quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

QUEM NÃO SABE, É COMO QUEM NÃO VÊ

Quem tenha acompanhado com algum interesse o discurso sobre o Estado da Nação que anteontem pronunciou o presidente Bush e há alguns anos tivesse deixado de ler jornais e ouvir notícias, poderia ficar com a impressão que tudo corre pelo melhor nos EUA, salvo, talvez, dois pequenos detalhes: uma guerra e uma crise económica.

Mesmo sendo certo que este foi o último daquele tipo de discursos protagonizado por George W Bush enquanto presidente dos EUA, como se pode admitir o autismo de uma administração que além de ter conduzido alegremente o seu povo para um conflito que se arrasta há quase cinco anos, já custou milhares de vidas e milhões de deslocados, nada fez em prol da melhoria das condições de vida da esmagadora maioria dos seus cidadãos e ainda se apresenta com um plano de emergência exclusivamente baseado em medidas de natureza fiscal para atenuar os efeitos de uma crise económica originada por um modelo de desenvolvimento baseado na concentração da riqueza num reduzido número de investidores e especuladores?

Por incrível que possa parecer a resposta além de simples é curta!

Tudo, ou quase, é consequência da predominância das teorias ultraliberais, originadas por Milton Friedman na Universidade de Chicago, inicialmente obtida através do uso da força e actualmente mediante recurso à instauração de climas generalizados de medo[1].

Nas últimas décadas a ideia da uniformização de modelos e conceitos (económicos, políticos e sociais) tem conduzido a economia a um estado de total dependência de uma entidade supranacional, quase cosmológica: o mercado.

Só que essa entidade não funciona como o postularam os teóricos que seguem as pisadas de Friedman – o mercado não se autoregula pelo simples facto de que os que com ele têm enriquecido esperam e continuam a querer enriquecer sempre mais! A beleza e a harmonia da teoria da “mão invisível” (a tal entidade cosmológica) tem-se revelado na brutalidade com que cresce o fosso entre países ricos e países pobres e entre os que concentram cada vez maior volume de riqueza e os que possuem cada vez menos.

Esta realidade é tanto mais perceptível quanto diariamente se assiste a novas iniciativas de apropriação privada de bens públicos – quem já esqueceu os anos em que serviços como a saúde, a educação, a segurança social, a produção e distribuição de energia eléctrica, para só citar uns quantos, eram assegurados pelos Estados – e à destruição de valores morais e princípios éticos em nome da necessidade do equilíbrio orçamental e do lucro individual.

Talvez por tudo isto as recentes declarações do director-geral do FMI, o francês Dominique Strauss-Khan, apelando a que os governos que disponham de folga orçamental (leia-se, sem défices pronunciados) substituam o objectivo de contenção dos défices públicos pelo do crescimento económico, tenham provocado alguma agitação e devessem ter sido entendidas pela administração Bush.

Não que isso tivesse mudado algo no muito de errado com que os americanos nos têm brindado nos últimos anos – além da guerra e da retracção da economia mundial, ainda lhes ficaremos a dever as muitas limitações às liberdades individuais e as violações aos direitos humanos – mas sempre poderia ter evitado o ridículo que foi ver o presidente da potência hegemónica apresentar o mais cândido e inocente dos ares no meio da confusão generalizada que ajudou a criar.
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[1] As primeiras aplicações práticas dos princípios económicos ultraliberais de Milton Friedman ocorreram nos anos 60 e 70 do século passado na América Latina e foram produto das sucessivas ditaduras militares que os EUA patrocinaram naquele continente; a esta sucederam-se o Sudoeste Asiático, graças a uma vaga de regimes militares, a Rússia do período de Boris Yeltsin, e a China, com a invenção do capitalismo de estado, procedendo à destruição das débeis economias locais para as substituir por economias de mercado livre.
Nas chamadas democracias ocidentais o processo foi bem mais subtil, mas normalmente associado a períodos de crises (reais ou imaginários), como a Guerra das Malvinas, a Guerra contra o terror e a falência dos regimes de segurança social. Em comum todos apresentam o mesmo resultado final – a liberalização e a desregulamentação dos mercados associada a processos de privatização de sectores básicos para a actividade humana, como a educação, a saúde e a segurança.

domingo, 27 de janeiro de 2008

A FUGA DE GAZA

Enquanto os participantes na cimeira de Davos ainda se interrogam sobre o que está a acontecer à economia global com que tanto têm ganho ou como foi possível chegar a esta situação de forma aparentemente (a avaliar pelas análises e previsões recentes dos seus especialistas) tão rápida, noutros pontos do mundo a via continua a apresentar-se dura ou, como sucede na Faixa de Gaza, apresenta-se cada vez pior.

Depois do périplo que George W Bush efectuou em meados deste mês pela região pouco ou nada mudou, senão para pior, o que justifica perfeitamente a dúvida sobre o que terá levado o presidente da super potência hegemónica a deslocar-se à mais sensível das regiões do globo agora, e apenas agora, que recta final para abandonar a Casa Branca?

Apesar de apresentada pelo staff da sua administração como um importante passo para o aprofundamento da Conferência de Annapolis[1] e das aparentes críticas tecidas ao governo israelita (durante uma intervenção em Jerusalém George W Bush apelou ao fim da ocupação israelita iniciada em 1967), a sua passagem pela região não passou de uma mascarada de que o episódio narrado pelo editor da BBC para o Médio Oriente é um perfeito exemplo: «Na terça-feira de manhã o presidente Bush foi de automóvel de Jerusalém para Ramallah, cerca de 16 km para norte, porque o mau tempo impediu a deslocação prevista de helicóptero. A sua caravana deslizou pelos postos de controlo israelita, enquanto os palestinianos não têm a mesma sorte – longa horas de espera nesses locais é uma parte significativa da sua vida habitual.

O regime de segurança israelita assenta numa rede de muros, gradeamentos, barreiras e autorizações, que não constituem apenas uma questão de incómodo para os palestinianos, pois de acordo com o Banco Mundial aquele é o principal factor impeditivo do crescimento da economia palestiniana, factor que o presidente Bush e muita gente considera vital para o estabelecimento da paz na região. «…» Após a partida de George W Bush de Ramallah, o exército israelita repôs as barreiras que habitualmente obstruem a estrada utilizada»[2]

Caso ainda sejam necessários mais argumentos para desmascarar a farsa em que se está a transformar mais esta etapa para a pacificação da região, basta observar o que actualmente se passa na Faixa de Gaza. O bloqueio recentemente intensificado pelo Tsahal[3] – alegadamente como forma de retaliação contra o lançamento de rockets Qassam sobre o seu território – revela-se, na prática, longe de contribuir para o pretendido isolamento do Hamas enquanto agrava as já muito degradas condições de vida do milhão e meio de habitantes que perante as constantes agressões israelitas tende mais a cerrar fileiras em defesa daquele grupo radical que a aumentar o volume das suas críticas.

Esta duplicidade da política israelita, seja ela explícita ou sub-reptícia, tem sido uma constante na delicada situação palestiniana e uma prática assumida pelos sucessivos governos, desde os primórdios da instalação dos primeiros colonatos judaicos. Usando e abusando de um discurso agressivo e expansionista para consumo interno e de outro onde sempre se apresenta na qualidade de vítima para consumo externo, os governos israelitas nunca deixaram de prosseguir uma política que lhes assegurasse o domínio e supremacia sobre as populações palestinianas e se agora parece abraçar fervorosamente o conceito dois povos – dois estados é apenas por exclusivo interesse próprio e por necessidade de sobrevivência[4].

É evidente que a invocação israelita do direito à segurança da sua população é um forte argumento perante a comunidade internacional em geral e a ocidental em particular, até porque os judeus continuam a capitalizar os efeitos da perseguição de que foram alvo pelo regime nazi, mas não é menos verdade que este mesmo efeito começa já a apresentar evidentes sinais de deterioração e em muitas situações é já manifesto o cansaço perante o uso e abuso do mesmo argumento, em especial quando são agora os governantes israelitas que recorrem a práticas idênticas. São claro exemplo destas as crescentes privações a que sujeitam o povo palestiniano (expressas na limitação do acesso às fontes de água potável, aos seus tradicionais campos agrícolas, numa palavra a um mínimo de dignidade) até provocarem uma reacção dos grupos mais radicais, para em seguida invocarem essa mesma reacção para novas e maiores restrições de direitos e liberdades palestinianas.

Manter os palestinianos confinados a pequenas zonas desligadas entre si e do mundo em geral e obrigá-los a enfrentar uma perspectiva de total ausência de futuro é também uma forma de genocídio. Uma forma profundamente maquiavélica mas perfeitamente ajustada à capacidade de manipulação que os responsáveis israelitas têm revelado e que é bem capaz de estar na origem dos últimos acontecimentos na Faixa de Gaza; quando na sequência do bloqueio que originou a interrupção no fornecimento de energia e uma generalizada escassez de bens alimentares e de medicamentos naquele território apareceu derrubada parte do muro que a separa do Egipto, milhares de palestinianos apressaram-se a atravessar a fronteira na ânsia de encontrarem os bens de que necessitam para a sua vida diária e na de escaparem às privações a que têm sido sujeitos. Ora esta pode bem ser uma excelente oportunidade para o governo de Telavive se ver livre de mais alguns milhares de incómodos palestinianos, facto que justificará até a total inércia dos exércitos israelitas e egípcios para estancarem o êxodo e reporem a “segurança” da fronteira.


Embora se desconheçam números oficiais é bem possível que o número de “fugitivos” já ande perto dos 500 mil, o que não só aumenta a consistência da hipótese de planeamento como torna mais compreensíveis alguns rumores que referem a existência de jazidas de gás natural na Faixa de Gaza.
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[1] Cimeira realizada em finais de Novembro de 2007, na base naval norte americana de Annapolis, que sob a égide dos EUA reuniu israelitas, palestinianos e representantes de vários estados árabes da região para relançar o processo de paz e apoiar a solução de divisão do território entre os dois povos.
[2] Ver o artigo completo aqui.
[3] Acrónimo que designa o exército judaico, também conhecido por IDF (Israel Defense Forces).
[4] Recorde-se a este respeito a referência que fiz neste post a declarações de Ehud Olmert chamando a atenção aos israelitas para a necessidade de apoiarem a solução dois povos – dois estados sob pena de a prazo o fracasso desta estratégia acarretar o fim do estado israelita, porque a aplicação do principio democrático de um cidadão um voto originará um dia um estado governado por uma maioria palestiniana.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

PELO CANO

A SOCIÉTÉ GÉNÉRALE, um dos três principais bancos franceses, anunciou ao final do dia de ontem que um dos seus operadores de mercado teria provocado um prejuízo da ordem dos 4,9 mil milhões de euros.

Esta notícia, e este tipo de “eventos”, não são novidade e felizmente não costumam ocorrer com frequência, facto que não inviabiliza que a generalidade das pessoas se questione sobre a respectiva explicação, tanto mais que as que surgem na imprensa nem sempre primam pela clareza e objectividade.

A atestar pela informação disponibilizada pelo banco francês, Jérôme Kerviel exercia as funções de trader[1], negociando contratos a prazo sobre o mercado de acções terá iniciado em 2007 uma estratégia orientada no pressuposto de que durante o ano se registaria uma queda nos diferentes índices bolsistas; quando esta não se verificou terá então optado por uma inversão radical de estratégia, passando para uma posição orientada para a subida; da conjugação das duas posições terá resultado um acumular de prejuízos que no caso dos produtos financeiros derivados – futuros e opções – pode ascender rapidamente a muitos milhões de euros.

Mas mais importante que aceitar as explicações dos responsáveis da SOCIÉTÉ GÉNÉRALE, que procuram justificar a situação com o facto do operador dominar os procedimentos de controlo usados no banco em virtude de neles ter trabalhado anteriormente, é entender como tudo isto pode ter acontecido.

Teoricamente os operadores de mercado estão sujeitos a dois tipos distintos de controlo; o primeiro no interior da própria sala (diariamente deverão fornecer informação sobre o tipo de activos transaccionados e sobre os montantes envolvidos) e um segundo que é executado pelos serviços administrativos do próprio banco (vulgarmente designado por “back-office”). Esta divisão de tarefas assegura que no interior do próprio local de negociação a actividade dos operadores é monitorizada e eventuais excessos podem logo ser corrigidos, enquanto uma entidade exterior assegura uma segunda verificação, normalmente desafectada da emotividade própria da actividade de negociação.

Então, se existem estes mecanismos porque é que de quando em vez ocorrem casos como este?

A resposta é simultaneamente simples e complexa. Simples porque a primeira razão prende-se com alguma anomalia num dos dois locais – na sala de mercado ou no “back-office” – e complicada porque normalmente as coisas não funcionam assim de forma tão linear. Seja porque os bancos não aplicam regras prudências suficientemente estritas que inviabilizem os excessos dos seus operadores, seja porque as pessoas a quem são cometidas as funções de controlo no interior da estrutura ou a negligenciam ou carecem de “know-how” mínimo para o seu exercício.

Só assim se pode entender que durante dias e dias a fio um operador realize um número suficientemente de transacções que culminem num descalabro da dimensão do agora reportado pela SOCIÉTÉ GÉNÉRALE, porque mesmo que este domine os meandros dos procedimentos de controlo a que deve ser sujeito, se este for correcta e atempadamente executado, o montante nunca poderia atingir semelhantes valores.

Mesmo considerando que os instrumentos financeiros têm conhecido um acelerado processo de sofisticação apenas na situação de não ser regularmente providenciada a indispensável formação a todos os intervenientes no processo é que seria possível que aqueles que exercem a função de controlo fossem regularmente ultrapassados pela “habilidade” do operador.

Embora tudo aponte para que a razão para a delicadíssima situação em que se encontra o banco lesado resulte de uma deficiente organização interna, outras razões podem ter contribuído para este resultado final.

Se nos lembrarmos que as práticas actuais de gestão apontam no sentido da sobrevalorização dos resultados – o sector financeiro é sem sombra de dúvida aquele onde impera o primado do lucro a qualquer custo – e no uso e abuso de políticas remuneratórias baseadas em resultados (ganhos), sabendo-se as enormes disparidades nos vencimentos que recebem os responsáveis hierárquicos, os operadores e os administrativos encarregues das funções de controlo… talvez se comece a perceber melhor porque estes incidentes ocorrem!

Na prática, ao que tudo indica, iremos voltar a assistir à repetição do que ocorreu em 1995 quando, Nick Leeson, um operador do BARINGS BANK levou aquele banco à falência após a revelação de um “buraco” de 1,3 mil milhões de dólares na sua filial asiática; o escândalo saldou-se com a compra do BARINGS pelo congénere holandês ING e pela condenação do operador a uma pena de prisão de quatro anos.

Então, como agora, ficou por esclarecer as responsabilidades de toda a cadeia de direcção da filial e do banco e, ao que tudo indica, ficaram por interiorizar as lições dos erros cometidos.

Agora, como então, voltamos a assistir a uma rápida responsabilização do elo mais fraco enquanto os responsáveis permanecerão seraficamente nas suas funções, esperando que tudo regresse à normalidade e o sucedido não se repita.

Para reflexão deixo apenas uma rápida analogia (com as devidas ressalvas para os montantes e os contornos da operação) com o caso do Millennium BCP e da prática de manipulação de cotações que as desavenças entre accionistas tornou público e que as autoridades competentes – Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários – tardam em investigar, publicitar e punir; e uma chamada de atenção para o facto da SOCIÉTÉ GÉNÉRALE ser, salvo erro, um dos principais fornecedores de produtos estruturados ao sistema financeiro português.
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[1] Trader, termo anglo saxónico que designa o operador que negoceia a aquisição ou venda de instrumentos financeiros.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

ESTÁ A SER CADA VEZ MAIS FÁCIL CRITICAR OS BANCOS

Na actual conjuntura todos os olhos parecem focados nos bancos e, infelizmente, nem sempre pelas melhores razões.
Como escrevia Luísa Bessa num recente artigo no JORNAL DE NEGÓCIOS, é actualmente fácil atacar os bancos, mas a questão que correctamente deve ser colocada vai muito além das políticas de crédito e de remuneração dos depósitos ou dos exagerados lucros que o sector costuma apresentar. Hoje, a par com questões como a da lógica interna ao modelo de funcionamento do sistema bancário é preciso ainda levantar questões de natureza ética e estas são tanto mais imperiosas quão frágil se tem mostrado a actuação do Banco de Portugal na vigilância da própria deontologia da actividade.

Numa conjuntura em que tudo indica estar-se perante o início de um novo período de recessão económica é perfeitamente natural que muitas atenções se centrem na área financeira, seja pela sua responsabilidade directa no despoletar da crise (porque dela dependem inúmeras empresas e famílias), seja porque dela se esperam exemplos de comportamento ou porque das estratégias que defina dependerá o futuro da generalidade das economias, mas actualmente parece-me bem mais relevante trazer para o debate questões que derivam de um sentimento de quase total ausência de ética no sector.

Quando no panorama internacional se assiste ao sucessivo anúncio de prejuízos pelos maiores bancos americanos (algo até agora absolutamente impensável) e à sua abertura a capitais asiáticos e sauditas[1], em que se renovam velhos receios de “corridas aos bancos”(como aconteceu com britânico Northern Rock[2]) e em que sobe o tom das críticas às suas políticas e práticas de crédito, enquanto no capítulo interno se somam a estes os grandes e pequenos escândalos que a propósito de “reformas” e mudanças de administradores dos bancos nacionais vão chegando ao conhecimento público, nem por isso parecem ter diminuído os prémios recebidos pelos banqueiros. A avaliar por uma notícia do LE MONDE, no último ano os cinco maiores bancos de Wall Street distribuíram 66 mil milhões de dólares em prémios (mais 9% que em 2007) e isto num ano em que os resultados deixaram muito a desejar.

Sendo certo que a crise do subprime já custou o lugar aos “patrões” do Citigroup, do Merrill Lynch e do Bear Stearns[3], nem por isso a nomeação dos seus substitutos foi rodeada de grande polémica. A avaliar pelas notícias que circularam na imprensa aquelas substituições foram obviamente acompanhadas de chorudas contrapartidas[4] tanto ou mais generosas que as atribuídas ao conjunto dos ex-administradores do Millennium BCP dos quais se diz que o ex-administrador afastado na sequência das polémicas que rodearam o fracasso da OPA sobre o BPI - Paulo Teixeira Pinto - recebeu 10 milhões de euros e ainda o compromisso de receber até final de vida uma pensão anual equivalente a 500 mil euros, enquanto sobre as condições em que foram acordadas as saídas de Jardim Gonçalves, de Filipe Pinhal e dos restantes administradores ainda paira um silêncio, mas a avaliar pelas benesses recebidas pelo primeiro, também não deverão ter saído de “mãos a abanar”.

Quanto à dança de cadeiras em que foi transformada a nomeação da nova administração do Millennium BCP – por mais que os intervenientes e os comentadores da ordem digam o contrário, dificilmente alguém acredita na transparência de um processo que se traduziu na “transferência” de três dos administradores da CGD para o BCP – é uma polémica que ainda se encontra longe de encerrada. Ao despudorado pedido de concessão de uma licença sem vencimento a Armando Vara (intenção que como o PS, partido de que aquele é filiado, defende nada apresenta de ilegal[5], mas que ao que parece o visado já terá desistido da ideia[6]) acrescem ainda os pouco claro contornos da “transferência” noticiada pelo EXPRESSO de Maldonado Gonelha para a administração de uma fundação recentemente criada pela CGD.

Quando quase só falta saber do futuro destino de Celeste Cardona (ex-administradora da CGD não reconduzida na nova equipa liderada por Faria de Oliveira) pouco restará para especular sobre a questão, mas muito se deve questionar em torno de todas estas movimentações, às quais nem sequer faltou a intervenção do líder do PSD lembrando um velho pacto de divisão de influências entre PS e PSD, envolvendo o Banco de Portugal e a CGD.

A propósito desta última é normal ouvir-se questionar o mérito de algumas das personalidades nomeadas para a respectiva administração, pois muitas vezes (demasiadas mesmo) surgem nomes cujo mérito é demasiado ténue para aquelas funções. Assim foi e, infelizmente, será enquanto perdurar no país a prática de nomeações muito pouco baseadas no mérito e quase exclusivamente orientadas para outras motivações associadas a filiações (políticas e/ou noutro tipo de associações) e outros “credos” que não os da competência e integridade.
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[1] Ver a propósito esta notícia da BBC.
[2] Sobre os desenvolvimentos em torno da difícil situação deste banco, ver esta notícia do LE MONDE.
[3] Charles Prince, do Citigroup, foi substituído por Vikram Pandit, Stan O’Neal, do Merril Lynch, por John Thain e James Cayne, do Bear Stearns, por Alan Schwatrz
[4] Segundo a CNN, Stan O’Neal terá recebido mais de 160 milhões US$, já a compensação recebida por Charles Prince, segundo o TIMES ONLINE, não deverá ter alcançado os 100 milhões de US$ e Charles Cayne apenas abandonou as funções executivas, conforme noticiou a BBC.
[5] Ver esta notícia do JORNAL DE NEGÓCIOS.
[6] Ao que noticiou o DIÁRIO ECONÓMICO, Armando Vara manifestou-se disponível para renunciar ao vínculo à CGD, caso viesse a integrar a nova administração do Millenniem BCP.

sábado, 19 de janeiro de 2008

CAUTELAS E CALDOS DE GALINHA...[1]

Há medida que começam a ser conhecidos os primeiros resultados de actividade das empresas financeiras norte-americanas os índices das bolsas mundiais vão registando sucessivas quedas, na exacta proporção em que se avolumam os sinais de uma recessão que alguns persistem em não querer ver.

No início desta semana o Citigroup, o principal banco do sistema financeiro norte-americano[2], anunciou um prejuízo até agora inimaginável nos seus quase dois séculos de existência; graças à sua fortíssima exposição no mercado subprime o prejuízo agora assumido atinge os 9,8 mil milhões de dólares, número cuja grandeza o DN “traduziu” dizendo que pagava dois aeroportos de Alcochete.

A este seguiu-se o Merrill Lynch que anunciou prejuízos da ordem dos 8,7 mil milhões de dólares, enquanto continua a crescer o número de bancos que vão dando conta dos grandes prejuízos encaixados por via da sua exposição ao mercado hipotecário americano de alto risco (subprime), facto bem expresso numa síntese elaborada pela BBC NEWS que refere os seguintes valores:

Citigroup: 18 mil milhões US$
UBS: 13,5 mil milhões US$
Morgan Stanley: 9,4 mil milhões US$
Merrill Lynch: 8 mil milhões US$
HSBC: 3,4 mil milhões US$
Bear Stearns: 3,2 mil milhões US$
Deutsche Bank: 3,2 mil milhões US$
Bank of America: 3 mil milhões US$
Barclays: 2,6 mil milhões US$
Royal Bank of Scotland: 2,6 mil milhões US$
IKB: 2,6 mil milhões US$
Freddie Mac: 2 mil milhões US$
JP Morgan Chase: 1,3 mil milhões US$
Wachovia: 1,1 mil milhões US$
Credit Suisse: 1.000 milhões US$
Paribas: 439 milhões US$

de créditos que os bancos foram eliminando dos seus balanços e que vai clarificando a dimensão da crise originada naquele mercado.

Se a isto acrescentarmos o facto de muitos bancos ainda não terem revelado os valores a eliminar e se recordarmos que o próprio presidente do FED estimou recentemente os prejuízos globais da crise do imobiliário em valores da ordem dos 100 mil milhões de dólares (valor que se me afigura optimista face ao facto de só a listagem anterior já atingir quase 75 mil milhões de dólares), tudo indica que a crise estará instalada e para durar, tanto mais que as autoridades políticas e financeiras continuam a insistir na ideia que tudo se há-de resolver por si só.

Pelo menos é o que se pode deduzir das medidas que a administração Bush anunciou ontem – uma abordagem eficaz para evitar uma recessão e acompanhada de medidas temporárias destinadas a estimular a economia, inserida na boa escola do pensamento monetarista e neoconservador – em consonância com as propostas que Bernanke deixara durante a audição que realizou perante a comissão de orçamento da Câmara dos Representantes. Nesta, mantendo a indefectível confiança na robustez e estabilidade da economia americana, Bernanke propôs o rápido lançamento de uma política orçamental que concertada com a política monetária do FED produza efeitos no corrente ano e admitiu mesmo voltar a descer a sua taxa directora

«Para manter a actividade da nossa economia e criar mais empregos, o Congresso e a administração precisam de trabalhar em conjunto para apresentar rapidamente um pacote de medidas», disse Bush ao anunciar a implementação de um pacote de medidas fiscais para evitar uma quebra na principal economia mundial, constituído por incentivos aos investidores e redução da carga fiscal sobre as famílias, no montante de 1% do PIB (qualquer coisa como 145 mil milhões de US$).

O futuro próximo dirá se uma simples redução fiscal e das taxas de juro serão suficientes para relançar uma economia como a norte-americana (e a da generalidade dos outros países) que continua a revelar gritantes disparidades no processo de distribuição da riqueza e uma clamorosa escassez de liquidez[3], com a agravante desta última ser fundamentalmente fruto de um processo que há décadas tem concentrado as disponibilidades no sector financeiro enquanto retira liquidez às famílias e às empresas.
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[1] Receita popular para todo o tipo de doenças, que talvez possa servir à economia americana.
[2] O Citibank, empresa que originou o actual Citigroup foi fundado em Nova York, noa ano de 1812, tem mais de 200 milhões de clientes espalhados pelo 100 países onde operam os seus mais de 300.000 empregados e afirma dispor de activos no valor aproximado de 2,4 biliões US$ (2,4x10^12).
[3] Na sua intervenção o próprio presidente Bush admitiu esta realidade quando afirmou que «…deixar os americanos conservar maiores quantidades do seu dinheiro deve aumentar o consumo»

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

NÃO É UM PROBLEMA DE LIXO

Na ponta final de 2007 voltámos a encontrar nos meios de comunicação notícias sobre a insustentável situação do problema da recolha e tratamento dos lixos na cidade de Nápoles. Choveram imagens das “lixeiras” em que foram transformadas as ruas e estradas daquele município italiano e arredores; os políticos locais desdobraram-se em declarações e o governo, liderado por Romano Prodi, prontamente decidiu recorrer ao exército para colaborar na remoção das mais de 100.000 toneladas de lixo acumulado.

Embora gravíssima e reveladora do desleixo que tem rodeado o tratamento desta questão, a verdadeira razão que me leva hoje a abordá-la aqui é muito mais profunda.

Os que se têm limitado a acompanhar o problema pelos meios de comunicação, estarão já cientes de que esta é uma questão redundante naquela região de Itália[1], de que existem grandes interesses em torno do problema, porquanto ninguém nega que o processamento de resíduos urbanos é um dos grandes negócios dos tempos modernos[2] e julgarão mesmo que o principal responsável pela situação é a Camorra (versão napolitana da Máfia siciliana). Em defesa desta última tese é inegável a influência duma organização que tem retirado enormes lucros da incapacidade dos responsáveis locais e nacionais para fazer aplicar uma solução para o problema, bem expressa no facto de até agora terem conseguido bloquear todas as tentativas de instalação de incineradoras, de controlarem as unidades de processamento dos resíduos e os respectivos aterros, incluindo os ilegais, prática que lhes tem permitido praticar uma política de preços extremamente agressiva.

Enquanto algumas organizações locais vão fazendo ouvir as suas críticas à passividade dos políticos (e à nefasta influência da Camorra), os problemas associados à falta de condições para o processamento dos resíduos[3] que se acumulam nas ruas e vias da região determinam que outras unidades do país e do estrangeiro se recusem a proceder à respectiva incineração.

A par com esta dificuldade, acresce ainda o facto desta recorrente situação de acumulação de resíduos ser já apontada como causa para a elevada taxa de incidência local de enfermidades como o cancro e de doenças do foro respiratório, enquanto no capítulo dos prejuízos é de referir a paralisação dos cerca de 100.000 estudantes da região por verem os seus estabelecimentos de ensino encerrados e a estimativa da ordem dos 500 milhões de euros, originados na quebra da procura dos produtos agro-alimentares locais e do turismo, recentemente divulgados por associações sindicais e patronais[4].

Perante este cenário de calamidade, além de apontar o dedo à Camorra e aos políticos, que outras ilações podem ser retiradas? A primeira é a de que problemas desta natureza podem ocorrer em muitos outros países e locais[5]; depois importa recordar a necessidade da tomada de decisões atempadas e correctamente orientadas para as populações, mas a mais importante de todas é a de que as dificuldades dos napolitanos não resultam apenas da corrupção e da inépcia dos políticos. O lamentável estado a que chegou este problema é principalmente fruto duma política económica incorrecta e absolutamente prejudicial das populações em geral e das de menores recursos em especial.

Não grassasse um despudorado furor de privatizar tudo o que possa oferecer um mínimo de lucro e talvez os habitantes da Campania não estivessem abraços com as toneladas de lixo que ciclicamente ameaçam subjugá-los.


Na prática este problema é em tudo idêntico aos que assolam vastas áreas do mundo, onde se praticam políticas de sistemática redução da intervenção pública em benefício da chamada livre iniciativa; cada vez que algures um estado entrega a um reduzido número de cidadãos (nacionais ou estrangeiros) a tarefa de zelar por interesses colectivos, sejam eles ao nível da saúde, da educação, da distribuição de energia e água, de saneamento básico ou de transportes de proximidade, estão-se a criar as condições para, a prazo, se registar algo de semelhante.

Não é um problema de lixo... é um problema de políticas económicas desajustadas!

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[1] Há cerca de 15 anos que de forma cíclica se têm colocado problemas na recolha e tratamento dos resíduos urbanos na região de Nápoles. A última grande crise ocorreu em meados de 2007, altura em que as autoridades renovaram, uma vez mais, as intenções de resolver definitivamente a questão, com o desenvolvimento que agora se vê.
[2] As empresas que gerem as unidades de tratamento dos resíduos são remuneradas, pelos organismos públicos nacionais e comunitários, pelo serviço de separação e triagem e o processo de incineração, porque é gerador de combustível classificado como fonte de energia renovável, volta a ser alvo de contribuições financeiras (subsídios)dos mesmos organismos.
[3] As tentativas ensaiadas pelas autoridades italianas no sentido de procederem à incineração noutras regiões do país dos resíduos originados na Campania, têm-se confrontado com a forte oposição das populações uma vez que é público o facto das entidades e empresas napolitanas (controladas pela Camorra) não procederem à devida separação, o que na prática aumenta os riscos de libertação para a atmosfera de dióxinas e outros produtos tóxicos.
[4] Ver a propósito a notícia do DIÁRIO DIGITAL.
[5] A propósito desta situação em Nápoles, a BBC NEWS dava conta de que mais de uma vintena de países da UE não cumprem os normativos comunitários sobre o processamento de resíduos.

domingo, 13 de janeiro de 2008

CONTINUAMOS A SER TRATADOS COMO OTÁRIOS

Na sequência de um conturbado processo de “estudos” e “debates” em torno da questão da construção do NAL e após a conclusão do estudo encomendado pelo Ministro das Obras Públicas ao LNEC, eis que o Primeiro-Ministro anunciou a escolha da localização em Alcochete.

Independentemente das razões invocadas na circunstância e das muitas que os partidários daquela localização ou da primeiramente sugerida – Ota – creio que o fundamental do erro persiste.

Agora como anteriormente, o governo escolheu uma localização para a uma obra de grande envergadura (e ainda maior custo financeiro) sem que estivesse demonstrada a respectiva necessidade.

Quando às empresas e às famílias é pedido um esforço de contensão nos gastos, deveria, por maioria de razões, ser exigido ao Estado um esforço acrescido de zelo no interesse comum e numa objectiva demonstração da absoluta necessidade de investimentos vultuosos. Embora os nossos ministros continuem a invocar um próximo esgotamento do Aeroporto da Portela[1] para justificar a necessidade de construção de uma nova infraestrutura aeroportuária, mantenho todas as minhas dúvidas e reservas quanto à necessidade de mais esta obra faraónica, porquanto, tanto quanto sei:

  1. o estudo que fundamenta o esgotamento da capacidade do Aeroporto da Portela baseia-se num modelo que projecta o crescimento do tráfego aéreo em função de dados anteriores a fenómenos como o aumento exponencial do custo dos combustíveis, o fenómeno das companhias “low cost” nem os efeitos da nova ligação Lisboa – Madrid por TGV;
  2. não foi realizado qualquer estudo do tipo opção zero, ou seja, qual seria o resultado se não for construído qualquer novo aeroporto;
  3. não foi realizado qualquer estudo que contemplasse a manutenção do actual aeroporto e a criação de uma nova infraestrutura de baixo custo, destinada a acolher a actividade dos voos “low cost”.

O estudo realizado pelo LNEC partiu das premissas definidas pelo governo e limitou-se a comparar duas localizações alternativas para a nova infraestrutura, pelo que continuam a não existir estudos comparativos sobre as outras.

Apesar deste evidente atropelo à informação, a imprensa nacional continua a não questionar estas realidades limitando-se a dar conta das principais reacções, entre as quais se contam as que atribuem fundamental importância ao papel do Presidente da República, havendo mesmo quem assegure que Cavaco Silva foi determinante em todo este processo.

Alguns comentadores mais cautelosos, como Perez Metelo que vem chamar a atenção no DN para «...a necessidade de conhecer todas, mas mesmo todas, as alternativas possíveis para cada grande obra, que esteja por fazer. «...» De futuro, para poupar tempo e dinheiro dos contribuintes, é preciso questionar com maior exigência e no tempo certo» ou Mendo Castro Henriques que no PORTUGAL DIÁRIO recorda que na realização de estudos se gastaram «...quase 40 anos durante a maior parte dos quais predominou o secretismo dos relatórios, debatidos por especialistas. Mas a apresentação pública em Novembro de 2005 da escolha da Ota, despertou o que nunca antes se vira em 30 anos de Democracia: uma discussão generalizada sobre a relação entre os custos e os benefícios dessa infra-estrutura e as suas implicações para o futuro do país», sempre vão chamando a atenção para os ensinamentos a colher de todo este processo, ainda que fiquem por esclarecer muitos das movimentações que envolveram esta decisão porque na prática o governo de José Sócrates decidiu manter as opções definidas de forma autocrática em anteriores executivos e, prolongando o logro, vem agora anunciar mais uma grande obra nacional.

O futuro dirá se a melhor opção – a mais racional, a mais económica s e a que melhor serviria os interesses nacionais – não era a solução Portela+1. Para já as próprias declarações de José Sócrates, divulgadas pelo PUBLICO, que de imediato anunciou um programa de investimentos públicos com o objectivo de minimizar o impacto de uma decisão desfavorável para a região da Ota, confirmam a existência de interesses paralelos que ao longo dos anos foram sendo alicerçados à volta desta obra, enquanto ficam por esclarecer outras questões de igual importância económica e estratégica, como seja a do traçado da ligação do TGV e de se o governo pretende ou não manter a irracionalidade da construção da ligação Lisboa - Porto, agora que não haverá mais o aeroporto de permeio.

Se a mobilização gerada em torno da questão do aeroporto parece ter evitado, para já, um mal maior importa não a deixar esmorecer noutras questões tão importantes como a da definição da rede ferroviária nacional e o modelo de financiamento a utilizar para a construção do NAL; é que o governo português, perante a reconhecida situação de incapacidade financeira e na ânsia pela realização de mais uma grande “obra de fachada”, prepara-se para recorrer ao expediente da privatização da ANA[2] – empresa pública que gere as infraestruturas aeroportuárias nacionais – como meio para o financiamento do NAL, opção que além de financeiramente discutível[3] é politicamente inaceitável por se traduzir na transferência para a iniciativa privada de infraestruturas de natureza estratégica e que a prazo poderão ter decisiva influência em questões de Defesa Nacional.
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[1] Sobre o assunto ver estas notícias de meados do ano passado:
Aeroporto da Portela estará esgotado em 2011, diz WTTC
WTTC: Aeroporto da Portela esgotado em 2011
Portela: Governo diz que novo terminal irá adiar esgotamento do aeroporto
Capacidade do aeroporto da Portela vai esgotar-se até 2011
Aeroporto da Portela deverá esgotar-se em 2011
[2] A ANA, SA tem a seu cargo a gestão, exploração e desenvolvimento dos aeroportos de Lisboa (Portela), Porto (Francisco Sá Carneiro), Faro, Ponta Delgada (João Paulo II), Santa Maria, Horta e Flores.
[3] A este respeito ver os interessantes artigos de opinião de João Miranda, publicados no DN em 2 de Junho de2007 e em 12 de Janeiro de 2008:
QUEM PAGA A OTA?
UMA OTA ENCAPOTADA

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

SALTO COM VARA

Por incrível que possa parecer os políticos deste país não conseguem parar de nos surpreender.

Agora foi o futuro administrador do Millennium BCP, ex-administrador da CGD e ex-membro do governo, Armando Vara, que contra os mais elementares princípios éticos solicitou à CGD uma licença sem vencimento, para exercer à vontade aquele novo cargo.


Não contente, como Santos Ferreira, em se preparar para trocar a administração de um banco pela de outro – como se isso fosse perfeitamente natural e uma prática que no próprio sector financeiro não só é permitida como incentivada aos mais variados níveis de responsabilidade – ainda pretende manter os benefícios associados à manutenção do seu vínculo profissional à empresa onde em poucos anos passou da função de caixa à de administrador (entre estas mediou uma passagem pelos governos de Guterres seguida de um estágio como director na CGD).

Que Armando Vara não queira perder a oportunidade de ver aumentados os seus já vastos rendimentos (o vencimento de administrador da CGD é muito superior ao dos restantes trabalhadores daquele banco[1]) e tenha “agarrado” a oportunidade de passar para o BCP é uma opção que apenas a ele respeita, mas que ainda se julgue no direito de garantir um “porto seguro” no caso da transferência falhar é algo que não só ultrapassa toda a ética como prefigura um comportamento de manifesto oportunismo.

Quantos trabalhadores deste país se podem dar ao luxo de trocar de emprego e ainda garantir que em caso de fatalidade poderão regressar ao local de origem?

Ao ler a notícia do PUBLICO, segundo a qual Armando Vara pediu à CGD licença sem vencimento, mas ainda não teve "luz verde" que o CORREIO DA MANHÃ complementa dizendo que a CGD ignora pedido de Vara (como é hábito nestas situações ninguém confirma nem desmente), apetece-me um desabafo: até onde iremos ver descer os políticos nacionais?
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[1] Este fenómeno foi recentemente alvo de um comentário do presidente Cavaco Silva e de notícias na imprensa. Uma na revista VISÃO, que publicou na sua última edição (nº775, de 10 de Janeiro de 2008) um trabalho onde revela as seguintes diferenças entre os custos com administradores e trabalhadores: na CGD 19.963€/3.331€ com administradores e trabalhadores contra 211.071€/3.697€ com administradores e trabalhadores do BCP, que na prática significa uma diferença de 5,99/1 na CGD contra 57,08/ no BCP e outra notícia na SIC que dava nota das desproporcionadas discrepâncias entre os níveis salariais praticados no interior das empresas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

O TRATADO DE LISBOA E O REFERENDO

O primeiro-ministro José Sócrates foi hoje ao parlamento anunciar o que todos já sabíamos – NÃO VAI HAVER REFERENDO SOBRE O TRATADO DE LISBOA.

Para tal avançou três argumentos[1]:
  1. não se justifica fazer um referendo quando há um consenso alargado na sociedade portuguesa quanto ao projecto europeu e quanto ao próprio Tratado de Lisboa;
  2. há uma ampla maioria de portugueses a favor do projecto europeu e que uma consulta popular em Portugal teria implicações negativas em outros Estados-membros;
  3. a ausência de um referendo sobre o Tratado da UE não quebra qualquer compromisso eleitoral do Governo ou do PS;
mas, podia muito bem (e devia) ser honesto, abandonar os subterfúgios e a retórica e assumir que esta decisão foi previamente concertada entre os parceiros europeus…



isto sim é que seria evidenciar uma verdadeira ética da responsabilidade.
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[1] Extraídos da notícia da TSF.

O MAIOR CASINO DO MUNDO

Bem à moda americana, está montado o circo mediático que culminará em Novembro na eleição do próximo presidente dos EUA.

Para já, e cumprindo previsto no curioso sistema eleitoral norte-americano[1], estão a decorrer as primárias, ou seja, a fase em que Republicanos e Democratas escolhem o respectivo candidato que se submeterá ao sufrágio final, que ao contrário do que ocorre na generalidade dos sistemas democráticos não consiste numa eleição directa e na proporção de um homem – um voto, mas sim num sistema indirecto no qual os eleitores escolhem um colégio eleitoral.

A avaliar pelos resultados dos dois estados – Iowa e New Hampshire – onde já decorreram as eleições entre os Democratas e os Republicanos[2] mantém-se em aberto as hipóteses de todos os principais candidatos. No campo Republicano, à vitória no Iowa de Mike Huckabee sucedeu-se a de John McCain, enquanto entre os Democratas a primeira vitória foi para Barack Obama e a segunda para Hillary Clinton.

Com todas as possibilidades em aberto deveria justificar-se um amplo interesse, quer a nível interno quer internacional, sobre os perfis e as ideias dos candidatos a ocupantes da Casa Branca, porém a realidade parece-me bem diferente.

Desde que nos anos 70 do século passado se deu início às primeiras experimentações na América Latina[3] das teorias ultraliberais da escola monetarista que Milton Friedman instituiu em Chicago, que a economia mundial não tem deixado de caminhar a passos seguros para um processo de rápido enriquecimento dos mais poderosos e ricos. Este movimento, modernamente designado como globalização (termo particularmente adequado já que dentro em pouco não restarão senão as grandes empresas transnacionais), e aquela teoria têm-se revelado como os sustentáculos do crescimento dos lucros das grandes empresas e do aumento da sua influência na esfera política, a ponto da política geoestratégica ter passado a ser dominada por estes interesses.

A situação internacional, no plano político, económico e militar, está de tal forma minada pela agenda dos neoconservadores que dominam actualmente a administração Bush que dificilmente o seu sucessor(a), qualquer que ele(a) seja, dificilmente poderá fazer melhor que continuar o rumo traçado.
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[1] Encontrei aqui disponível informação mais completa e o calendário deste curioso acto eleitoral.
[2] No Wioming já se realizou a eleição entre os Republicanos, com a vitória clara de Mitt Romney, mas a dos Democratas só ocorrerá em Março.
[3] O primeiro país a sentir os efeitos das teorias daquele laureado com o Prémio Nobel foi o Chile que após o golpe militar de Pinochet (ocorrido em 11 de Setembro de 1973) de ter deposto o governo democrático de Salvador Allende deu início a uma política de desarticulação do sector público e de privatização de serviços e sectores económicos básicos, como a saúde e educação.

domingo, 6 de janeiro de 2008

MAIS UM ÊXODO AFRICANO?

As últimas notícias que nos chegam do Quénia continuam a revelar uma situação que se encontrará longe de ser resolvida. Enquanto prosseguem os confrontos entre os partidários dos principais contendores nas recentes eleições presidenciais, Mwai Kibaki, o presidente reeleito, e o seu oponente Raila Odinga, que se afirma vítima de manipulação dos resultados eleitorais, as populações continuam a fugir das zonas mais atingidas.

Nada disto constituiu grande novidade num continente onde as tensões políticas rapidamente degeneram em violência e onde muitos são os conflitos de natureza étnica que se mantém activos ou em estado de pronta deflagração, nem num país onde a avultam as divisões étnicas e a constituição confere poderes quase ilimitados ao presidente e cuja história recente tem sido marcada pelas figuras dos respectivos “homens fortes”. Obtida a independência em 1963, o seu primeiro presidente foi Jomo Kenyatta, da etnia kikuyu (a que mais se distinguiu e liderou a revolta contra a presença britânica) tendo-lhe sucedido Daniel Arap Moi, um dos seu vice-presidentes, de etnia kalenjin, que iniciou o seu percurso político em oposição a Kenyatta mas com o qual acabou por se aliar e conduzir o país para uma situação de monolitismo político.

Arap Moi, dando continuidade à política pró-ocidental de Kenyatta manteve-se no poder até 2002, altura em que o seu vice-presidente Mwai Kibaki, também ele um kikuyu, lhe sucedeu graças ao apoio de uma coligação e da promessa de distribuição de cargos pelos representantes de outras etnias[1]. O não cumprimento destas promessas originaram um clima de crescente tensão política e social que culminou nas eleições realizadas em 27 de Dezembro último, com a proclamação da reeleição de Kibaki, resultado que os partidários de Raila Odinga, de etnia luo, contestam.

Das dúvidas em torno da legalidade da vitória atribuída a Mwai Kibaki, recentemente agravadas pelas declarações de Samuel Kivuitu, o presidente da comissão eleitoral, ao jornal EAST AFRICAN STANDARD que confirmam a existência de pressões e a dúvida quanto ao resultado da votação, ao eclodir de conflitos entre luos e kikuyus foi um breve passo. Agravados ou não pela actuação das forças policiais (as opiniões dividem-se consoante o “campo” dos observadores) os confrontos estão a provocar um número elevado de desalojados e a conduzir a débil economia queniana para um beco sem saída.

Os EUA e a UE depois de terem “apostado” no apoio à reeleição de Kibaki defendem agora como alternativa a formação de um governo de unidade (presumivelmente entre Kibaki e Odinga, que o primeiro apoia mas o segundo recusa, defendendo a repetição do processo eleitoral); segundo a imprensa existem ainda outras alternativas de mediação, como a de Desmond Tutu (que já se encontrará em Nairobi) e a da própria União Africana, mas o que é facto é que permanece a agitação que levou já a Cruz Vermelha a apelar à recolha de donativos para minorar as necessidades de mais de 250.000 desalojados.

Como não creio na explicação simplista de que os “negros” são incapazes de viver sem este tipo de confrontações regulares ou de que são, por natureza, incapazes de viver em democracia, as razões para tudo isto têm de ser encontradas algures. No caso do Quénia, país que tem beneficiado de algum crescimento económico e até de uma certa prosperidade originada num sector turístico objecto de grande procura (é no seu território que se situa o muito procurado santuário natural de Masai Mara), não serão razões de natureza económico-social, como sucede por exemplo no Zimbabwe, que ditarão este clima de acesa animosidade mas sim resultado de um processo de formação artificial de estados, tão ao gosto das políticas coloniais praticadas pelos europeus.

Mesmo que isto não explique tudo e que exista uma fundada razão de natureza política[2] para o descontentamento popular, ninguém poderá negar que a imposição de um convívio forçado entre grupos étnicos, algumas vezes profundamente diferenciados e muitas outras marcados pelas animosidades cultivadas pelas antigas potências coloniais, relativamente aos quais raramente terá sido implementada uma política de aproximação cultural pelos governantes pós-coloniais, normalmente mais preocupados no seu enriquecimento pessoal que no bem-estar dos povos em prol dos quais terão sido eleitos.
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[1] Como em muitos outros países africanos o Quénia apresenta uma grande diversidade étnica, sendo os kikuyu (23%) o grupo mais numeroso, seguido dos luhya (14%) um grupo de língua bantu, tal como os kikuyu; seguem-se os luo (13%), que se distribuem também pelo Uganda e a Tanzânia, os kalenjin (11%), os kamba (10%), os kisii e os ameru (8%) e os somalis (3%), que se encontram distribuídos por toda a região do corno de África. Os restantes incluem variados grupos onde se destacam os masai e povos não africanos de origem árabe, asiática e europeia.
[2] No caso queniano, como na generalidade do continente africano, é muitas vezes impossível separar as organizações políticas das suas origens étnicas e os atritos entre etnias da desmesurada ânsia de acesso ao poder e à distribuição de riqueza que este proporciona. Raros têm sido os casos em que as elites políticas das jovens nações africanas não são rapidamente associadas a comportamentos corruptos, tanto mais que a disputa pelas riquezas naturais dos seus territórios a que se entregam as grandes empresas ocidentais (e agora também as orientais) facilita muito aquela tendência.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

NOVAS TRICAS, VELHOS TRUQUES

Enquanto se aproxima a data da Assembleia Geral dos accionistas do Millennium BCP continuam a ser notícia regular as tricas e os truques que têm rodeado todo este imbróglio. Mesmo quando as coisas pareciam estar a querer acalmar com o anúncio de uma candidatura sustentada numa boa percentagem dos accionistas[1] não tardou a que surgisse um grupo alternativo, personificado por Miguel Cadilhe ex-ministro das finanças de cavaco Silve e ex-administrador do BCP entre 1997 e 2001[2], que além de afirmar apresentar uma alternativa à candidatura da equipa de Santos Ferreira ainda veio trazer o problema para uma nova esfera ao acusar esta de candidatura política.

Como se não bastassem todas as confusões que o Millennium BCP viveu neste último ano, com os diversos intervenientes a trocarem entre si as mais variadas acusações, apenas faltava trazer para a cena principal mais uma batalha entre PS e PSD, como se desta luta quase fratricida (não esquecer que os “banqueiros” pertencem todos à mesma família e que as diferenças entre “socialistas” e “sociais-democratas” são muito ténues) não saíssem quase todos a perder.

Mas o que verdadeiramente me motivou a retomar este tema foi a notícia, que hoje foi capa do PUBLICO, de que alguns dos principais accionistas do Millenniem BCP recorreram, no início de 2007, a financiamentos da CGD para reforçarem a sua posição no capital daquele banco.

Esta questão, além de poder recolocar novas dúvidas de natureza deontológica – aqueles financiamentos foram aprovados por alguns dos actuais membros da equipa proposta por Santos Ferreira, entre os quais o já muito polémico Armando Vara – deve ainda ser analisada numa outra perspectiva – a do uso de crédito bancário para o financiamento de movimentos especulativos nos mercados de capitais.

Mesmo admitindo que os membros das famílias Teixeira Duarte e Moniz da Maia tenham recorrido àquela solução para reforçar as suas posições de investidores, já a de Joe Berardo dificilmente poderá ser qualificada da mesma forma e a de Goes Ferreira, atendendo à suas relações preferencias com Jardim Gonçalves (recorde-se o tal “negócio” dos offshores financiado pelo BCP) pode muito representar uma “troca de favores” entre “banqueiros”.

De uma forma ou outra, os factos relatados e não desmentidos indiciam que os mais de 500 milhões de euros que a CGD financiou dificilmente poderão ser qualificados de operação normal de crédito, seja pelos intervenientes seja pelo tipo de garantias usadas na operação – as próprias acções do BCP – seja pela própria finalidade do financiamento. Perante o quadro descrito que ninguém duvide de que o financiamento foi utilizado numa das inúmeras operações meramente especulativas que inflacionam as capitalizações bolsistas das acções[3], contribuem para aumentar as receitas dos corretores bolsistas e dos bancos mas não acrescentam qualquer valor à economia do país.

Por princípio nada tenho a opor a existência e à actuação de especuladores
[4] nos mercados de capitais, mas não posso de modo algum permanecer indiferente quando estes arriscam nas suas transacções não o seu capital mas o proveniente de empréstimos que contraem junto dos bancos. Para melhor se entender esta minha repulsa recordo que as crises que tradicionalmente assolam as bolsas mundiais resultam de subidas anormais (sem qualquer fundamentação nos resultados da actividade das empresas) nas cotações dos títulos, normalmente geradas por movimentos especulativos sem qualquer relação com a realidade da economia nem com a situação económica das empresas, originados em actuações mais ou menos concertadas entre os agentes especuladores e que forçosamente acarretarão prejuízos entre os investidores mais incautos ou mais facilmente atraídos pela miragem do lucro rápido e fácil.
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[1] Sobre este assunto ver o recente post «OS DEUSES DEVEM ESTAR LOUCOS»
[2] Confirmar o currículo de Miguel Cadilhe no portal da Ordem dos Economistas.
[3] A capitalização bolsista é o valor de mercado da empresa ou cotação multiplicada pelo número de acções.
[4] Especuladores são os agentes financeiros que actuam nos mercados de capitais tendo por objectivo a mera obtenção de lucros resultantes da compra e venda de activos, revelando reduzida preocupação quanto ao real valor dos activos que transaccionam. Habitualmente é reconhecida a sua utilidade, porquanto é à sua actuação que se deve boa parte da liquidez existente nos mercados de capitais.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

FAIT DIVERS

Era assim que poderia ser classificada a notícia que ontem foi primeira página do DN, tem feito manchete em muitos meios de comunicação nacional e que dava conta do facto do inspector-geral da ASAE ter sido “apanhado” a fumar num estabelecimento fechado após a entrada em vigor da proibição no passado dia 1, caso aquele responsável não tivesse invocado o argumento de que os casinos e as salas de jogo não estão abrangidos pela mesma regulamentação, interpretação que a DGS (Direcção Geral de Saúde) contesta.

Ao que parece estão em “jogo” os superiores interesses do JOGO e como os proprietários daquele tipo de estabelecimentos não querem arriscar ver reduzidos os seus lucros, a ASAE, pela voz e comportamento do seu principal responsável fazem o “jeito” e preparam-se para “fechar os olhos”.

Confirmando a muito duvidosa qualidade de uma lei que se propõe hoje tratar os fumadores como párias da sociedade (em nome da defesa da saúde mas abrindo as perspectivas para futuras interdições sobre outros grupos que os fanatismos ambientalistas ou securitários entendam merecedores de reprovação e condenação) eis que são os seus próprios “polícias” a evidenciar o ridículo e o oportunismo daquela proibição.

Aos fundamentalistas proibicionistas e afins deixo para reflexão este absurdo – a avaliar pelos “senhores da ASAE” estará cientificamente demonstrado que o fumo nos cafés e bares é altamente tóxico, o mesmo não acontecendo ao fumo nos casinos – e aos fumadores a proposta de passarmos a encher as salas dos casinos, não para jogar mas para fumar...

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

ANO NOVO, PROBLEMAS VELHOS

A crise económica estará longe de ser a única preocupação do ano que agora se inicia e nem sequer será preciso esperar pelo seu desenrolar para vermos surgir as dificuldades.

Como exemplo disto tomemos a anunciada criação unilateral do novo estado do Kosovo, que além de dividir os países membros da UE vai seguramente contribuir para o aumento das tenções entre americanos e russos, já que estas duas potências apoiam, respectivamente, as pretensões kosovares de independência e sérvias de integridade territorial e para revelar à evidência a dualidade de critérios que constitui a prática habitual da comunidade internacional, quando cotejamos esta situação com a de povos como os saarauis e os curdos.

A única razão que se me afigura lógica para tão rapidamente ver concretizadas as pretensões kosovares é o manifesto interesse norte-americano numa ainda maior desagregação dos territórios de influência da ex-União Soviética, na medida em que a haver separação daquela província Sérvia deveria resultar na sua integração no território da Albânia (situação que conheceu de facto entre 1941 e 1944 durante a ocupação italiana daquele país), tanto mais que com ele partilha as origens de 90% dos cerca de 2,5 milhões de habitantes e a língua, mas que por razões estranhas foi integrado na Sérvia em 1912 quando da desintegração do Império Otomano.

Por mais legítimo que possa ser este movimento independentista, deve ser analisado no contexto de uma Europa que pretende caminhar a passos largos para um processo de completa integração económica e na qual existem estados membros no interior dos quais existem evidentes tensões regionalistas, como é o caso da vizinha Espanha, de Chipre e o agora muito actual problema belga.

Apoiar sem reservas a independência do Kosovo enquanto se limitam autonomias (como por exemplo a catalã, a basca e a flamenga) ou se cerceiam anseios de povos como os saarauis e os curdos, poderá vir a revelar-se uma política insustentável a prazo.

Na prática os 2,5 milhões de kosovares, que na realidade deveriam ser designados por albaneses, encontram-se a um passo de ver confirmada a sua independência, enquanto os mais de 25 milhões de curdos que apresentam uma cultura e língua própria mas há séculos que vêm prejudicada a sua pretensão à constituição de um estado autónomo continuam a esperar pelo reconhecimento da soberania sobre um território que se encontra fragmentado entre a Turquia (a maior parte), o Iraque, o Irão, a Síria, o Azerbeijão e a Arménia e que recentemente tem sido alvo de incursões militares turcas

Enquanto isto, os saarauis, que partilham a origem e a língua (árabe e berbere) com Marrocos e a Mauritânia, países que ocupam o território do Saara Ocidental onde os cerca de 370 mil saarauis continuam esquecidos de quase toda a gente apesar de terem visto reconhecido de jure o seu estado autónomo.

É imoral, mas quase certo que durante 2008 os curdos continuarão a ver recusada a sua pretensão autonómica, muito por culpa de um medo atávico que os países da região desenvolveram do poderoso papel histórico que os guerreiros curdos sempre desempenharam na região e da tradicional incapacidade dos governos ocidentais desenvolverem soluções diplomáticas estáveis naquela parte do mundo.

A mesma sorte terão as pretensões saarauis, cujo povo sobrevive graças à ajuda internacional enquanto Marrocos continua a explorar as importantes reservas de fosfatos e os ricos bancos de pesca; mas, não menos preocupante é que no ano que agora iniciamos iremos continuar a assistir à incompreensível tentativa de criar um estado palestiniano, condenado à partida ao fracasso pela total inexistência de condições de viabilidade económica, jurídica e até militar, com o simples objectivo de perpetuar a preservação de um “estado judaico” artificialmente implantado num território que se recusa a partilhar com outra nação[1].
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[1] Importa aqui clarificar a distinção entre Nação e Estado; Nação significa a reunião de pessoas que além de partilharem uma raça, um idioma, uma religião e costumes comuns, revelam ainda uma profunda convicção de querer viver em colectividade, enquanto o Estado é uma instituição dotada de organização política, social e jurídica, que ocupa um território definido, é dirigida por um governo que possui soberania reconhecida tanto interna como externamente e que detém o monopólio do uso da força. Daqui resulta que a existência de uma Nação não constitui de per si motivo suficiente nem obrigatório para a existência de um Estado, podendo este englobar uma ou mais Nações no seu interior.