quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

GOVERNO À ITALIANA

A crise ucraniana tem monopolizado quase integralmente as atenções na Europa, relegando para plano secundário acontecimentos como a queda e formação dum novo governo em Itália.

Se à primeira vista e para um país onde por tradição os governos não completam legislaturas isto não representa nada de novo, já a constatação que foi o primeiro-ministro Enrico «Letta forçado a demitir-se por pressão do próprio partido» constituiu, além de novidade, motivo para reflexão.


Recém-chegado à liderança do Partido Democrático, o dinâmico ex-autarca de Florença, deu afinal corpo ao sentimento geral de apatia face ao governo dum Enrico Letta que há muito se sabia pouco fadado para um lugar a que apenas as circunstâncias e um intrincado jogo parlamentar lhe permitiram alcançar.

Há quase um ano dei nota no “post” «SORRISO AMARGO» dum sentimento italiano que apontava já Matteo Renzi como alternativa claramente vantajosa face ao reconhecidamente titubeante Letta; o que estão estava longe de imaginar é que a queda de Letta resultasse de movimentações do interior do seu próprio partido, mesmo que a justificação fosse tão pragmática quanto o perigo de nova subida da votação em partidos fora do sistema (o caso do MoVimento de Beppe Grillo ou até de grupos nacionalistas) nas próximas eleições europeias.

A chegada à cena política italiana dum “enfant terrible” do calibre de Renzi pode revelar-se afinal mais perigosa que a do cómico Beppe Grillo, pois este enquanto “outsider” estaria mais limitado na produção de estragos irreparáveis – o populismo de Grillo poderia disfarçar uma ambição que Renzi já personifica e, quem sabe, limitar até o campo de manobra dos grupos mais nacionalistas – que apenas podem facilitar a ascensão dos sectores mais conservadores e nacionalistas.

O ónus da actuação do novo primeiro-ministro não se reduzirá apenas a que o «“Golpe palaciano” custa popularidade a Matteo Renzi», pois não se pode esquecer desde a primeira hora que o seu governo, depois do de Mario Monti, é já o segundo, nos últimos três anos, que não resulta de qualquer processo eleitoral e que isso não desgastará apenas a realidade italiana, antes todo um sistema político europeu que parece continuar a privilegiar o beneplácito duns incorpóreos “mercados” – claramente expresso quando na imprensa se escreve que a «Itália financia-se a juros mais baixos com Matteo Renzi» – em detrimento das populações em prol de cujo bem-estar é suposto governarem.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

CONGRESSISMOS

O fim-de-semana nacional ficou marcado pelo Congresso do PSD, não pela novidade ou pela qualidade dos resultados – fossem quais fossem estavam à partida remetidos para o esquecimento – mas por um ou outro “fait divers”, como o do maquiavélico golpe de asa do putativo candidato presencial que deixou de ser para voltar a ser.


É claro, para quem o tenha ouvido, que Marcelo Rebelo de Sousa foi ao Coliseu para relançar a sua candidatura presidencial ou, como escreveu o I, «Marcelo faz rodagem para as presidenciais»; nada de novo nem de surpreendente no mais ágil dos políticos nacionais. Surpreendente, esse sim, foi o discurso de Santana Lopes ao trazer para o conciliábulo algumas notas da realidade socioeconómica portuguesa que o PSD tanto tem feito para esconder.

Refiro intencionalmente o PSD e não apenas a sua direcção pois a ausência no Congresso das vozes internas que mais têm criticado as opções de Passos Coelho (Manuela Ferreira Leite, Pacheco Pereira, Rui Rio) conferiram-lhe o monolitismo necessário e suficiente para tudo pareça numa harmonia que nem a réstia de realismo introduzido por Santana Lopes beliscou.

É óbvio que nem os tempos nem os interesses instalados permitem que se repitam antigos momentos de arroubo ou uma qualquer catarse colectiva que levasse os congressistas a aclamar personalidade ou tese contrária à do líder; nos aparelhos partidários o processo democrático interno está reduzido ao nível da abjecção, bem expresso na ignomínia da eleição de Miguel Relvas para o Conselho Nacional.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

KIEV JÁ ESTÁ A ARDER

Embora as imagens que correm Mundo sugiram o título, a imprensa ocidental, comedidamente, ficou-se pelo anúncio de estar a «Praça de Kiev transformada em campo de batalha». O reacender da tensão entre manifestantes e forças policiais ocorreu com o anúncio do início da operação de financiamento russo e depois de esgotada a ténue tentativa do presidente Yanukovich ter «Marcado ultimato para fim de protestos em Kiev».


Muito se tem escrito sobre as razões para a actual crise ucraniana, que vão desde a periclitante situação financeira do país às recorrentes suspeitas de corrupção, que a separação cultural entre ucranianos (cerca de 65% da população) e russos (cerca de 30%) não ajuda a ultrapassar. Como causas próximas apontam-se a fracassada assinatura dum acordo comercial com a UE e a pressão russa para impedir a aproximação dos interesses ocidentais ao que o Kremlin considera a sua fronteira natural de interesses (Bielorrússia, Ucrânia, Geórgia), que a oposição procura capitalizar a seu favor.

Recorde-se que nos anos recentes a Ucrânia tem conhecido sucessivas reviravoltas na orientação política e que quase todas as figuras que passaram pelo poder, como o ex-primeiro-ministro e actual presidente Viktor Yanukovich ou a antiga primeira-ministra Yulia Timoschenko, em algum momento se viram envolvidos em acusações de corrupção, facto que em nada contribui para a estabilidade no país e que justificará a justa revolta de muitos dos que há cerca de três meses ocupam a Maidan Nezalezhnosti (Praça da Independência), em Kiev.

A pressão popular levou já à demissão do governo encabeçado por Mikola Azarov, à aprovação duma amnistia para os manifestantes detidos pela polícia, mas entre avanços e recuos mantem-se um clima de antagonismo, pelo que nem foi motivo de estranheza quando no início da semana se ficou a saber que a «Tensão aumenta junto ao Parlamento em Kiev»; em jeito de resposta o presidente «Yanukovich denuncia insurreição» a que se seguiu a informação que os «Confrontos voltaram ao centro de Kiev e fizeram vários mortos» em ambos os lados. Enquanto isso, ia sendo dado destaque à reacção de Bruxelas, com o anúncio de que «Durão Barroso quer acordo urgente sobre sanções na Ucrânia», ou que os «Chefes da diplomacia francesa, alemã e polaca vão a Kiev» encontrar-se com o governo e a oposição, horas antes duma reunião onde se espera que a «UE decide quinta-feira sanções contra Presidente ucraniano».

Independentemente dos justos anseios de combate à corrupção e de aproximação à UE (apesar da crise que atravessa esta união económica ainda representa um forte atractivo para quem há poucas décadas abandonou do regime soviético), manifestados pela população ucraniana, é indispensável para uma correcta apreciação da situação não esquecer que (como escrevi no “post” «DIVIDIDOS») “…uma aproximação à UE seria seguida da deslocalização da importante indústria tecnológica e aeroespacial” que a Rússia mantém no país, deteriorando ainda mais uma situação económica já precária, ou que algumas das forças políticas que hoje integram a oposição partilham os mesmos estigmas com os políticos no poder – caso da UDAR (Aliança para a Reforma Democrática Ucraniana, cujas siglas significam “murro”) do ex-pugilista Vitali Klitschko e do partido Batkivshchina (Pátria) liderado por Arseni Iatseniuk, o substituto de Iulia Timoschenko , enquanto outras como o partido nacionalista Svoboda (Liberdade), liderado por Oleg Tiahnibokrevelam uma perigosa aproximação a teses neonazis e a grupos inorgânicos, como o Praviy Sektor (Sector Direito, maioritariamente integrado por “hooligans” associados às claques de futebol) e o menos violento Spilna Sprava (Causa Comum).

Esta realidade tem contado com o beneplácito duma imprensa que não hesita em condenar a actuação dos extremistas do Black Bloc nas manifestações brasileiras enquanto branqueia imagens do mesmo tipo de actuação em Kiev (a excepção que confirma é regra é um recente artigo do PUBLICO sobre «Os protagonistas da batalha de Kiev»); esta dualidade de critérios estará também subjacente na intenção anunciada pela UE de aplicar sanções contra Presidente ucraniano, quando nos casos iraniano e sul-coreano as sanções aplicadas continuam a recair sobre toda a população.

Depois algum aumento de tensão, na sequência de notícias que asseguravam estar o «Exército ucraniano autorizado a recorrer às armas», o anúncio de que a «Oposição ucraniana aceita propostas de Ianukovitch» para a realização de eleições antecipadas e a redução dos poderes presidenciais deveria reacender a esperança de resolução da crise, a menos que já esteja irremediavelmente perdido o pouco controlo sobre os grupos extremistas ou que estes, em defesa de qualquer um dos interesses em conflito, voltem à acção por desacordo com o resultado eleitoral.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

COLOSSAIS INSULTOS

Vítor Gaspar, o ex-ministro das Finanças, acaba de anunciar “urbi et orbe” (em entrevista ao PUBLICO onde procura assinalar a sua ressurreição política) que «é “insultuoso” pensar que fui o quarto elemento da troika».


Mesmo correndo o risco de poder parecer estranho, desta vez sou tentado a concordar com Vítor Gaspar. É que é intelectualmente estúpido conceber-se uma “troika” de quatro elementos (só mesmo à liberdade criativa de Alexandre Dumas é que se pode ter admitido que os “Três Mosqueteiros” se revelassem afinal um quarteto); assim, o papel desempenhado por Vítor Gaspar não terá sido o de quarto lado dum triângulo, antes e há semelhança daquele a que Durão Barroso, então primeiro-ministro de Portugal, se prestou durante a Cimeira anglo-americana que decidiu a invasão do Iraque a pretexto da existência dumas nunca confirmadas armas químicas, o de mero factótum.

O mesmo é difícil de dizer do resto duma entrevista que Vítor Gaspar transforma noutro insulto quando de forma despudorada escamoteia realidades tão evidentes quanto a do fracasso da política de austeridade expansionista ou a incapacidade para cumprir as principais metas anunciadas para os défices anuais e para o endividamento público

É pena (ou talvez não, porque afinal Vítor Gaspar foi mais um dos paladinos do insulto nacional que consistiu na afirmação dogmática da inexistência de alternativas), mas o que ficará para a História da passagem de Vítor Gaspar pelo Terreiro do Paço é o seu triste papel de executor cego duma política desadequada aos fins anunciados e lesiva dos interesses do País que tão insigne personagem nunca se cansou de afirmar ter regressado para servir, mesmo quando à evidência a sua única preocupação (e a dos credores que o terão escolhido para a tarefa) foi a de bem executar as ordens recebidas, qual pro-cônsul serôdio que nunca pensou constituir por si só um insulto para os restantes cidadãos.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

DIA ABSURDO

Por mera convenção de marcada influência comercial, assinala-se amanhã um dia dedicado aos afectos, como se estes devessem ser avaliados em consumo.

Não é apenas o absurdo da comemoração do óbvio, mas principalmente a existência duma sociedade que aceita passivamente ver conspurcado o que o género humano devia conservar de mais puro.


Saúde-se quem, como o caricaturista Angel Boligan, conserva um espírito crítico e denuncia este absurdo.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A ILUSÃO DO PROTECCIONISMO

Não será prematuro considerar que a notícia da semana teve origem numa Suíça onde um «Referendo aprova quota de emigração aos países da UE», nem o assunto deve ser encarado como um problema interno, pois além dum evidente sinal de recrudescimento xenófobo constitui ainda um sério aviso para a crescente aceitação dos partidos e movimentos de extrema-direita.


A reacção cândida de Bruxelas foi o anúncio que a «União Europeia vai avaliar laços com a Suíça depois do referendo»; simultaneamente mais clara e figurativa terá sido a comissária Viviane Reding ao afirmar que o «Mercado único não pode ter buracos como queijo suíço», enquanto no geral os comentários comunitários podem ser resumidos na expressão do ministro dos Estrangeiros luxemburguês quando lembrou que a «"Suíça não pode esperar o mesmo acesso ao mercado interno da UE"», recolocando a questão no plano económico, mas evitando a mínima alusão à grande fonte de receita helvética: o mais antigo e reputado “offshore” mundial.

Ora a Suíça coloca no mercado europeu 55% das suas exportações e dele provêem 80% das suas importações, facto que não terá pesado na votação mas irá dificultar em muito a tarefa a que agora obrigou um governo que declarando-se contra não conseguiu inverter um resultado onde, numa ilusão de proteccionismo, os «Suíços viram as costas à livre circulação e à Europa». Tal como em 2009, quando foram chamados a votar sobre a construção de minaretes (ver o “post” «SINAIS (TRISTES) DOS TEMPOS»), ou em 2010, sobre a expulsão de estrangeiros condenados pela Justiça (ver o “post” «NOVOS SINAIS (TRISTES) DOS TEMPOS»), os eleitores suíços terão reagido mais ao ancestral medo dos “estrangeiros” e aos argumentos populistas, de que os emigrantes estão a mudar o seu país e a degradar a qualidade de vida dos naturais, do que à racional análise dos prós e contras duma opção que a avaliar por alguns estudos realizados até mostram um saldo positivo da abertura da Suíça à UE, pois o desemprego manteve-se perto dos 3%, os salários crescem desde 2002 a uma média de 0,6% e a economia tem crescido acima da média europeia (estimada em 2% para 2014); até o crescimento da emigração após os acordos com a UE foi reduzido (20% em 2002 contra os actuais 23,5%).

No plano político o resultado do referendo não representa apenas mais uma acha na fogueira nacionalista que ameaça inflamar as próximas eleições europeias, não sendo pois de estranhar que a «Extrema-direita europeia festeja resultados do referendo suíço» enquanto a «Extrema-direita francesa saúda "lucidez" dos suíços no referendo» e que, aproveitando a maré, a sua dirigente Marine «Le Pen quer seguir exemplo suíço contra imigração».

A França, não sendo caso único, tem registado um crescimento contínuo do seu partido de extrema-direita. Dizer-se que «A Frente Nacional tem o apoio de 34% dos franceses mas pode ter parado de crescer» talvez traduza a realidade duma Europa que há semelhança do ocorrido nos anos da Grande Depressão parece cada vez mais disponível para abraçar ideais pouco democráticos, tal a insegurança social e económica a que tem sido forçada pelos governos que elegeu.

A situação que a UE atravessa, onde a fragilidade e a manifesta incapacidade da sua liderança se tem traduzido no fomento dos mais diversos nacionalismos, a deriva demagógica das lideranças democráticas, de que são bons exemplos a actuação francesa contra etnias como a cigana (ver o “post” «NÓS E OS OUTROS») ou o caso da proibição do uso do “hijab” islâmico em locais públicos (ver o “post«LIBERDADES»), estão a ser capitalizadas para fomentar tendências proteccionistas que, tarde ou cedo, acabarão por se virar contra os que a tudo assistem silenciosamente.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A CORRUPÇÃO SEGUNDO A CE

Mais que um lugar-comum, associar Portugal ao fenómeno da corrupção corre o risco de se converter numa marca indelével, tantos têm sido os relatórios das mais variadas origens a referi-lo.

O último, da autoria da Comissão Europeia, apresentado esta semana nem justificaria especial destaque não fosse precisamente a sua origem.


Afirmar-se que «Portugal não tem uma estratégia contra a corrupção», como faz o citado relatório, constitui mera constatação dum facto que muitas figuras nacionais têm denunciado ao longo do tempo mas pouco ou nada diz sobre as origens ou os envolvidos no processo, principalmente quando outra das constatações é a da existência duma «Justiça portuguesa sem eficácia para reprimir corrupção», afirmação que esconderá principalmente o imobilismo do sistema judiciário.

A imagem duma Justiça lenta contribui muito para a afirmação que «90% dos portugueses acham que corrupção é generalizada» e para a conclusão de que a «Corrupção afecta o dia-a-dia de mais de um terço dos portugueses», pouco importando saber que «Nenhum país europeu está a salvo».

No cômputo geral a ideia é a de que o fenómeno – grave – da corrupção tende a afectar mais os países da Europa do Sul (reafirmando a noção empírica que associa altos níveis de corrupção aos fortes desequilíbrios financeiros e a elevados níveis de endividamento) que os do Norte (as virtuosas economias liberais), conclusão tanto mais tendenciosa quanto é baseada em inquéritos de opinião e não em dados concretos, o que ainda assim não impede os autores do relatório de estimarem em 120 mil milhões de euros os prejuízos causados às economias do conjunto da UE.

Embora pouco provável, conhecendo os mecanismos de constituição da Comissão Europeia e a sua visível perca de importância política, seria de esperar que um trabalho desta natureza apontasse soluções, tanto mais que Bruxelas tem revelado particular apetência para produzir abundante e apertada legislação noutros campos da vida europeia, como sejam os da segurança alimentar e da luta antitabágica.

Aliás, no capítulo da legislação talvez sejamos os campeões (o PUBLICO inicia o seu editorial «A percepção da corrupção» lembrando que “…somos bons a fazer leis e maus a aplicá-las”) tantas são as leis e os regulamentos que ano após ano, governo após governo, têm sido aprovados com o anunciado intuito de combater a corrupção. Já o seu efeito prático tem sido bem diverso, deixando no ar muito mais que uma difusa suspeição sobre legisladores e consultores que periodicamente transitam duma posição para a outra – a tão falada promiscuidade entre legisladores e gabinetes de advogados – sem que tal pareça estranho, suspeito ou sequer duvidoso. E a importância do papel da Justiça é tanto mais importante quanto uma imagem da sua eficácia no combate à corrupção seria um importante contributo, através do efeito dissuasor, para a sua redução.

Este laxismo estende-se além-fronteiras de forma tão visível que até a eurodeputada «Ana Gomes critica UE por “fechar os olhos” à corrupção» e perante as câmaras da RTP «Ana Gomes aponta exemplos da inacção da troika no combate à corrupção», tanto mais evidente quando se assiste a uma permanente trasfega para o nível europeu de políticos que a nível nacional não ficaram conhecidos pelas suas especiais competências (deixando pairar fundadas dúvidas sobre o modelo de escolhas) ou até pelo envolvimento em casos fortemente conotados com corrupção, e só começará a ser eficazmente combatido com uma educação de valores e uma actuação efectiva sobre os agentes económicos que não declarem a riqueza evidenciada e sobre as instituições (principalmente os “offshores”) que lhes dão cobertura.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

MIRÓBOLÂNCIAS [*]

A polémica e o “lufa-lufa” jurídico em torno do leilão de quase uma centena de obras do pintor catalão Joan Miró decidido pela PARVALOREM, entidade que gere “os restos” do famigerado BPN (banco nacionalizado em Novembro de 2008 que, segundo algumas fontes, já terá custado aos portugueses perto de 9 mil milhões de euros), representa apenas o episódio mais recente em que aquelas obras de arte se têm visto envolvidas. A própria forma como estas passaram a constituir parte do activo do BPN – em resultado do incumprimento duma operação de crédito com o promotor do BPN em Madrid (genro do ex-primeiro ministro espanhol José Maria Aznar) – é por si só reveladora dum modelo de gestão extravagante, que, considerando a sua contabilização por um valor de 150 milhões de euros (esse é o valor referido no artigo «Os quadros de Miró, o genro de Aznar, o empréstimo incobrável e as extravagâncias de Oliveira e Costa»), parece estender-se à administração da PARVALOREM quando pretende vendê-los por 1/5 daquele valor.


Independentemente da polémica sobre a qualificação pela Direcção-Geral do Património Cultural e sobre o repentino interesse da classe política – que já originou comentários onde «PSD acusa PS de «política baixa» a propósito da colecção Miró» ou, reacção perfeitamente natural de quem ignora quantos cantos compõem os Lusíadas, aquele onde «Cavaco vê Miró como “arma de arremesso político”» –, permanecem por responder questões como a de saber se os «Quadros de Miró saíram ilegalmente de Portugal», situação que a confirmar-se não ilustra nem a administração da PARVALOREM nem o Governo, tanto mais que, como escreveu o EXPRESSO, se «Obras de Miró saíram do país por mala diplomática», afirmação que significa um claro envolvimento do executivo, contrariando anteriores afirmações do secretário de Estado da Cultura, Barreto Xavier, confirmado pelas palavras do próprio primeiro-ministro: «Caso Miró “não correu bem” mas obras vão ser vendidas na mesma».

Outro foco de polémica é a invocada necessidade da venda de uma colecção de arte a preço de saldo para aliviar o fardo do BPN sobre os contribuintes, contra a opinião de especialistas como Luís Raposo, o presidente da direcção da comissão nacional do Conselho Internacional de Museus (ICOM), que afirma que a «Venda de colecção Miró "é um erro de política cultural"». Opção tanto mais estranha quanto há pouco mais de um ano o mesmo «Estado "limpou" BPN e injectou mais de mil milhões antes de vender ao BIC» por uns simpáticos 40 milhões de euros.

Depois disto haverá ainda quem estranhe a notícia de que «Berardo está interessado em comprar os "Miró"»?



[*] Se a presidente da Assembleia da República, Conceição Esteves, pode falar em “conseguimentos” acho que inventar uma aglutinação do nome de Joan Miró – escultor e pintor catalão (1893-1983), figura proeminente do movimento surrealista – com a expressão popular mirabolância, que significa ratice ou extravagância, é perfeitamente aceitável numa língua viva como a portuguesa.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

A UCRÂNIA E A UE

A culminar quase dois meses de manifestações na Ucrânia o «Governo cede aos protestos de rua e pede demissão». Tendo como pano de fundo a contestação à suspensão da política de aproximação à UE (ver o «post» «DIVIDIDOS»), os ucranianos iniciaram um processo de contestação aberta que para já deverá dar lugar à realização de eleições antecipadas e, talvez, a uma mudança de governo; nada que garanta a satisfação dos anseios pró-europeus, quando 30% dos cerca de 45 milhões de habitantes que partilham um território equivalente ao da Península Ibérica usam o russo como primeira língua.
Mas a divisão entre os ucranianos não é apenas fruto duma situação de quase bancarrota nem da sua ascendência, antes sustentada em questões pragmáticas como a proximidade e uma dependência económica do seu poderoso vizinho.

Para complicar a mistura efervescente neste cadinho juntem-se os óbvios interesses da Rússia – não apenas os de natureza económica mas também os de origem geoestratégica (a Ucrânia é vital para ao cesso russo ao mar Negro e ao Mediterrâneo) que a levarão a tudo fazer para impedir a entrada na NATO da Ucrânia e doutros estados vizinhos - e os proverbiais subterfúgios duma UE fragilizada pela crise e permanentemente enredada nas suas próprias hesitações e na falta duma estratégia clara.


A ausência de estratégia de Bruxelas não é um fenómeno recente (desde os finais do século passado e das adesões dos países do sul europeu – Grécia, Espanha e Portugal – que o processo de alargamento tem sido determinado por interesses nebulosos e nunca objecto dum debate ou resultado duma estratégia conhecida) antes um processo de degradação da própria governança da União.

Não se estranhe pois que os aparentes desenvolvimentos e a vantagem alcançada pelos grupos pró-europeus tenham ocorrido nas vésperas duma reunião UE-Rússia que durou apenas três horas e quando o presidente russo Vladimir «Putin garante que não revê acordos se oposição chegar ao poder», numa clara afirmação de que a “pressão” continuará a exercer-se qualquer que seja o inquilino em Kiev, nem que do interior do Parlamento chegue o alerta de que «A Ucrânia “está à beirada guerra civil”, avisa ex-Presidente» Leonid Kravchuk.

Esta hipótese, talvez exagerada mas aceitável quando após a confirmação que «Parlamento aprova amnistia para manifestantes presos»  tudo é adiado com uma doença do presidente Ianukovitch, poderá nem sequer ser afastada com a antecipação das eleições tal é a proliferação de forças políticas e a sua fragilidade conceptual, perfeitamente demonstrada quando uma das principais forças da oposição, liderada pelo boxeur Vitali Klitschko, se chama Udar (Murro), sendo expectável a manutenção da situação onde «Rússia e UE continuam a medir forças na “luta” pela Ucrânia», mesmo que a última, na ausência de condições financeiras e militares, continue a fazê-lo de forma apenas formal.

Pouco referido na imprensa ocidental é o facto de existirem mais interessados na questão ucraniana que as já referidas Rússia e UE; além do velho “amigo americano”, donde chega a informação que estarão os «EUA em conversações sobre sanções para a Ucrânia», também os quatro membros do Grupo de Visegrad (aliança para a cooperação, firmada em 1991 entre a Polónia, a República Checa, a Eslováquia e a Hungria, nos capítulos económico, cultural e já estendido ao militar) já fizeram ouvir as suas preocupações, dizendo-se os «Países do Visegrado alarmados com a situação na Ucrânia» quando fontes russas (a Voz da Rússia afirma que «Vizinhos da Ucrânia preparam-se para dividir seu território») asseguram que dos lados de Bucarest já se fala numa oportunidade histórica para a Roménia recuperar os territórios da Bucovina do Norte (perdida em 1991 para a Ucrânia) e da Bessarábia do Sul.