segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O PRECONCEITO DO PODER

Acabo de ler a crónica semanal do Prof. César das Neves no DN, que sob o título de «O poder do preconceito» se debruça sobre o mais recente filme de Martin Scorcese, «O Lobo de Wall Street», e fico com a sensação de ter assistido a uma outra versão da mesma obra.

Onde César das Neves viu a omissão das intrujices dos corretores e o excesso da «…bestialidade dos seus tempos livres», além do «…preconceito generalizado de que em Wall Street são todos aldrabões», eu vi uma clara tentativa de resumir o que de pior tem a actividade de intermediação financeira a um quase “fait divers” personificado por um punhado de agentes desprovidos dos mais básicos conceitos de ética e de moral.

Não partilho igualmente da leitura feita por César das Neves quando assegura que «…seria impossível criar e desenvolver qualquer empresa no exigente mundo de Wall Street apenas com ignorantes gananciosos vendendo lixo e cometendo fraudes», pois não só a prova está na história real de Jordan Belfort (há semelhança da de Michael Milken, “dealer” celebrizado nos anos 80 como o Rei das “junk bonds”, condenado por fraude e que terá servido de modelo ao personagem Gordon Gekko no filme Wall Street que Scorcese também dirigiu), como na observação do que eufemisticamente designa por «…caricatura grotesca das complexas operações…», ou seja, “negócios” como o da “limpeza” das contas públicas gregas que reputadas instituições de Wall Street propuseram, realizaram e que lhes granjearam avultadas comissões.


É claro que não existem “lobos” em Wall Street; só que enquanto uns, como o caricaturista norte-americano, Jeff Danziger, vêem animais de emboscada e rapina, outros, como César das Neves, apenas lá vislumbra uma realidade que «…exige grande profissionalismo, honestidade e rigor»… mas isso é uma visão que resulta apenas do seu preconceito do poder!

sábado, 25 de janeiro de 2014

SÍTIO PARA VENDER

A Suíça, habitualmente conhecida pela sua política de neutralidade (facto que no último século lhe assegurou chorudos proventos financeiros), acolhe, de momento, duas cimeiras internacionais; a Conferência para a Paz na Síria (a que me referi no «post» anterior) e a já habitual reunião do World Economic Forum, que vai na 44ª edição e é mais conhecido como a Cimeira de Davos.

Fórum predominantemente económico e comercial, conheceu este ano e pela coincidência com a conferência de paz promovida pela ONU um novo ponto de interesse que colocou o «Conflito na Síria no centro dos debates em Davos». Entre os convidados além do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, esteve o presidente iraniano, Hassan Rohani, facto que resultando do reconhecimento da importância comercial do Irão (um dos principais produtores de petróleo) não deixa de revelar a hipocrisia que levou ao afastamento das negociações dum dos intervenientes que melhor poderia influenciar o regime sírio.


É evidente que o âmbito das duas reuniões é diferente – mas isso apenas ressalta as permanentes contradições que trespassam e que tantas vezes paralisam as relações internacionais – e que Davos é principalmente o ponto de encontro para a nata das grandes corporações mundiais evidenciarem o seu poder económico e as relações políticas que mantém. Não se estranhe então que se afirme na imprensa nacional que «Davos é o sítio certo para ‘vender' o país», nem que Netanyahu ou Rohani lá se tenham deslocado para operações de marketing, tanto mais importantes quanto o sentimento que os participantes quiseram transmitir desde a primeira hora é o de que «Em Davos, ninguém arrisca dizer que crise já acabou».

Esta aparente modéstia não esconderá mais que a constatação da debilidade geral das economias – agora até já os BRICS estão a aproximar-se das anémicas taxas de crescimento dos EUA e da UE – e da ausência de soluções claras para fomentar o crescimento das economias cada vez mais minadas pelas desigualdades que no plano social e político representam ameaças cada vez mais reais para o “status quo” económico tão grato à globalização.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O QUE NASCE TORTO…

A segunda ronda de negociações de paz para a Síria, que decorre na Suíça, não podia alcançar um objectivo palpável tantas foram as incertezas e as condicionantes que desde o início a rodearam. Começando pelos avanços e recuos entre as diversas facções da oposição ao regime de Bashar al-Assad, passando pelas hesitações de americanos e russos (principais patrocinadores da iniciativa) e concluindo na vergonha que constituiu o anúncio, por Ban Ki-moon, que foi o «Irão convidado para conferência de paz de Genebra» para, sob pressão norte-americana, vir mais tarde a saber-se que a «ONU retira convite a Irão para conferência sobre Síria».

Não se estranhe que, depois do pretexto invocado para o “desconvite” – o regime iraniano não aceitou o reconhecimento dos termos da primeira ronda de negociações implicando a obrigatoriedade da substituição do presidente sírio –, chegue de Teerão uma reacção onde o «Presidente do Irão duvida do sucesso de Genebra II», tanto mais que à saída de Damasco a «Delegação síria avisa que ninguém pode tocar em Assad».

A polémica dos convites não parece esgotar-se com o episódio iraniano, pois uma observação mais atenta da agenda e considerandos em torno da conferência deixa perceber que outro convidado indispensável, a Paz, terá ficado à porta.


Como se não bastassem estas divergências, o período que antecedeu a realização da conferência foi fértil na exposição das contradições que minam a própria oposição ao regime alauita. Assim enquanto os promotores (ONU, EUA e Rússia) discutiam a participação do Irão – país que na sequência do abrandamento do seu programa nuclear e do consequente desanuviamento das sanções internacionais vai readquirindo o direito ao estatuto de potência regional – a cada vez mais fragmentada oposição síria conheceu novos episódios de dissensão quando o Conselho Nacional Sírio (o principal grupo da oposição) anunciou a sua saída da Coligação Nacional Síria, depois desta organização ter aceite deslocar-se à Suíça sem a garantia prévia da saída de Bashar al-Assad.

O cinismo que habitualmente grassa nos meios diplomáticos (e que tem abundado de sobremaneira na crise síria) fica bem evidente em toda esta questão quando é motivo de notícia que o «Governo e oposição síria estiveram cara a cara, mas não falaram de paz», ou quando, conhecendo sobejamente as “razões” que justificam o inverso, alto diplomata (como Rui Machete) declara que preferia todos os intervenientes na reunião de paz quando, para mais, é conhecido que pouco ou nada fez para contrariar a menorização do papel da UE na crise síria.

Enquanto isto, num terreno onde se confrontam interesses tão diversos quanto os das grandes potências (EUA, Rússia e China), os das potências regionais (Arábia Saudita, Turquia e Irão), os dos financiadores e fornecedores de armamento (todos os anteriores), vive-se uma situação cada vez mais caótica e difícil para as populações, situação que Maria João Tomás resume assim no artigo do DN, «Genebra II, ou a cimeira para gerir a guerra na Síria»:

Os mais afectados com esta guerra são, obviamente, todos os sírios, excluídos perante os interesses externos em jogo neste tabuleiro de xadrez. Os rebeldes combatem agora em duas frentes, contra as tropas de Bashar al-Assad, que têm armamento russo, e contra os jihadistas que têm armas americanas, confiscadas aos coitados dos rebeldes.

Desde o início do conflito já morreram cento e trinta mil pessoas e há nove milhões e meio de deslocados e refugiados que lutam para sobreviver à guerra, à fome, às doenças e também à neve e ao frio que tem feito no Médio Oriente. Os países de acolhimento já não conseguem fazer mais, e os sírios, sem nada, fazem tudo o que podem para ter comida e segurança, acabando como vítimas de tráfico humano ou escravos sexuais, enganados por tudo e por todos, chegando a pagar exorbitâncias para conseguirem chegar à Europa, mas muitos ficam pelo caminho.

Em resumo, tudo aponta para o malogro de mais esta iniciativa cujos intervenientes parecem esquecer à partida factos tão relevantes quanto: o acréscimo de legitimidade do regime alauita – adquirido por via das vitória militares no terreno e da acção diplomática bem expressa no recuo da intervenção internacional e no início do programa de destruição do armamento químico – e o facto de governo e oposição se mostrarem pouco disponíveis a cedências, ficando desde já a garantia que estaremos perante «Uma conferência de paz que não vai parar a guerra» e que, como em tantas outras ocasiões, continuarão a ser os interesses e o bem-estar das populações os principais prejudicados.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

INFORMAÇÃO CONTRADITÓRIA

Mesmo os menos atentos já terão notado que de há algum tempo os discursos dos principais responsáveis governativos (com Passos Coelho e Paulo Portas à cabeça) têm em comum os sinais do crescimento económico, com o maior destaque a ser centrado no desempenho das exportações.

O facto do comum dos cidadãos se confrontar diariamente com situações de desemprego, que continua em níveis alarmantes, com uma emigração (em especial a dos jovens com elevados níveis de formação) que regista níveis equiparados aos da década de 60 do século passado, com a recorrente imagem do encerramento de pequenos negócios, em nada parece afectar a qualidade dos discursos e ainda menos a convicção dos discursantes, nem mesmo quando organismos oficiais publicam informação contraditória.


Vem isto a propósito do teor duma publicação do Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia sobre o Comércio Internacional (Estatísticas de Bolso de Produtos Industriais por Grau de Intensidade Tecnológica Nº 12-2013), disponível no endereço: http://www.gee.min-economia.pt/. Publicada em meados de Dezembro (portanto a tempo de já ter sido lida e compreendida pelos governantes) a nota estatística detalha algumas características da Balança Comercial portuguesa, sendo que a primeira e mais destacada das quais é a distribuição das exportações por grau de intensidade tecnológica:


cuja análise destrói liminarmente qualquer tentativa de entusiasmo festivo em torno daquele indicador. A simples conclusão que a par com o crescimento das exportações se está a verificar uma clara deterioração da qualidade dos produtos exportados revela bem o desinvestimento que o tecido económico tem sofrido e que estamos a ser conduzidos no sentido duma especialização em produtos com baixa incorporação de capital.

Esta tendência é ainda mais pronunciada se atentarmos na comparação relativa aos três primeiros trimestres de 2012 e 2013 (as duas colunas mais à direita do gráfico) onde se confirma a redução do peso dos produtos de alta e média-alta intensidade tecnológica e o aumento do peso dos produtos de baixa e média-baixa intensidade tecnológica.

Não fosse o facto de chegar ao domínio público alguma informação menos concordante com aquela linha discursiva e talvez se pudesse admitir que a elite governante viveria num mundo diferente do comum daqueles que dizem governar – nada de particularmente preocupante, pois o conselho há dias deixado pelo líder da oposição («"Não viva na lua. Desça à realidade. O País de que fala não existe"») em nada difere do que foi aconselhado ao anterior primeiro-ministro pelos líderes do partido que agora governa – pois o contrário significa que estes mentem e manipulam a opinião pública de forma deliberada.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

AS FACADAS DE HOLLANDE

Cada vez mais enredado nas suas conhecidas hesitações, confrontado com uma crescente quebra de popularidade e alvo da recente exposição pública num “affaire” extraconjugal, o presidente francês, François Hollande, reagiu como é devido a qualquer político da sua estirpe e proferiu o solene anúncio duma nova política para uma “França forte”, a qual contrariando as promessas eleitorais, pasme-se, é em tudo idêntica á do seu antecessor e demais congéneres europeus.

Em Paris, como em Lisboa e noutras capitais europeias, o eufemismo passou a ser a figura de estilo dominante na retórica política. Do mesmo modo que, em Lisboa, Passos Coelho fala de “ajustamento” quando a realidade significa “desemprego”, também em Paris não se instalou uma política de “austeridade” mas de “rigor”; rigor sobre o segmento da população que vive do rendimento do trabalho com a contrapartida do alívio sobre os rendimentos do capital.


Distantes parecem os tempos em que Hollande, recém-chegado ao Eliseu, falava para os países do Sul da Europa dizendo que «“Chegou a hora de oferecer aos portugueses uma perspectiva que não seja só de austeridade”», agora que as necessidades políticas levaram a que «Hollande anuncia programa de austeridade para relançar crescimento e emprego» e ao paradoxo de saber que «Hollande quer reduzir Estado para baixar impostos às empresas», depois de ter passado o último ano a aumentá-los, faz com que estes anúncios se assemelhem estranhamente a ominosas facadas.

Menos estranha, apesar de carregada de eufemismo, será a notícia de que a «Alemanha saúda “mudança de paradigma” em França», como se alguma vez tivesse existido uma real e assumida divergência entre Hollande e Merkel (como se o essencial não tivesse sido sempre a convergência de interesses dos sectores financeiros francês e alemão), ou como se a abjuração dos princípios sociais-democratas constituísse novidade para quem calcorreia os corredores do poder.

O cinismo de Hollande e da CDU alemã encontra par à altura no comentário onde o nacional «PSD aplaude Hollande. "Acabou por reconhecer que não tem alternativa"», dizem, como se o debate em torno das alternativas à política da “austeridade expansionista” se limitasse à franja política representada pelo que resta duma social-democracia que fez dos princípios ideológicos um mero vaivém para a disputa eleitoral.

Esta questão da secundarização das ideologias constitui um dos principais entraves ao funcionamento dos Estados (e por extensão da própria UE, que na insignificante figura de Durão Barroso deixou de ter governança própria) cujas administrações foram tomadas de assalto por uma pretensa nova concepção política sustentada no primado das opções técnicas, a maioria das vezes apoiada em meros empirismos ou, pior, em fundamentações erradas. Veja-se o recente episódio do erro detectado na formulação popularizada por Reinhart e Rogoff (ver a propósito os “posts” «ACONTECE…» e «O ERRO DO FMI») que ainda assim continua a ser apresentada como axioma técnico para a justificação dos malefícios do endividamento público em geral.

Com a mesma jactância com que em tempos foi decretado o “Fim da História” (referência ao conceito desenvolvido pelo filósofo e economista norte-americano, Francis Fukuyama, defensor da ideia dum estado mais pequeno mas mais forte e que muito influenciou a actual corrente neoliberal), continua a pretender-se fazer crer aos incautos que as decisões são sustentadas em irrefutáveis análises técnicas quando na maioria das situações traduzem meras opções políticas empiricamente sustentadas, tanto ou mais discutíveis que o seu contrário, que estão a conduzir as economias e os cidadãos para o que cada vez mais se aproxima dum vórtice de destruição social.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

REESCREVENDO FÁBULAS

Abundaram nos últimos dias notícias relacionadas com a movimentação de ex-governantes nacionais para prestigiadas empresas ou organizações internacionais; assim, à notícia de que o ex-ministro da economia «Álvaro Santos Pereira vai para a OCDE» sucedeu o anúncio de que o ex-ministro das finanças «Vítor Gaspar candidata-se a alto cargo no FMI», culminando com o anúncio que «José Luís Arnaut vai ser consultor da Goldman Sachs».

Esta última revelou-se a mais controversa, não tanto pelas anteriores funções governativas de Arnaut (ministro adjunto do primeiro-ministro com Durão Barroso e ministro das cidades com Santana Lopes) mas principalmente pelo conhecido papel do gabinete de advogados que integra (CMS Rui Pena & Arnaut) no processo das privatizações, no qual ora agiu como conselheiro do Estado ora dos compradores, e no negócio dos “swaps”.

Se os casos de Santos Pereira e Vítor Gaspar até podem ser encarados com alguma normalidade – recorde-se que antes de integrarem o Governo, o primeiro era professor na Universidade Simon Fraser (Canadá) e o segundo era consultor da Comissão Europeia –, já o de José Luís Arnaut merece ser avaliado e, convenhamos, que o mínimo que dele se pode dizer é que é duvidoso. É duvidoso o currículo técnico – salvo se entendermos a nomeação como contrapartida por serviços prestados – do mesmo modo que tem sido duvidosa a sua actuação na estreita margem entre o Poder, os negócios e a ética. O próprio (segundo esta notícia do I) defendeu-se num canal de televisão dizendo que: «É uma grande confusão. […] No escritório de que sou sócio trabalhámos em várias privatizações para os privados. É natural. Estamos num mercado livre, E quem vê isso como uma confusão é porque é muito pequenino, não tem dimensão e não percebeu a dimensão do mercado e o papel das pessoas no mundo internacional, […] é bom haver portugueses em posições internacionais».


Manipulando e distorcendo a realidade, confundindo “mercado livre” com promiscuidade e culminando no tradicional insulto da falta de “dimensão”, pouco faltou para ouvirmos contar ao contrário a fábula de Flautista de Hamelin (um conto folclórico, reescrito e popularizado pelos Irmãos Grimm) onde um rato habilidoso e facilitador conduziria os homens probos, facto que contribui para reforçar a ideia com que Viriato Soromenho Marques concluiu o seu artigo «Espiral de náusea»: “A espiral recessiva parece ter sido travada. Mas a espiral da náusea moral, essa, está ainda muito longe de ter batido no fundo.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

FIM DA CRISE?

Para assinalar convenientemente o início da presidência semestral da Grécia, qual Ulisses regressado a Ítaca, o inenarrável Durão «Barroso anuncia fim da crise do euro».

Jactante do pretenso sucesso dos programas de assistência aplicados a alguns dos países da periferia europeia (eufemismo para designar os resgates impostos a gregos, irlandeses, portugueses, espanhóis e cipriotas), complementou aquela afirmação com a garantia de que a UE está a sair da recessão. A bitola de avaliação é a famigerada figura do “regresso aos mercados”, marco já alcançado por irlandeses e portugueses (posteriormente à declaração ficou a saber-se que «Portugal coloca 3,25 mil milhões a cinco anos, procura supera 11 mil ME») mas de discutível qualidade face ao facto de se tratar de operações sujeitas a condições particulares.

A confirmá-lo já na véspera da declaração de Durão Barroso era conhecido que a «Irlanda contrata bancos para emitir dívida a 10 anos», estratégia que seria replicada pelo governo de Lisboa e que consiste em encomendar a um conjunto de bancos a colocação da dívida; contando-se entre estes os principais actores mundiais (Goldman Sachs, Morgan Stanley, Deutsche Bank e Société Générale) e atendendo à conjugação das elevadas taxas de rentabilidade oferecidas com a reforçada garantia da intervenção financeira da “troika”, não será de estranhar o “sucesso” das operações, na linha da notícia que a «Dívida portuguesa foi das mais rentáveis» em 2013.

Mesmo para os mais ingénuos crentes na beatitude dos “mercados” talvez a declaração do fim da crise pudesse ter sido levada a sério não fosse o facto de Durão Barroso ter acrescentado que a «Comissão Europeia sempre esteve do lado da Grécia», o que para qualquer observador minimamente atento – tantas e tão claras foram os vexames impostos aos gregos – descredibiliza completamente a afirmação, remetendo-a para o rol das mistificadoras declarações que o tempo e a realidade se encarregaram de desmentir.


Isso mesmo fez já o presidente do BCE, pois «Para Draghi “é prematuro declarar vitória sobre a crise”», tanto mais que o anúncio de que «Os juros mantém-se em queda» nos mercados secundários de dívida pública tem muito mais a ver com a contínua necessidade de aplicação dos capitais (fenómeno confirmado pelas taxas a que foram realizadas as emissões irlandesa, portuguesa e até a «Espanha coloca 5,29 mil milhões pagando menos juros») que com os evidentes sinais de crescimento económico ou sequer com a devida aproximação das taxas da dívida pública à taxa de refinanciamento do sector bancário que o BCE manteve nos 0,25%.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

O MESMO MURO

Mais cedo que o que podia prever, notícia chegada de Israel onde «Mais de 30.000 imigrantes africanos manifestam-se em Telavive» representa a pior das confirmações da tendência para a deflagração de conflitos de natureza social (já no “post” «PRENDA…» aludi a esta questão numa perspectiva doméstica) num contexto de crescente insatisfação global.

O caso referido ganha contornos especiais por ocorrer num dos estados mais policiados do Mundo e por representar o culminar de duas manifestações anteriores que contaram com uma reduzida participação. O jornal francês LE MONDE fala mesmo duma enorme manifestação de migrantes africanos clandestinos e acrescenta um pormenor da maior relevância: os manifestantes reclamam o direito de asilo num estado que instalou recentemente um fosso electrificado com o vizinho Egipto.

A referência a este tipo de medidas extremas (semelhantes às instaladas pelo governo norte-americano na sua fronteira com o México) e a recordação do famigerado muro de betão com que o governo sionista pretende isolar os palestinianos assenta perfeitamente num estado com profundas raízes policiais para cujos principais responsáveis apenas parece contar a “pureza da sua raça” e que só recordam o Holocausto em interesse próprio.


A agitação registada em Tel-Aviv, sinal da insatisfação dos emigrantes, pode bem vir a acabar no endurecimento das medidas “purificadoras” que têm vindo a ser implantadas no território desde meados do século XX, que já originaram guerras convencionais com os estados árabes vizinhos, duas intifadas (sublevações palestinianas) e um regime sionista cada vez mais fechado em si próprio.

Esse ensimesmamento, ou até o mais prosaico apelo à autarcia, parece cada vez mais na ordem do dia num mundo crescentemente despojado de valores (salvo o do dinheiro, comprovado pelo facto de recentemente se terem manifestado «Patrões suíços contra proposta de limitação de imigração no país») e minado pelas contradições da sucessão de crises políticas e económicas onde cada estado ergue os seus muros.

sábado, 4 de janeiro de 2014

MAIS EURO, MENOS EUROPA

A notícia da entrada de mais um membro para a Zona Euro deveria ser motivo de júbilo, sucede porém que na realidade a «Letónia entra no euro sem referendo e sem apoio popular», o que confirma a imagem de degradação da situação da moeda única e do modelo de governança europeu.

Já não restarão muitas dúvidas que o Euro vive uma crise ainda longe da resolução, nem que as actuais elites governantes continuam alheadas da sua função de defesa dos interesses das populações que há muito substituíram pelo culto dos “mercados”; além do clamoroso erro de terem abdicado do poder de criação da moeda e de, a coberto duma pretensa liberalização dos mercados, legislarem maioritariamente em benefício dos interesses financeiros e das grandes empresas, confirma-se o crescente divórcio da vontade popular.


A situação agora vivida na Letónia é apenas a mais recente confirmação da estratégia de horror ao voto popular seguida desde a assinatura do Tratado de Maastricht e da malograda Constituição Europeia, que depois de rejeitada pelo voto popular em França e na Holanda acabou transformada no Tratado de Lisboa e ratificada pelos parlamentos nacionais. Há décadas que os mais variados governos europeus vêm demonstrando um completo divórcio das populações que afirmam representar, com a mesma leviandade com que afirmam estar a recorrer a políticas restritivas para combaterem a crise das dívidas soberanas.

Exemplo deste embuste foi a recente notícia de a «Dívida portuguesa foi das mais rentáveis» no ano que agora findou, o que contrasta com a sempre invocada dificuldade para o Governo português aceder aos “mercados” e é ainda mais reveladora quando se fica a saber que o campeão da rentabilidade oferecida foi a malquista Grécia.

No conjunto, a notícia do reduzido entusiasmo popular na Letónia com a entrada na Zona e a confirmação dos grandes “negócios” em torno das dívidas soberanas, apenas vêem confirmar a ideia que há muito repito: a crise que atravessamos é parcialmente um embuste que está a ser usado para a concretização doutro objectivo – aumentar a distribuição da riqueza em benefício do factor capital e em detrimento do factor trabalho.