresários» que César das Neves hoje publicou no DN, sinto-me particularmente satisfeito por entre um suspiro poder afirmar: Felizmente não sou empresário!


É que se o fosse teria que voltar a ler outra vez o mesmo texto para tentar entender o que o autor pretende, além de distribuir de forma mais ou menos equitativa o esforço dos indispensáveis “sacrifícios” entre famílias e empresas. 

Pois além do lamento pelas «[d]écadas de tutela política sob o condicionamento corporativo, seguidas de décadas de retórica esquerdista demonizadora dos capitalistas...» e as eternas loas ao Presidente da República por este ter afirmado no seu discurso de tomada de posse que «...emergiram nos últimos anos sinais de uma cultura altamente nociva, assente na criação de laços pouco transparentes de dependência com os poderes públicos, fruto, em parte, das formas de influência e de domínio que o crescimento desmesurado do peso do Estado propicia», pouco mais consegui entender. 

Não tenho a mínima dúvida que a limitação é minha, tanto mais que até do que consegui entender discordo; pois não foi o condicionamento industrial o mecanismo que permitiu a criação e consolidação da classe de industriais de que hoje derivam os Mellos, os Amorins e até os Belmiros? Não foram precisamente os filhos e os sobrinhos daqueles que se apressaram com o processo de privatizações, lançado na década de 80 por Soares e Cavaco Silva, na reconstituição dos monopólios familiares?

Mais, ao contrário da afirmação que cita de Cavaco Silva, a dependência (e a troca de “favores”) entre o Estado e as “grandes famílias empresariais” não é um fenómeno dos últimos anos, data no mínimo do século XIX e da prática da concessão a privados dos monopólios públicos[1]. É que nestas matérias – para quem queira emitir opinião abalizada, ponderada e sustentada – é indispensável recorrer a algo mais (os registos históricos) que a memória pessoal, a menos que apenas esta seja a adequada para sustentar as afirmações produzidas.

É certo que, como o afirma, a crise nacional é principalmente um problema estrutural e de natureza económica (o lado financeiro da questão decorre fundamentalmente da desadequação do modelo económico), que a «...economia precisa de liderança, iniciativa e criatividade...» e que «...os políticos deixam a desejar...», mas duvido que aos nacionais “capitães da indústria” alguma vez tenha interessado dispor de melhores políticos ou sequer ver rapidamente debelada a crise actual, pois isso tornaria impossível resultados como este: «As 20 empresas 'estrelas' da bolsa lucram mais 153%».


[1] Leia-se sobre este tema o livro recentemente publicado «OS DONOS DE PORTUGAL», pelas Edições Afrontamento.

sábado, 19 de março de 2011

CAMINHANDO NA PRANCHA


Poucas horas tinham decorrido sobre as primeiras notícia da catástrofe nipónica, quando um não menor abalo se fez sentir em Lisboa ao saber-se que o «Governo anuncia novo PEC com mais austeridade já para 2011».

Com este anúncio dum novo pacote de medidas de austeridade (o quarto) para reduzir o défice público a ser feito no mesmo dia em que a «Comissão Europeia e BCE terão descoberto um buraco nas contas públicas portuguesas», quando decorria uma cimeira de chefes de governo da Zona Euro e sem qualquer aviso prévio, ao presidente da república ou à oposição, poder-se-á tirar outra ilação que não a de que o governo de José Sócrates agiu sob pressão dos seus parceiros comunitários[1] e de que o quarto conjunto de medidas anunciadas para o reequilíbrio das contas públicas não constituirá senão mais outro pacote de medidas pouco estruturadas e de todo contraproducentes, enquanto não surgem outras?

A reacção dos partidos da oposição, com o PSD à cabeça, poderá finalmente evidenciar a crise política que a inépcia do reconduzido presidente da república proporcionou[2], mas nada disso, nem um possível cenário de eleições antecipadas, contribuirá minimamente para resolver as duas grandes questões aqui subjacentes:
  1. a incapacidade de sucessivos governos nacionais para reduzirem, ou apenas conterem, os excessos da despesa pública;
  2. o óbvio perigo que resulta de um regime político baseado na exclusiva alternância entre dois agrupamentos políticos que partilham, no essencial, as mesmas perspectivas e objectivos: o de servir os interesses duma minoria (nacional e estrangeira) contra os da maioria dos cidadãos.
Na sequência deste abalo (insignificante face à dimensão da catástrofe humana que se abateu sobre o Japão) deveria surgir finalmente algum espaço na sociedade portuguesa para o debate de ideias sobre a forma de abordar o problema do endividamento (e do respectivo financiamento) público, tanto mais que opiniões diversas não são matéria que falte (ainda muito recentemente Amartya Sen defendeu numa entrevista ao PUBLICO que «A Europa “devia esperar pelo momento certo para reduzir a dívida pública”»), antes costumam ser sistematicamente silenciadas pela imprensa, pelos governos e pelas estruturas partidárias que se recusam a conceder a mínima hipótese para um debate de ideias.

Incapazes de ponderar outras ideias além das que lhes foram inculcadas, são igualmente incapazes de aceitar que outros possam apresentar melhores soluções pelo que se recusam a ouvi-los ou a quem tal sugira. Receosos de perderem o destaque dos lugares que ocupam (ou a que almejam), renegam qualquer hipótese da realidade não se coadunar com os modelos teóricos que lhes ensinaram, ou simplesmente impingiram, e falhos de capacidade analítica, nem sequer arriscam o mínimo confronto com quem pense de forma distinta (ou apenas pela sua própria cabeça) e preconize que de políticas restritivas possa resultar algo mais que um novo período de recessão económica e novo agravamento do endividamento determinado pela regressão do PIB.

Soberbos na sua ignorância e cegos nas suas convicções, estão a conduzir-nos de forma decidida para um abismo que asseguram querer evitar e expõe-nos não apenas ao ridículo mas também à dolorosa situação duma morte lenta por definhamento (económico e social) ou ao absurdo dum suicídio colectivo.


Como que a provar a incapacidade destes actores da cena política, nem sequer espanta o alarido com que o ministro Teixeira dos Santos anunciou que a «Despesa pública caiu 3% e receita subiu 11% em Fevereiro», quando toda a lógica e bom senso aponta para que o resultado a louvar devesse ser uma quebra de 11% na despesa e uma subida de 3% na receita., pois o autismo dos governantes (actuais, pretéritos e futuros) vai ao ponto de ignorarem estoicamente o mal-estar que grassa na sociedade portuguesa e de que as recentes manifestações são apenas a ponta mais visível[3].

Entretidos nos seus jogos palacianos, pretendem trazer agora para a ordem do dia a discussão sobre uma pretensa crise política – como se a não vivêssemos desde as últimas legislativas – e convencer os incautos eleitores que, quais puras donzelas surgidas agora do éter, nenhuma responsabilidade têm na actual conjuntura e com eles todos os nossos males (nomeadamente a redução das condições e da qualidade de vida) se resolverão; num passe de mágica, as políticas responsáveis pela actual situação deixarão de merecer críticas e passarão a constituir a panaceia para todos os males como os seus antecessores propagandearam mas não souberam executar.


[1] Igual linha de pensamento desenvolveu Perez Metelo, no seu comentário semanal no DN, onde sob o título «O pauzinho na engrenagem» diz: «Não foi o Governo que quis fazer figura com as medidas adicionais, foram a Comissão Europeia (CE) e o Banco Central Europeu (BCE) - os novos avalistas para os países do euro sobreendividados - que o exigiram, para poderem afirmar - como o fizeram há uma semana - que agora sim, estão convencidos de que Portugal está em condições de cumprir as metas de redução do défice público.» e hoje mesmo assegura-se na primeira página da edição semanal do EXPRESSO que «Governo assumiu por escrito com Bruxelas medidas do PEC»
[2] Ver a propósito o “post” «A CANDIDATURA SÉRIA DA INÉPCIA COMO VIRTUDE».
[3] Embora tardias – face ao desenrolar da crise e ao acumular de evidências sobre a sua extensão e gravidade, apenas agora (no passado sábado e hoje) é que se começaram a assistir às primeiras manifestações contra a política seguida – começaram já a registar-se as primeiras grandes manifestações de protesto, a ponto do EXPRESSO ter noticiado que «300 mil protestaram em Lisboa e no Porto contra a precariedade» e o SOL que «Avenida da Liberdade pequena para os trabalhadores que desfilam».