sábado, 28 de fevereiro de 2009

O FIM DA SOLUÇÃO DOS DOIS ESTADOS

Agora que, a avaliar por notícias como esta do PUBLICO, estaremos em vias de vir a conhecer em breve a composição do novo governo de Israel será oportuno voltar a observar a realidade naquela região.

Mais do que discutir sobre um sistema político-constitucional que foi desenhado para dificultar a formação de governos monopartidários (e este tema bem que merece vir a ser tema de um próximo “post”), ou para analisar o “braço-de-ferro” entre Tzipi Livni (a líder do Kadima, o partido mais votado nas eleições do princípio do mês) e Benjamin Netanyahu (o líder do Likud, o segundo nas eleições, com apenas menos um deputado que o Kadima), talvez o mais interessante seja avaliar os possíveis efeitos da futura participação no governo de um partido de extrema-direita (o YISRAEL BEITEINU, de Avigdor Lieberman).

Para boa parte da imprensa ocidental este parece ser o grande “terror”, como se no quadro da fragmentada política israelita não fosse habitual a participação nas coligações governativas de grupos de extrema-direita. É certo que existirá a novidade de um grupo extremista (e para mais laico) vir a assumir um papel fundamental na formação do governo e na sua viabilização no Knesset, mas isso terá um impacto dramático no desenrolar da actividade governativa?

Do ponto de vista palestiniano e árabe a ideia é a de que o governo que Netanyahu não deverá representar uma significativa diferença para o anterior executivo, onde pontificava o KADIMA (partido oriundo da ala direita do LIKUD, mas classificado como de centro-direita) e o AVODA (partido trabalhista, de centro-esquerda), tanto mais que a passagem de Netanyahu pelo governo de Tel-Aviv (entre 1996 e 1998) até nem constitui um dos períodos de maior afrontamento entre judeus e palestinianos, o que mesmo assim estará longe de significar que as relações entre os dois povos possam registar alguma melhoria significativa.

Esta parece ser, desde o início do conflito israelo-palestiniano, uma das questões chave e das que mais tem sido explorada pelos membros mais radicais das duas comunidades; desde os sionistas mais fervorosos que persistem no sonho do Grande Israel[1] e defendem a expulsão para a Jordânia de todos os palestinianos, até aos grupos árabes que defendem a eliminação total do estado de Israel, há mais de um século que o ódio á alimentado entre as partes. Alternando períodos de confronto aberto – como a guerra israelo-árabe de 1948, a guerra dos seis dias, em 1967, e a guerra do Yom Kippur, em 1973, a primeira guerra do Líbano, em 1982, e a primeira Intifada (levantamento nos territórios palestinianos ocupados, em 1987) – com outros de alguma acalmia, o conflito israelo-palestiniano evoluiu desde a expulsão dos palestinianos das suas terras até à assinatura dos Acordos de Oslo em 1993, no respeito pelo princípio definido por Israel da troca de “terra por paz”.

O assassinato de Yitzhak Rabin (o primeiro-ministro israelita que assinou um acordo com Yasser Arafat) por um extremista judeu, em 1995, foi um claro sinal de que o objectivo destes era bem diferente do de uma política de apaziguamento e de entendimento; o impasse da cimeira de Camp David (entre Ehud Barak Yasser Arafat), o eclodir da segunda Intifada e a eleição de Ariel Sharon, foram outros tantos sinais de agravamento do clima de apaziguamento, que nem a retirada dos colonatos judaicos da Faixa de Gaza inverteu.

Verdade se diga que se do lado palestiniano sempre houve grupos que não se resignaram a aceitar a presença judaica e um deles, o Hamas venceu mesmo as eleições de 2006, do lado israelita a própria política de estado deixou muito a desejar quanto a uma maior serenidade e sentido das responsabilidades (a eleição de Ariel Sharon, apontado como responsável pelos massacres dos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Shatila, foi precedida de uma verdadeira manobra de afrontamento quanto à soberania sobre Jerusalém Leste, território que os palestinianos consideram a sua capital natural) e nunca procurou solucionar o problema candente da expansão dos colonatos judaicos na Cisjordânia.

Já com Ehud Olmert (o sucessor de Ariel Sharon) como primeiro-ministro a comunidade internacional assistiu a duas sangrentas incursões israelitas no Líbano (segunda guerra do Líbano, em 1996) e na Faixa de Gaza, em finais de 2008, sem que uma ou outra tenham resultado em significativos ganhos, contrariamente ao que até então sucedera com as anteriores intervenções militares.

Fragilizado no plano político interno, vendo as suas opções militares criticadas de forma cada vez mais aberta pela comunidade internacional e alvo de acusações de corrupção Ehud Olmert anunciou o abandono do governo, cedendo o lugar à ministra dos negócios estrangeiros, Tzipi Livni. Não tendo esta conseguido reerguer a coligação que sustentava o governo, realizaram-se eleições no princípio deste mês das quais resultou o regresso de Netanyahu ao poder.

Enquanto no lado judaico se vivia esta situação, do lado palestiniano a conjuntura também não foi a mais propícia ao fortalecimento de um sentimento de paz e segurança. Desde o início da segunda Intifada (como resposta imediata à provocação de Ariel Sharon) que a situação política palestiniana não tem parado de se degradar. Primeiro devido ao generalizado sentimento de afastamento entre os mais jovens (e directamente envolvidos na Intifada) e as elites dirigentes da OLP (sob a liderança do líder histórico Yasser Arafat), que rapidamente evoluiu para acusações de corrupção. Com a morte de Arafat, ocorrida em Novembro de 2004, e ascensão ao poder de Mahmud Abbas o clima de críticas e disputas internas agravou-se até às eleições legislativas de 2006, o Hamas (movimento islâmico e grande rival da laica OLP) foi o grande vencedor. Com a OLP a dirigir a Autoridade Palestiniana[2] e o Hamas a constituir um novo governo que o Quarteto para a Paz[3] e o governo de Israel torpedearam sob os mais variados pretextos, cedo a situação evoluiu para um crescendo de confrontações entre partidários da OLP e do Hamas que culminou com um confronto aberto que ditou a expulsão da OLP da Faixa de Gaza.

Neste cenário de grandes divisões internas é natural que as tentativas de aprofundamento do processo de paz não tenham registado grande sucesso, até porque do lado israelita nunca se interrompeu o processo de extensão dos colonatos e se deu mesmo início à construção de um muro de separação entre os territórios palestinianos sob administração da AP e de Israel, e comecem até a surgir um número crescente de vozes a alertar para a falência da solução “dois povos-dois estados”.

Para quem tenha lido os “posts” «NOVAS IDEIAS PARA A PALESTINA», «CONTRIBUTOS E OBSTÁCULOS PARA A PAZ – I» e «CONTRIBUTOS E OBSTÁCULOS PARA A PAZ – II» não constitui grande novidade a argumentação apresentada neste artigo do CHRISTIAN SCIENCE MONITOR que atribui o fracasso da solução a:

  • o constante crescimento dos colonatos (na data dos Acordos de Oslo haveria menos de 110.000 colonos israelitas na Cisjordânia, contra os actuais 275.000, instalados em quase duas centenas e meia de colonatos estrategicamente distribuídos no interior daquele território palestiniano);
  • a deliberada fragmentação do território palestiniano graças a políticas de construção de estradas de acesso exclusivo aos colonos, de construção de barreiras de segurança em torno daqueles colonatos e da instalação de bloqueios e postos de controlo (mais de seiscentos controlos que registaram um crescimento superior a 70% desde 2005) que, a pretexto da segurança daqueles colonatos, tornam impraticáveis as deslocações dos palestinianos dentro do seu próprio território e aumenta ineficiência de uma economia que pouco ultrapassa a de sobrevivência;
  • a deliberada expansão dos subúrbios judeus de Jerusalém Leste (território árabe ao abrigo das decisões da ONU) por forma a isolar aquela que devia ser a capital do estado palestiniano do resto da Cisjordânia;

e chama mesmo a atenção para recentes declarações do presidente israelita, Shimon Peres, de que qualquer tentativa para evacuar os colonos poderá resultar numa guerra civil...

Quando parece cada vez mais difundida a ideia de que a solução de criação de um estado palestiniano é inviável – e a responsabilidade pelo fracasso da iniciativa podendo ser atribuída aos dois lados (especialmente às franjas mais radicais) não pode deixar impunes os políticos israelitas que ao longo de décadas criaram todas as condições para a expansão e instalação de colonatos em territórios que não lhes pertenciam, enquanto iam negociando medidas para a pretensa instalação de um estado palestiniano e dinamitando todas as reais hipóteses de funcionamento da economia e até da vida diária dos palestinianos – que outras soluções são apresentadas?

A coexistência pacífica dos dois povos, segundo o princípio de uma “cooperação simpática”, que a maioria dos judeus descarta por considerar inevitável a dominação dos palestinianos, mais que não seja em resultado das leis naturais da demografia, ou o agravamento da situação de “apartheid” que já hoje se vive nos territórios ocupados.
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[1] Ver, a propósito, os “posts”: «…NÃO PODEMOS IGNORAR» e «O MÉDIO ORIENTE E OS LOBBIES JUDAICOS».
[2] Entidade criada ao abrigo dos Acordos de Oslo, o seu primeiro presidente foi Yasser Arafat, e que constituía o governo dos territórios palestinianos sobre a sua administração.
[3] Designação do grupo de países (EUA, UE, Rússia e ONU) encarregue de mediar a aplicação dos acordos israelo-palestinianos e sobre cuja actuação reflecti no “post”: «O QUARTETO E PALESTINA».

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

NOVA ARQUITECTURA FINANCEIRA?

As notícias divulgando as intenções de um consenso europeu para a concertação de uma nova arquitectura financeira mundial, que têm circulado nos últimos dias, deverão, ou não, merecer um aplauso favorável de todos nós?

Embora um primeiro impulso possa ser o de uma opinião positiva, quem pondere um pouco mais a sua resposta dificilmente manterá o mesmo parecer, tais são as fragilidades da proposta oriunda da reunião que no passado fim-de-semana mantiveram em Bona um grupo de líderes europeus[1]. Declarações pomposas à parte, o grupo parece apostado em levar à próxima reunião do G20 (que terá lugar em Londres, no dia 2 de Abril) propostas para a regulação dos fundos especulativos, a penalização dos paraísos fiscais e o aumento dos recursos financeiros do FMI para 500 mil milhões de euros; tudo boas intenções, mas com que efeito real?

Quando se torna cada vez mais óbvia a enorme responsabilidade da ausência de regulamentação nos mercados de capitais no avolumar da crise, parece evidente a necessidade de corrigir a situação, bem como a de pôr cobro ao funcionamento descontrolado dos “offshores”, mas isso dificilmente resolverá a situação quando se constata que a raiz do problema é muito mais profunda e que a crise, despoletada na esfera financeira e cada vez mais evidente na continuada fragilidade da banca, apresenta raízes económicas bem mais profundas.

O discurso com que a actual secretária de estado Hillary Clinton se apresentou em Pequim – apelando aos chineses para não suspenderem a aquisição de títulos do tesouro americano[2] – também não só não ajuda a esclarecer as origens da crise, salvo no que respeita ao excessivo endividamento externo norte-americano, como pode até servir para reforçar a antevisão que o “think tank” europeu LABORATOIRE EUROPÉEN D’ANTECIPATION POLITIQUE formulou num comunicado em meados de Janeiro deste ano onde previa a possibilidade da economia norte-americana entrar ainda este ano em insolvência.

Sobre as razões de o Mundo inteiro ter chegado a uma situação de endividamento insustentável pouco ou nada se diz e ainda menos se ensaiam soluções que não passem pela contínua injecção de dinheiros públicos no sector financeiro, como se pode confirmar por esta notícia do NEW YORK TIMES que relata a existência de conversações entre o governo e a administração do CITI no sentido daquele passar a deter parte significativa do seu capital. Curiosamente esta opção é, no mesmo dia, defendida pelo habitual colunista daquele jornal, o prémio Nobel da Economia Paul Krugman, no artigo de opinião «Banking on the brink» onde postula a favor da nacionalização dos bancos que necessitem de profundas restruturações financeiras.

Quando todas as cabeças (bem) pensantes continuam apostadas em não ver mais que a árvore na floresta não será de estranhar que as propostas de soluções apresentadas não passem de meros paliativos para um problema de fundo que ninguém parece querer ver. Onde nos levarão propostas como a defendida por Paul Krugman senão à preparação da próxima crise, pois a beatífica intenção de sanear financeiramente os bancos em dificuldades (leia-se os bancos cujos activos são manifestamente insuficiente para a cobertura do passivo mais das perdas potenciais) nunca resolverá o problema de fundo que continua a ser o da escassez de meios financeiros na economia, tanto mais que continuarão a ser os banqueiros, fomentadores dessa escassez, a lucrar com ela.

Nesta conjuntura em que ficarão as ténues propostas europeias?

Pretender regular apenas os fundos especulativos, mesmo que esse seja um dos pontos de maior risco dos mercados, e propor uma penalização dos paraísos fiscais, reconhecidos como grandes responsáveis pela falta de transparência e de confiança que grassa nos mercados financeiros, é na actual conjuntura manifestamente muito pouco para combater a crise.

Propostas credíveis para a construção de uma nova ordem financeira terão que assentar em princípios muito mais sólidos e certamente pouco do agrado da elite financeira; terão que começar por uma regulamentação dos mercados de capitais que minimize os efeitos negativos da especulação pela especulação (aquilo que alguns autores designam por economia de casino, onde se “aposta” na subida ou descida da cotação de um produto financeiro como se se estivesse a apostar no “preto” ou no “vermelho” de uma roleta), que imponha limites adaptados à realidade para os volumes de transações de produtos derivados (como explicar que anualmente se negoceiam nas bolsas mundiais contratos sobre mercadorias que representam várias vezes a respectiva produção mundial) e que, numa palavra, reconduza os mercados de capitais àquilo que nunca deviam ter deixado de ser – um meio de financiamento alternativo para as empresas.
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[1] Na reunião estiveram as seis maiores economias da zona euro (Alemanha, Inglaterra, França, Itália, os quatro países com assento no G7 e a Espanha e a Holanda), os presidentes do Eurogrupo, da Comissão Europeia e do BCE e o presidente em exercício, o primeiro ministro checo Mirek Topolanek.
[2] Veja-se a notícia «Clinton apela à China para que continue a comprar dívida dos Estados Unidos» no JORNAL DE NEGÓCIOS.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

O IMPÉRIO DA IMPUNIDADE

Não têm faltado nos últimos dias notícias das mais variadas origens a reportarem o que se pode qualificar como um estado geral da falência de valores.

Depois da revelação dos esquemas fraudulentos de Bernard Madoff e de Allen Stanford (ambos inseridos no “fabuloso mundo financeiro” e envolvendo o recurso ao famigerado esquema de Ponzi, já aqui dissecado) e da súbita difusão de novas notícias sobre o “estranho caso do desaparecimento dos fundos para a reconstrução iraquiana”[1], ganhou também foros de notícia, em especial na imprensa britânica[2], a preparação das festividades de celebração do aniversário do Robert Mugabe, o presidente de um Zimbabwe onde o rendimento das populações não ultrapassa uns míseros cêntimos de euro.

Mas se o caricaturista Jeff Danziger retratou Mugabe e a elite militar que o apoia às costas do seu povo, como o faria sobre a inacreditável situação do desaparecimento de mais de 125 mil milhões de dólares (remetidos de Washington em maços de notas de 100) destinados à reconstrução das infraestruturas iraquianas?

Este caso, exemplo claro e elementar de corrupção e peculato, envolverá segundo as investigações mais recentes alguns dos militares responsáveis pela gestão do pós-guerra e o próprio Pentágono, uma vez que o desaparecimento de fundos deste montante e a evidência da total ausência de obras de reconstrução não poderiam ter passado em claro ao conjunto da estrutura militar.

À boa maneira americana, já existem nomes de responsáveis sob investigação – Anthony B. Bell, um coronel do exército já na situação de reserva, Ronald W. Hirtle, tenente-coronel da Força Aérea e Robert J Stein Jr, um antigo responsável para a zona centro-sul do Iraque, suspeitos de corrupção e apropriação de fundos, mas quando se constata a forma completamente leviana como muitas das nomeações tiveram lugar, fácil se torna concluir que além destes casos agora falados também importava esclarecer os mecanismos de corrupção e de nepotismo que a administração Bush favoreceu.

Escândalos como o do iraquiano, ex-gerente de uma loja de pizzas em Bona, responsável pela aquisição de armamento no Ministério da Defesa do Iraque, ou o do jovem americano (24 anos) oriundo de boas famílias republicanas a quem foi entregue a gestão da Bolsa de Bagdad obrigada a encerrar por este se ter esquecido de renovar o contrato de leasing das instalações[3], apontam para níveis de responsabilidade bem mais elevados, para o pântano de interesses e para a teia de corrupção urdida com a passagem pela administração Bush das grandes figuras neoconservadoras, como Donald Rumsfeld[4], Paul Wolfowitz[5] e Dick Chenney[6].

Se no caso de Mugabe se pode, e deve, falar da incomensurável imoralidade de um governante que se rodeia de todos os luxos quando o povo que governa vive na maior das misérias (nada que seja específico deste país nem do continente africano), no de Madoff ou de Stanford pode-se falar em verdadeiro crime de abuso de confiança (ainda que não seja menos verdade que burlas desta natureza apenas ocorrem se puderem contar com o beneplácito das autoridades e com a estupidez e a ganância dos “lesados” que acreditaram na possibilidade de beneficiarem de remunerações muito superiores ás do mercado financeiro), tudo se torna ainda mais grave no caso do desvio de fundos do Iraque, que não constitui apenas um crime de peculato e apropriação indevida de dinheiro mas, pior, um verdadeiro crime contra a humanidade por prejudicar de sobremaneira aqueles que sofreram as agruras de uma invasão injustificada.

Este não é, infelizmente, o único caso de corrupção registado no Iraque após a intervenção norte-americana; além do desaparecimento de armas temos ainda o não menos preocupante caso do esbulho do património histórico e cultural do Museu Nacional do Iraque e o saque da Biblioteca Nacional do Iraque (tema que abordei no “post” «O SAQUE DAS REFERÊNCIAIS CULTURAIS») que originaram incalculáveis prejuízos ao Iraque e à Cultura mundial e que permanecem por resolver até à data.

No conjunto todos eles representam uma forma desajustada de ver (e viver) uma realidade onde parece imperar um absoluto sentimento de impunidade e onde a apologia do interesse próprio e do individualismo cilindrou o que pudesse ter restado de probidade e de sentido de responsabilidade.
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[1] Entre as muitas notícias destaque-se esta do NEW YORK TIMES e outra do britânico THE INDEPENDENT, por chamar especial atenção para a sua dimensão.
[2] O TIMES ONLINE vai ao ponto de enumerar uma lista que inclui: 2.000 garrafas de champanhe (de preferência Moët & Chandon ou ’61 Bollinger), 8.000 lagostas, 100kg de camarão, 4.000 doses de caviar, 8.000 caixas de chocolates Ferrero Rocher, 3.000 patos e muito mais.
[3] Os dois casos foram referidos pelo THE INDEPENDENT, na notícia «A “FRAUD” BIGGER THEN MADOFF»
[4] Foi secretário de estado da defesa da administração de George W Bush (como já o fora no tempo de Gerald Ford) e um dos grandes obreiros da fundamentação para a reaplicação de torturas aos prisioneiros iraquianos e afegãos, além do seu envolvimento em mal esclarecidos casos de favorecimentos a empresas do sector farmacêutico (Searl) e agro-alimentar (Monsanto) e ainda a famigerada epidemia da gripe aviaria (assuntos que abordei no “post” «PORQUE NÃO RESULTAM AS CRÍTICAS A RUMSFELD?»
[5] Foi subsecretário de estado da defesa da administração de George W Bush no período da invasão do Iraque e depois presidente do Banco Mundial, organismo donde foi afastado sob a acusação de nepotismo (assunto que abordei nos “posts” «QUEM O MAU AMA… BOM LHE PARECE» e «A CULPA É DO MACACO»).
[6] Vice-presidente na administração de George W Bush, tinha sido secretário de estado da defesa na administração de George Bush (pai) e ex-presidente do conselho de administração da Halliburton, conglomerado que engloba empresas dos sectores químico (incluindo petróleo) e construção. Durante toda a sua passagem pela administração foram correntes os rumores e as notícias (como esta da CBS) de que manteria intactas as suas ligações àquela empresa, factos que talvez expliquem o teor de uma notícia do DN, sob o título «EUA alvo de inquérito por corrupção no Iraque», refere mesmo «...a possibilidade da Halliburton, empresa ligada ao ex-vice-presidente Dick Cheney, estar envolvida no esquema de corrupção e fraude e que a investigação feita à aplicação da resolução da ONU, petróleo por mantimentos, terá sido para desviar as atenções do que se passava no Iraque».

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

CHÁVEZ (OU OUTRO QUALQUER) PARA SEMPRE...

O referendo que no último fim-de-semana teve lugar na Venezuela eliminou a limitação constitucional do número de mandatos.

Não faltou, por isso, quem glosasse o tema em crónica (como o fez Manuel Queirós em «
CHÁVEZ ATÉ ‘DOIS MIL SEMPRE’») ou em imagens (como o caricaturista Dave Brown) ou de pronto referisse de forma depreciativa o “slogan” «CHÁVEZ PARA SEMPRE», esquecendo talvez a verdadeira essência do problema.

É que se uma das leituras possíveis do resultado do referendo é a de uma possível perpetuação de Hugo Chávez como presidente da república, aquele simples resultado não garante nada disso. Mesmo discordando da eliminação do princípio da limitação do número de mandatos, e por isso mesmo encarando o resultado do referendo com as devidas cautelas, nada garante que a opção realizada constitua uma catástrofe para a Venezuela.

Mesmo reconhecendo os evidentes tiques populistas e ditatoriais de um personagem como Hugo Chávez, parece-me mais importante referir aqui outros sinais que muitos têm deixado passar mais ou menos em claro, ou que raramente têm sido sistematizados.

Esta não foi a primeira tentativa para fazer aprovar a emenda constitucional; a anterior fracassou e na sua sequência os partidários de Chávez cerraram fileiras voltaram à luta e mudaram o resultado. Isto é, além de um claro sinal de mobilização, um factor que importa não esquecer nem escamotear: os “chavistas” apresentam-se organizados e coesos.

Enquanto alguma imprensa se fez eco de possíveis fraudes eleitorais[1], a generalidade reconhece a validade de um resultado como os próprios EUA já o fizeram. Para a história ficará uma taxa de participação de cerca de 70% do eleitorado (um valor que faz inveja a muitos sufrágios em países tidos como bem mais democráticos) e uma diferença de quase dez pontos percentuais (54,36% contra 45,63%), que permite poucas dúvidas sobre o resultado.

Este resultado e a popularidade de Chávez poderão ser fruto da actual riqueza da Venezuela, que por estar alicerçada numa matéria-prima, como o petróleo, objecto de grande procura estará directamente ligada à sua existência e à capacidade que os “chavistas” revelarem para a utilizar em maior benefício da maioria da população. Embora mal recebidas pela generalidade dos investidores, as decisões até agora tomadas, incluindo a da nacionalização dos sectores da electricidade e das telecomunicações, têm recebido bom acolhimento interno, tudo factos que terão ajudado a subir a popularidade do líder e a fragilizar a oposição.

No plano regional, mesmo entre avanços e recuos, Chávez tem cimentado a sua posição de grande candidato a líder, que mais não seja junto de países como a Bolívia, a Nicarágua e Cuba, com os quais partilha o sonho da revolução Bolivariana, por muito que isto doa aos EUA (que seguindo a velha doutrina Monroe[2] continuam a considerar a América Latina como o seu quintal privativo) ou ao próprio Brasil que assim vê desafiada a sua pretensão de potência regional.

Talvez para os não sul-americanos isto possa parecer ridícula a invocação de Simão Bolívar – para mais em pelo século do auge da globalização – mas ao que tudo indica, continua bem viva na região a memória daquele que os libertou do colonialismo espanhol, que além de ter imposto pela força a religião católica parece também ter difundido profundamente as raízes da cultura “caudilla[3], fenómenos talvez com ligações bem mais profundas (como sugere este “cartoon” de Rainer Hachfeld) do que muita gente gostará de assumir.

De qualquer forma, talvez os receios até se possam revelar infundados pois a percentagem expressa nas urnas dos apoiantes do “chavismo” têm apresentado alguns sinais de enfraquecimento e a própria conjuntura de recessão mundial, com o inevitável decréscimo das receitas do petróleo, poderá representar obstáculo bastante à reeleição de Hugo Chávez...

De uma forma ou outra, o perigoso precedente de permitir a perpetuação no poder, seja de quem for, constitui um sinal sempre negativo sobre a maturidade política de qualquer eleitorado.
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[1] Veja-se a título de exemplo esta notícia do CORREIO DA MANHÃ.
[2] James Monroe foi o quinto presidente dos EUA, entre 1817 e 1825, deixou o seu nome indissociavelmente ligado a uma doutrina com o seu nome que repudiava a intervenção da Europa nos países do continente Americano e atribuía aos EUA o papel de mediadores e orientadores das políticas externas dos países latino-americanos sob a máxima: A América para os americanos.
[3] Refiro aqui o conceito de cultura “caudilla” como expressão para definir uma liderança autoritária de natureza político-militar. Este tipo de regimes, mais ou menos ditatoriais, foram particularmente comuns na América Latina, nos séculos XIX e XX, quando pontificaram alguns líderes eminentemente militares; a suas origem pode ser remontada ao período final do Império Romano, quando pontificaram as figuras dos “césares” e foram recuperadas na Europa em meados do século passado com o regime nacional-socialista do alemão Adolf Hitler, ou os regimes fascistas do italiano Benito Mussolini ou do espanhol Francisco Franco, que perdurou em Espanha até 1975.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

POLÍTICA FISCAL OU POLÍTICA DE AVESTRUZ?

Quando escrevia o “post” anterior (A CRISE, O EMPREGO E O RENDIMENTO) anotei, mentalmente, a necessidade de também abordar a questão da política fiscal enquanto componente de um programa económico de combate à crise, mas por não assumir a mesma relevância estrutural de políticas como a da limitação da emissão de moeda à esfera pública ou a da inversão do actual modelo de distribuição da riqueza, fui deixando aquela questão para uma outra oportunidade.

Uma notícia do PUBLICO que afirma que o «Estado “paga” a grupos bancários para investir no estrangeiro» e outra do DIÁRIO DIGITAL que garante que o «Regime fiscal dos fundos de investimento está desadequado» por revelarem à evidência o anacronismo de políticas fiscais ditadas em alegado benefício dos pequenos investidores que acabam beneficiando os grandes interesses económicos (até porque os pequenos investidores sensatos há muito abandonaram um mercado distorcido em benefício dos grandes operadores) e prejudicando até o erário público, levou-me a pegar no tema mais cedo do que o esperado.


Para muita gente, em Portugal, a expressão benefícios fiscais significa a oportunidade de quem apresenta grandes rendimentos poder pagar menos impostos, ou na linguagem mais técnica o recurso a práticas de planeamento fiscal agressivo[1]. Como em muitas outras situações, bem avisada anda a “vox populis” pois lendo o conteúdo daquelas notícias rapidamente nos apercebemos que, seguindo a linha de pensamento dominante, um grupo de “conhecedores” tem aproveitado os benefícios fiscais gizados para atrair os pequenos aforradores para o investimento em fundos mobiliários e imobiliários (com compreensíveis benefícios face aos elevados riscos induzidos pela sua reduzida cultura financeira e fraco conhecimento dos mercados de capitais).


Segundo uma auditoria da Inspecção-Geral de Finanças, citada pelo PUBLICO «"Os principais participantes [nos fundos de investimento] são grandes investidores, a quase totalidade dos investimentos é efectuada fora do território nacional e a maioria dos fundos de investimento imobiliário são fechados" - isto é, não permitem a entrada a novos investidores - "e destinam-se a gerir patrimónios empresariais ou particulares"», fenómeno que como está bem de ver não só subverte o conceito do benefício, como resulta em óbvio prejuízo da receita fiscal (a notícia refere mesmo que na «amostra analisada pela IGF, a taxa média de tributação foi de 14 por cento, devido ao facto de 25 por cento dos rendimentos terem sido gerados por mais-valias de acções isentas ou quase isentas de imposto») mas numa razoável mais-valia[2] para os investidores “espertos”.


Tudo isto era já suficientemente grave, mas para que não restem quaisquer dúvidas sobre os verdadeiros interesses representados por aqueles que nos têm governado (desde os que criaram o “benefício” até aos actuais); veja-se que aquelas conclusões constam de um trabalho realizado há mais de 16 meses e que continua a aguardar que alguma decisão seja tomada sobre as propostas de correcção…


É evidente que além da óbvia prática de uma política de avestruz, os responsáveis pelas finanças públicas nacionais revelam ainda um total desinteresse por aquilo que os teóricos da actividade designam pelo princípio da equidade e um ainda maior desrespeito por aquele que deveria ser o “leit motiv” do exercício dos seus cargos públicos: a gestão da coisa pública em benefício da maioria e não em prejuízo desta para benefício de uma minoria.
E de que minoria se trata?


A de um conjunto de “conhecedores” das entrelinhas das leis e dos despachos normativos (muitas das vezes aconselhados pelos que intencionalmente produziram as lacunas) que além do mais detém o poder financeiro para multiplicar aquele efeito.

E quem voltamos a encontrar envolvido em mais esta manigância (perfeitamente legal mais eticamente condenável)?

O conjunto do sistema financeiro que se não originou o movimento nada fez para o restringir e não escamoteou a hipótese de cobrar mais umas comissões.

Tudo isto revela à evidência a completa ineficácia da política fiscal enquanto mecanismo orientado para a redistribuição da riqueza – continuam a ser os que apresentam maiores rendimentos a incorrer em menores custos fiscais – além de demonstrar a medonha falácia que foi o tão propagandeado “capitalismo popular”.

Esta ideia, popularizada nas décadas de 80 e 90 do século passado quando os governos da época, liderados por Cavaco Silva, deram início a uma política de rápida privatização de muitos dos sectores de actividade que tinham sido nacionalizados na sequência do 25 de Abril (seguindo religiosamente os ditames do FMI e do Consenso de Washington[3]), segundo normas que só muito pontualmente protegeram os interesses dos pequenos investidores. Passou então a ser norma a venda das empresas públicas a preços normalmente inflacionados (opção que poderá ter aumentado a receita encaixada pelo Estado em cada operação mas em nada contribuiu para a dispersão do capital das empresas por um número elevado de pequenos accionistas, como se anunciava ser intenção) e à venda de grandes lotes de capital a interesses manifestamente monopolistas, práticas que se em pouco contribuíram para a dinamização do tal mito do “capitalismo popular” foram seguramente responsáveis por parte significativa dos prejuízos em que acabaram por incorrer os pequenos aforradores incautos.

Como se conclui de tudo isto, não só a política fiscal se revela insuficiente para combater de forma eficiente os desequilíbrios gerados no processo de distribuição da riqueza, como ao longo das últimas décadas esta tem sido utilizada não para minimizar aquele fosso mas sim para o ampliar.
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[1] Quando nos idos de 80 um ministro das finanças se viu envolvido numa polémica em torno da aquisição de uma habitação, na modalidade de permuta, e na fuga ao pagamento do respectivo imposto, a expressão planeamento fiscal agressivo entrou no léxico corrente como sinónimo de “esquema” pouco claro para redução ou eliminação da tributação fiscal. A expressão planeamento fiscal contém já em si a noção de forma de minimizar os custos fiscais, dentro dos limites integrais da lei, o que pode ser alcançado mediante a opção por negócios jurídicos com menor ou nula tributação.
[2] Basta lembrar que a taxa retenção fiscal é de 20% ou 25% conforme a origem dos rendimentos sejam estrangeiros ou nacionais.
[3] Consenso de Washington foi a designação que popularizou o conjunto de medidas de natureza económica (com especial incidência nas ideias neoliberais e monetaristas de livre mercado e livre concorrência, da minimização do papel do Estado na economia e de desregulamentação de mercados e actividades) que o FMI e o Banco Mundial passaram a aplicar em todas as economias onde eram chamados a intervir.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A CRISE, O EMPREGO E O RENDIMENTO

Quando em meados desta semana o “patrão” da JERÓNIMO MARTINS, Soares dos Santos, abordou a situação da crise económica durante a sua intervenção no Congresso do 10.º aniversário da Associação das Empresas Familiares e criticou os governantes pela demagogia das suas declarações contra os empresários e das medidas tomadas para combater a crise, ainda não eram conhecidos os últimos dados do INE que confirmam a continuação da quebra do PIB (-2% no quarto trimestre de 2008).

Como é do conhecimento geral uma economia em recessão significa um rápido crescimento do desemprego e mesmo que, como o escreveu o DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Soares dos Santos tenha garantido que não tenciona recorrer a tal prática, essa não é a actuação geral, mas sim a que referia no final de Janeiro o JORNAL DE NEGÓCIOS quando escreveu que «Empresas mundiais anunciam corte de 150 mil empregos numa semana».

O chamado flagelo do desemprego não é apenas um problema, e dos graves, de natureza social, é também um problema de natureza económica e de complicada resolução dentro dos cânones económicos vigentes. Qualquer que seja a escola de pensamento (desde a ultraliberal até à mais keynesiana), em termos económicos é inevitável o aumento do desemprego em períodos de recessão económica, pois o factor trabalho é entendido como uma das “peças” da máquina produtiva e uma daquelas cujo “corte” é mais fácil, rápido e que melhores reflexos apresenta sobre os resultados.
Duvidam?
Então vejam estas notícias do LE MONDE, que na passada sexta-feira anunciava que a França regista a pior crise desde 1975 (ver a primeira notícia «La France connait la pire récession depuis 1975» e, em simultâneo, que os accionistas das empresas do CAC40[1] foram poupados pela crise (e a segunda «Les accionaires des entreprises du CAC40 épargnés par la crise»).
Embora a conclusão possa ser extemporânea e precipitada, porque em 2008 o aumento do desemprego apenas estava a conhecer os primeiros casos, nem por isso deixa de ser reveladora da verdadeira dimensão da crise que se regista e que em poucas palavras se poderia sintetizar assim: lucros para uns quantos e sacrifícios para os restantes.

Não será pois de estranhar que se olhe com crescente preocupação a subida dos números do desemprego e dos efeitos que eles terão sobre a qualidade de vida das famílias.

Mas o problema do desemprego não se reflecte apenas na dimensão social e no empobrecimento das camadas economicamente mais frágeis da população; contrariamente ao que defendem as correntes mais liberais do pensamento económico, para as quais o desemprego é em si um importante factor para a manutenção de salários baixos (e, logo, de maiores lucros), o desemprego é também factor de agravamento das crises económicas e em especial, como sucede com a actual, quando os mercados se retraem de forma acentuada. E este é um dos grandes dilemas que a corrente neoliberal e monetarista persiste em ignorar, talvez por não apresentar qualquer solução credível, pois uma subida acentuada nos níveis de desemprego vai-se repercutir numa inevitável redução da procura e na criação de um consequente ciclo de sobreprodução, tanto mais que grande parte desta está orientada para a satisfação de necessidades básicas (aquela relativamente à qual os sectores mais endinheirados revelam menor elasticidade[2]) e quanto maior esta for e mais as empresas respondam com a mezinha de cada vez maior número de despedimentos, menores serão as possibilidades de verem crescer a procura dos produtos que fabricam ou comercializam.

Quando os elevados rendimentos das camadas enriquecidas da população se revelam cada vez menos adequados ao relançamento das economias e é cada vez maior a preocupação dos que ainda têm trabalho em preservar os seus parcos rendimentos (é proverbial a tendência para evitar gastos em épocas de crise), estarão reunidas todas as condições para o aprofundamento da crise.

Esta invulgar propensão ao aforro das famílias está-se a revelar como mais um importante factor de estrangulamento das economias já grandemente debilitadas pelas revelações das manigâncias financeiras associadas ao sector financeiro e à especulação[3] e perante ela as medidas que os governantes nacionais e internacionais têm vindo a propor soam particularmente inadequadas (demagógicas, na expressão de Soares dos Santos) ou até inaceitáveis (na perspectiva dos que vêem esfumar-se os seus postos de trabalho).

Estaremos perante um círculo vicioso e sem solução, ou esta está à vista de todos mas aqueles que grandemente têm beneficiado com o modelo económico em vigor recusam-se a contemplar a sua aplicação?

Na realidade a solução é óbvia e bem evidente para todos, salvo para quem a não quer ver... Se um dos problemas da recessão económica é a redução da procura (principalmente representada pelo consumo das famílias, cuja retracção origina que o investimento das empresas seja protelado até à reanimação dos mercados), então a óbvia solução será a promoção da sua reanimação, não da forma como a administração Bush o tentou (alguém ainda se lembra do montante do estímulo fiscal que era suposto as famílias terem convertido em consumo de bens e serviços) mas através de uma nova política de distribuição de rendimentos que, relançando o poder de compra da maioria da população, reanime o conjunto da actividade económica.

Comprovado o fracasso prático de estímulos fiscais e outras medidas pontuais, como forma de redistribuição da riqueza, torna-se cada vez mais óbvia a necessidade de trazer para o debate outras vias para o atingir. A primeira e mais óbvia – a do aumento generalizado dos salários – será naturalmente recebida pelas associações patronais e pelos defensores do liberalismo económico como mais uma inaceitável intromissão do Estado na esfera privada e no livre funcionamento do mercado; assim, só resta ponderar a hipótese de criação de um modelo assente na distribuição de um rendimento garantido, segundo o princípio do pagamento de um dividendo “per capita” em função do PIB.

Para quem comece já a questionar sobre a viabilidade de semelhante medida, recordo que modelos desta natureza estão actualmente em vigor e que um dos locais onde isso acontece é nos EUA, ou melhor no estado do Alasca, onde desde o início do processo de exploração petrolífera e como forma de tentar fixar definitivamente muita da mão-de-obra que para lá se deslocou para a realização das infraestruturas petrolíferas, foi decidida a criação de um fundo (o Alaska Permanent Fund) alimentado pelas receitas das concessões petrolíferas cujo rendimento anual é distribuído pelos residentes.

No caso de economias, como a portuguesa, que não dispõe do recurso a este tipo de receitas sempre poderão recorrer a receitas provenientes de outras concessões (mineiras, aquíferos, produção hidroeléctrica, eólica, etc.) ou condicionar a sua aplicação à capacidade dos Estados retirarem à banca comercial o monopólio da emissão de moeda.

A consagração universal do princípio da distribuição de um rendimento garantido não constitui apenas uma medida de combate à crise económica; será, além de uma medida de justiça social (o PIB resulta da contribuição de toda a população para a produção nacional, pois se os que têm emprego contribuem de forma directa, os que o não têm contribuem indirectamente por via do consumo), uma boa forma de começarmos a preparar-nos para um futuro em que, graças aos desenvolvimentos tecnológicos e aos ganhos de produtividade, dificilmente existirão empregos para toda a gente.
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[1] Designação do índice bolsista do Mercado francês (cujo nome deriva da expressão Cotation Assistée en Continu (Cotação Assistida em Contínuo), que engloba as 40 acções com melhor desempenho e maior liquidez.
[2] Entenda-se aqui o conceito econométrico de elasticidade (relação entre a variação de duas variáveis) no sentido de que ninguém, por maior que seja o seu rendimento vai passar a comer dois almoços ou dois jantares por dia.
[3] No caso da economia americana, a esta apreciação dever-se-á ainda acrescentar os gastos desmesurados com as invasões do Afeganistão e do Iraque e o efeito devastador da deslocalização da produção para os países com mão-de-obra mais barata.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

TUDO POUCO CLARO

Confirmados os resultados que as sondagens vinham anunciando para as eleições gerais em Israel, só terá mesmo faltado um candidato que fizesse jus ao humor do caricaturista Jiho, porque fora isso houve-os para quase todos os gostos.

Os trinta e três partidos que se apresentaram a escrutínio para disputarem os 120 lugares do Knesset[1] voltaram como habitual a não produzir uma maioria governativa e as eleições registaram uma forte abstenção[2], não só da maioria judaica mas ainda maior da minoria árabe que forte nos seus 20% da população deveria constituir uma das principais forças políticas, mas que desmobilizada e fragmentada em várias organizações não terá atingido 10% dos votos contabilizados.

A fragmentação é aliás a principal característica da cena política israelita que regista entre as principais forças políticas, agrupamentos como o KADIMA (o partido de centro direita criado por Ariel Sharon, agora dirigido por Tzipi Livni depois do abandono de Ehud Olmert), o AVODA (partido trabalhista e sionista dirigido por Ehud Barak) e o LIKUD (nacionalista e conservador, principal força da oposição e onde pontifica o ex-primeiro-ministro Benjamin Netanyahu), até ao ultranacionalista Yisrael Beiteinu (dirigido por Avigdor Lieberman), os ultraortodoxos (o sefardita[3] Shas, e o ashkenaze[4] Judaísmo Unido da Torah), os movimentos nacionalistas religiosos – Ihoud Leoumi (União Nacional) et Ha-Bayit Ha-Yehudi (Fórum Judaico) – tradicionais apoiantes da instalação dos colonatos, os pequenos partidos de esquerda onde pontifica o pacifista e social-democrata Meretz e até um partido dos reformados – o GIL – cujo programa se centra principalmente no melhoramento das condições das pensões e dos seguros de saúde dos aposentados e pensionistas em Israel.

Esta evidente mistura de conceitos religiosos com princípios laicos, de preocupações sociais com outras de carácter quase pessoal e uma quase total ausência de programas políticos baseados em diferentes abordagens ideológicas, a que se adiciona uma clara paranóia securitária que insiste em ampliar as ameaças e fomentar um clima de guerra que será afinal o principal ponto de união de uma nação que na realidade se encontra dividida entre judeus ashkenazes e sefarditas, entre ultraortodoxos e laicos e entre ricos e pobres, divisões que poderão vir a conhecer um desfecho violento, tanto mais que o ódio parece ser um sentimento bem comum por aquelas paragens.
Ainda assim, segundo informação da
BBC NEWS da votação deverá resultar a seguinte distribuição de lugares no parlamento:

merecendo destaque o facto de não se terem confirmado as previsões das sondagens, que davam uma clara vitória ao LIKUD, e de apesar dos apelos ao boicote por alguns grupos da minoria palestiniana, o conjunto dos seus representantes (Hadash, United Arab List e Balad) ter obtido cerca de 10% da votação e tantos quantos os do partido ultraortodoxo Shas.

No rescaldo de umas eleições antecipadas em consequência do insucesso de Tzipi Livni para formar uma coligação no anterior quadro parlamentar e onde não se registou uma clara vantagem de qualquer dos partidos, os líderes do KADIMA e do LIKUD afirmam-se prontos para assegurar a chefia do próximo governo. E se Tzipi Livni reivindica esse direito com base no facto do seu KADIMA ter sido o partido mais votado, já Benjamim Netanyahu sustenta a sua posição no facto das forças de direita disporem de vantagem na contagem dos lugares parlamentares.

Embora muitos analistas não tenham deixado esquecer o facto de o próximo governo israelita dever vir a confrontar-se com um número crescente de problemas (desde o perpétuo conflito com os palestinianos, a necessidade de estabelecer negociações com vizinhos incómodos como a Síria e a de enfrentar a questão do nuclear iraniano, já para não falar no aprofundamento da crise económica mundial que a avaliar pela campanha eleitoral que terminou parece não fazer parte das preocupações dos israelitas) tal não parece atemorizar Livni e Netanyahu, ávidos em anunciarem a respectiva candidatura à chefia do governo. A avidez é de tal natureza que, segundo informa o YEDIOTH AHRONOTH, a líder do KADIMA já esqueceu as afirmações proferidas durante a campanha eleitoral que excluíam a possibilidade de associação com a extrema-direita representada pelo ISRAEL BEITEINU e já se reuniu com Avigdor Lieberman, o líder daquele grupo, para negociar o seu apoio.

Porque, infelizmente, as incongruências dos políticos são cada vez mais a imagem comum, existem mais que fortes indícios de que qualquer que seja a coligação a emergir destas eleições o principal problema da região continuará sem solução à vista. Com Livni ou com Netanyahu, do lado israelita, com Obama na Casa Branca, com a Fatah ou com o Hamas, do lado palestiniano, a vida diária dos milhões de palestinianos que vivem em Israel, na Cisjordânia ou na Faixa de Gaza vai continuar a arrastar-se naquilo que raia a indignidade humana.
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[1] O termo em hebraico significa literalmente “a assembleia” e é a designação do Parlamento de Israel.
[2] De acordo com esta notícia do YEDIOTH AHRONOTH, a duas horas do fecho das urnas pouco mais de 50% dos eleitores tinham votado.
[3] O termo sefardita aplicava-se originalmente aos descendentes dos judeus oriundos da Península Ibérica (Sefarad), mas com o tempo começou a incluir as comunidades oriundas do Norte de África por esta ter sido uma das primeiras regiões onde aqueles procuraram refúgio após o início das perseguições da Inquisição católica.
[4] O termo ashkenaze designa os judeus oriundos da Europa Central e Oriental (provém da designação hebraica da Alemanha – Ashkenaz).

domingo, 8 de fevereiro de 2009

A QUEDA DE UM ÍDOLO

Uma das ideias que pode ressaltar a quem tente acompanhar a evolução da crise económica, face ao manancial de informação que vai dando conta das contínuas quedas nas cotações bolsistas, do volume crescente dos fundos públicos destinados a injectar nos balanços dos bancos e das grandes empresas, da volatilidade de matérias-primas como o petróleo (cujo preço varia ao sabor de notícias sobre os volumes de reservas, a descoberta de novas jazidas ou mais uma qualquer acção armada no Médio Oriente), é a de que na prática toda a gente parece desorientada.

Banqueiros e autoridades reguladoras trocam acusações sobre a responsabilidade no eclodir da crise; os políticos (quer estejam no governo ou na oposição) continuam a apontar medidas avulsas e todo o somatório de boas intenções que se lhes afigure que rendam votos; até os “ricos” e os “pobres”, reunidos em cimeiras, não conseguem produzir melhores contributos e a maior parte dos habituais opinantes[1] parece insistir na velha panaceia de adicionar crédito em cima de crédito, na expectativa que com o tempo a economia retome.

Como deixei claro no post” anterior, é minha convicção que o crédito longe de constituir a solução é ele próprio parte fundamental da actual crise. Não que a existência da possibilidade de recurso a capitais alheios (bancários ou não) não seja um importante factor para o aumento do investimento, mas pelo efeito perverso que o crédito bancário introduziu nas economias quando, criado segundo o livre arbítrio dos banqueiros, passou a alimentar o processo de acumulação de juros em detrimento do natural mecanismo económico da criação de riqueza.

Por outras palavras, quando o crédito deixou de resultar dos ganhos acumulados nas actividades produtivas e de existir em resposta às necessidades de investimentos na esfera produtiva da economia (agricultura, industria, comércio e serviços), para ser criado a partir da simples vontade dos banqueiros e a existir para financiar a especulação financeira, passámos a atravessar crises de ciclos cada vez mais curtos.

Estas simples constatações deveriam bastar para que as soluções propostas, do tipo das que reputados economistas como o já citado Nouriel Roubini, Joseph Stiglitz ou Paul Krugman, sejam de duvidosa eficácia. É que soluções do tipo keynesiano[2] resultaram relativamente bem na primeira metade do século passado quando o grau de interdependência das economias era francamente menor que o que agora se verifica e não se tinha ainda iniciado o processo de deslocalização da produção em busca dos menores custos de mão-de-obra, fenómeno que não só atirou para o desemprego milhões de trabalhadores como lhes recusa a possibilidade de regresso à situação de activos.

Assim, a redução do preço do dinheiro (juro) não terá o efeito que teve no século passado na reanimação da actividade económica (salvo nas tais regiões onde se concentrou a produção por nelas se praticarem salários muito baixos); é certo que poderá proporcionar algum alívio às empresas (que não tenham cessado a sua actividade) e às famílias sobreendividadas, mas estas últimas nunca teriam chegado a esta situação se ao longo do tempo não tivessem visto persistentemente degradado o seu poder de compra e o incentivo ao seu endividamento não fosse a única forma das empresas continuarem a dispor de mercados.

Constatando-se que a origem das dificuldades se encontra numa óbvia distorção dos mecanismos de distribuição da riqueza – a começar pela destruição de empregos e a concluir-se nas políticas fiscais orientadas para o benefício dos maiores rendimentos – agravada ainda pelo facto de há muito tempo os Estados terem oferecido o monopólio da criação de moeda a interesses privados, como esperar que os responsáveis pela situação proponham agora as melhores soluções para o problema?

As operações de salvamento (bailout) não têm passado de novas operações de crédito para pagamento de créditos vencidos ou em vias de vencimento e o seu real efeito sobre a economia tem-se reduzido a um quase zero absoluto. Se em lugar de assegurar a sobrevivência dos bancos que se colocaram a si próprios em situações de quase insolvência (seja por excesso de endividamento, seja por excesso de exposição nos mercados de produtos de derivados ou por pura ganância especulativa), os governos actuassem de forma a aumentar o rendimento disponível das famílias e assim estimulassem as economias pela via da procura, o resultado seria seguramente mais rápido e mais efectivo.

A criação de um sistema económico baseado na apropriação da riqueza planetária por uma ínfima minoria não é apenas imoral e condenável, é também economicamente insustentável, como esta crise bem o demonstra. A concentração da riqueza numa elite tecnicamente dotada, tendo como óbvia contrapartida uma drástica redução no rendimento disponível da vasta maioria que, forçada a viver a crédito contribui duplamente para o enriquecimento da minoria, não pode senão culminar numa crise de retracção do consumo logo que ocorre um primeiro sinal de redução do crédito.

Esta realidade apenas poderá ser invertida se, e quando, for revisto o mecanismo de distribuição da riqueza produzida (seja através de uma política de redistribuição da riqueza radicalmente diferente, seja através da distribuição de um dividendo universal[3], seja através de uma política fiscal mais equitativa, seja através de uma combinação de todas elas) e se terminar com o monopólio privado da emissão de moeda, para que o crédito necessário ao desenvolvimento e ao crescimento das sociedades seja encarado como o bem público que deve ser.

Isto não implica o fim obrigatório da chamada banca comercial mas a sua indispensável adaptação a uma nova realidade, onde o seu papel de guarda de valores e de agente de redistribuição de capital (entre os sectores naturalmente aforradores e aqueles que procuram capital para complementar os seus projectos de investimento) decorra sob estrito controlo da regulação pública.

O regresso do processo de criação de moeda à esfera pública deverá assegurar não só vias menos onerosas de acesso aos financiamentos necessários ao desenvolvimento económico, como, caso seja acompanhada de outras medidas orientadas para a redistribuição da riqueza, contribuir para o progressivo desendividamento das famílias; já a implementação de regras mais restritivas no controlo dos bancos deverá reduzir substancialmente o risco originado pelos excessos na especulação.

Escusado será recordar que grandes tormentas exigem grandes medidas e que esta hipótese de actuação só atingirá uma eficácia reconhecida quando for um modelo de aplicação generalizada, facto que reafirma a necessidade de elaboração de estratégias internacionais e exclui soluções de dimensão ou âmbito meramente nacional ou regional.

Estarão os nossos decisores à altura de entender este desafio? Ou continuarão, embalados no remanso dos ganhos do passado, convictos que as velhas mezinhas voltarão a produzir milagres?
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[1] Segundo noticiou o JORNAL DE NEGÓCIOS, até Nouriel Roubini (o “guru” que é apontado como o primeiro a ter previsto a chegada da crise) preconiza a descida da taxa de referência do euro para ZERO como forma de relançamento da actividade económica, por via do crédito.
[2] John Maynard Keynes (1883–1946), economista inglês considerado um dos mais influentes economistas do século XX e considerado o pai da teoria macroeconómica, defendeu o papel regulador do Estado na economia, através de medidas de política monetária e fiscal e de investimentos directos, para promover políticas anti-cíclicas, principalmente em períodos de crise. Foi nas suas teorias que se baseou o essencial da política norte-americana de combate à Grande Recessão e que ficou conhecida com a designação de New Deal.
[3] O conceito de dividendo universal resulta da aplicação prática do princípio de que as riquezas naturais são propriedade de todos os cidadãos, pelo que a cada um será devida uma contrapartida pela venda, arrendamento ou uso privado desses mesmos bens.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O PROBLEMA É O CRÉDITO

Quando os cenários macroeconómicos se apresentam pouco animadores é natural que as pessoas procurem os mínimos sinais de que algo vai melhorar.

Talvez por isso as notícias que referem a regular descida da EURIBOR sejam particularmente bem recebidas (como esta do DIÁRIO ECONÓMICO), mesmo quando o seu real efeito sobre a economia parece bem diverso, como refere estoutra do DIÁRIO DE NOTÍCIAS que assegura que os «bancos já cobram juros mínimos de 10% às PME» e apenas confirma, como há dias anunciava a página on-line PORTUGAL DIÁRIO, o que também muitas famílias sentem quando os bancos «aproveitam a renegociação para subir “spreads».

Esta realidade – descida da taxa do BCE e subida das taxas de juro praticadas pelos bancos comerciais – é apenas mais uma das faces da actual crise. Quando o FED e o BCE (os bancos centrais americano e europeu) deram início à estratégia de combate à recessão mediante injecções de liquidez na banca e redução das taxas de juro das respectivas moedas tê-lo-ão feito na expectativa de que a crise de liquidez fosse colmatada, recuperada a confiança no mercado interbancário e que a descida das taxas facilitasse a retoma da actividade económica.

A ideia de Ben Bernanke e de Jean Claude Trichet (respectivamente presidentes do FED e do BCE), talvez pudesse ter resultado se a crise despoletada pelo “subprime” se tivesse resumido, como pensavam, a mais uma bolha especulativa. Sucede é que instalada a desconfiança entre os bancos (especialmente receosos da solvabilidade dos parceiros), estes adoptaram o comportamento que melhor os poderia proteger – os que dispunham de liquidez reduziram ao mínimo as cedências de fundos aos habituais parceiros de negócios. ´

Este elementar mecanismo de auto-preservação teve como primeira consequência a subida das taxas interbancárias, com base nas quais é fixado o indexante mais utilizado nas restantes operações de crédito no espaço do euro: a EURIBOR[1]. A importância desta taxa, que depende em primeira instância da taxa directora do BCE e serve de referencial para praticamente todos os financiamentos que ocorrem na zona Euro, terá motivado a decisão daquele banco central de reduzir até ao valor de 2% a sua taxa directora.

Segundo os defensores das teorias monetaristas[2] os esforços mais ou menos concertados entre os principais bancos centrais deveriam estar a produzir efeitos na reanimação da economia, porém o que assistimos é a algo bem diverso, seja porque a teoria nunca contemplou senão os instrumentos monetários (quantidade de moeda e taxa de juro) e a economia, no seu sentido mais amplo, engloba variáveis muito mais complexas, seja porque a crise que atravessamos ultrapassa em muito os contornos de uma mera crise financeira.

A redução das taxas directoras não está a ter o desejado efeito de relançamento da economia porque, contrariamente ao afirmado por muitos especialistas o verdadeiro problema não está na falta de liquidez (ou até de confiança), mas sim no excessivo endividamento dos Estados, das empresas e das famílias, processo que foi suportado e alavancado em pressupostos de valorização irreal dos activos (empresas e imóveis).

Talvez mais conscientes desta realidade (ou agindo por mero oportunismo de mercado) e para tentar minimizar ou reduzir o risco, os bancos estão a aumentar os “spreads” sob o argumento de que o risco de crédito é agora maior.

Este argumento não sendo despropositado nem por isso deixa de merecer alguns reparos, como aquele que resulta do facto de ainda há bem pouco tempo os mesmos bancos não mostrarem a mínima preocupação por tal situação, concentrando-se apenas em aumentar regularmente os volumes de crédito contratado. Este comportamento egocentrista, fruto da ânsia dos administradores dos bancos quererem ver crescer anualmente os respectivos prémios, e de verdadeira miopia financeira, a par com a fragilidade financeira da generalidade do tecido empresarial português (em consequência da diminuta dotação de capitais próprios), resultou na situação de sobreendividamento que hoje se conhece.

Por outras palavras, o problema não está no crédito; o problema é o crédito... em excesso!
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[1] A EURIBOR ou Euro Interbank Offered Rate, é uma taxa de referência baseada na media diária das taxas de juro a que os bancos cedem euros, sem garantias, uns aos outros no Mercado interbancário. O seu cálculo é realizado com base nas taxas praticadas pelo seguinte painel de bancos europeus (Erste Bank der Österreichischen Sparkassen, RZB - Raiffeisen Zentralbank Österreich AG (Áustria); Dexia Bank, Fortis Bank, KBC (Bélgica); Nordea (Finlândia); BNP-Paribas, Natixis, Société Générale, Crédit Agricole,. HSBC France, Crédit Industriel et Commercial CIC (França); Landesbank Berlin, Bayerische Landesbank Girozentrale, Deutsche Bank, Dresdner Bank, Landesbank Hessen - Thüringen Girozentrale, WestLB AG, Commerzbank, DZ Bank Deutsche Genossenschaftsbank, Landesbank Baden-Württemberg Girozentrale, Norddeutsche Landesbank Girozentrale (Alemanha); National Bank of Greece (Grécia); AIB Group, Bank of Ireland (Irlanda); Banca IntesaBci, Monte dei Paschi di Siena, UCI Milan (Itália); Banque et Caisse d'Épargne de l'État (Luxemburgo); ABN Amro Bank, ING Bank, Rabobank (Holanda), Caixa Geral de Depósitos (CGD) (Portugal), Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, Banco Santander Central Hispano, Confederacion Española de Cajas de Ahorros (Espanha)), extra europeus; (Barclays Capital (Reino Unido); Svenska Handelsbanken (Suécia) e Den Danske Bank (Dinamarca) e internacionais: Bank of Tokyo - Mitsubishi, Citibank, J.P. Morgan Chase, UBS (Luxembourg) S.A.
[2] A teoria monetarista defende que é possível manter a estabilidade de uma economia através de instrumentos monetários; foi inicialmente desenvolvida por Irwin Fisher, baseada na teoria quantitativa da moeda, surge associada à teoria neoclássica da formação de preços e ao liberalismo económico e em oposição às teorias keynesianas. Entre os seus maiores defensores conta-se a Escola de Chicago onde pontificaram George Stigler e Milton Friedman, ambos laureados com o Prémio Nobel da Economia, tendo-se este último notabilizado pelo extremismo das suas teses anti regulamentação da economia e a favor de um liberalismo e desregulamentação quase absolutos.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A MONTANHA MÁGICA

Davos terá sido na perspectiva de Thomas Mann[1] o local ideal para situar o cadinho cultural e emocional onde se desenrola a acção de A MONTANHA MÁGICA, um dos seus mais famosos romances, e talvez isso, ou outro qualquer sentimento, tenha ditado a sua escolha por Klaus Schwab[2], no já distante ano de 1971, como local para a realização anual do Fórum Económico Mundial.

Mais que nunca haverá agora, com a crise mundial instalada, quem espere verdadeiros milagres da sessão de 2009; mas, serão essas esperanças fundamentadas?

Poderão os principais responsáveis políticos, económicos e ideológicos pela propagação do mais irrealista dos mitos reequacionar tudo o que disseram e fizeram ao longo das últimas décadas para reinstalar um novo modelo de desenvolvimento económico e social que respeite os verdadeiros interesses das pessoas?

As mentes que conduziram os destinos de nações e os interesses das grandes corporações (e que abjectamente tentaram convencer-nos que esses interesses eram concomitantes) poderão conceber e implementar um modelo de desenvolvimento que valorize os indivíduos pelo seu “saber ser” e “saber fazer” e não pela subserviência?

É que a resolução para os problemas que afectam as economias mundiais, mergulhadas numa crise económica e financeira que já se vai começando a reconhecer como histórica, não se pode resumir à forma de ultrapassar o mais rapidamente possível esta dificuldade. Deixar a procura de soluções para a crise nas mãos dos apologistas e crentes na superioridade do livre funcionamento do mercado, não poderá resultar senão nas políticas que temos conhecido e na rápida criação das condições para o início de novo ciclo especulativo e, consequentemente, da nova crise.

Bem podem os políticos, como o fez Durão Barroso, clamar que «ou nadamos juntos, ou afundamos juntos» ou os banqueiros trocarem acusações entre si, que o essencial da questão continuará por responder, e nem a voz abalizada de Nouriel Roubini[3], que além de avisar que os «prejuízos financeiros podem chegar aos 3,6 biliões de dólares» também foi dizendo que a maioria dos bancos americanos estão insolventes e sem a reforma das regras que regem os mercados financeiros a economia mundial continuará a enfrentar a ameaça de mais “bolhas” especulativas, faz muito mais que apontar os erros do passado.

Não que esperasse do Fórum Económico Mundial ou do rival Fórum Social Mundial[4] algo de extraordinariamente relevante para a resolução da actual crise económica, seja porque o primeiro integra os autores teóricos e materiais da crise, seja porque a grande heterogeneidade dos membros do segundo dificilmente poderá originar uma proposta de solução estruturada e consistente; essa frustração é bem expressa por Boaventura Sousa Santos[5], que nesta notícia da GLOBO assegura que «se o Fórum Social não der uma solução, (o Fórum Económico Mundial de) Davos (Suíça) o fará» e esta «será mais capitalismo e menos direitos», o que obriga o Fórum Social a «apresentar soluções reais».

Na prática tudo vai terminar quase como começou, e assim, caso não surja a breve trecho um forte movimento de contestação aos que nos conduziram a esta situação (e alguns prenúncios já começam a surgir, casos das manifestações que na Islândia já originaram a queda do governo de Geir Haarde[6] ou a paralisação que esta semana se verificou em França[7]), que motive o debate em torno das soluções que minimizem os efeitos da crise e force as mudanças é bem provável que os efeitos negativos da crise perdurem bem para além dela.

A gravidade da actual situação, que segundo o último relatório do LABORATOIRE EUROPÉEN D’ANTECIPATION POLITIQUE se aproxima de uma fase de insolvência geral, obriga o aprofundamento do debate em torno de questões como:

  • a aplicação de políticas diferenciadoras, traduzidas na substituição do modelo de uma economia meramente consumista e orientada para o lucro rápido por outra mais solidária e acompanhada de uma efectiva política de redistribuição da riqueza;
  • a integração no novo paradigma económico dos reais efeitos dos ganhos de produtividade realizados nas últimas décadas (em resultado dos desenvolvimentos tecnológicos) que obrigatoriamente terão reflexos sobre o volume de mão-de-obra necessário;
  • a alteração radical das regras de funcionamento dos mercados de capitais por forma a reduzir-se ao mínimo os efeitos perversos da especulação;
  • a recuperação do controlo dos mecanismos de criação de moeda pelos estados;

que, quando efectivamente resolvidas, poderão dar origem a um novo ciclo de desenvolvimento no qual o crescimento não deverá ser sustentado por um mero processo de enriquecimento individual.
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[1] Escritor alemão (1875-1955), considerado por muitos críticos como um dos maiores romancistas do século XX, autor de obras como OS BUDDENBROOKS (a obra que lhe granjeou notoriedade), MORTE EM VENEZA e A MONTANHA MÁGICA.
[2] Economista e empresário suíço (de naturalidade alemã) fundador do Fórum Económico Mundial, associação sem fins lucrativos, que se converteu na principal reunião mundial de políticos, empresários e intelectuais.
[3] Economista, natural da Turquia mas de ascendência judaica, é professor na Universidade de New York e considerado pela generalidade da imprensa como o primeiro a profetizar a crise do “subprime”. Embora na época já outros analistas se referissem às fortes probabilidades do rebentamento da bolha do imobiliário nos EUA e à entrada em recessão daquela economia, nomeadamente os membros do “think tank” europeu LABORATOIRE EUROPÉEN D’ANTICIPATION POLITIQUE, não se lhe pode retirar o mérito de se ter apresentado há dois anos em Davos a anunciar a eminência da crise.
[4] Evento de âmbito mundial, cuja organização é partilhada por vários movimentos sociais e ONG’s com objectivo de discutir temas relevantes e alternativas que julgam adequadas para questões sociais. Proposto inicialmente como contraponto ao Fórum Económico Mundial (normalmente realiza-se na mesma data) e como principal fórum do movimento anti-globalização tem-se notabilizado principalmente pela grande diversidade dos participantes e uma constante orientação de natureza ecológica.
[5] Sociólogo e professor universitário, natural de Coimbra, é reconhecido como um dos principais intelectuais na área das ciências sociais, notoriedade que lhe adveio das suas intervenções em anteriores edições do Fórum Social Mundial.
[6] Ver a notícia da BBC NEWS.
[7] Ver a propósito a notícia do PUBLICO e o comentário de Jorge Heitor, «França: Greve geral está a ser o grito de alarme para a crise», no mesmo jornal.