quarta-feira, 29 de setembro de 2010

MEDOS


Enquanto a imprensa persiste em bombardear-nos com a gravíssima crise do orçamento e da dívida pública, enquanto ex-ministros pressagiam os piores do males e recomendam as mais drásticas das curas para as maleitas nacionais e enquanto políticos do governo e da oposição se desdobram em declarações e em entrevistas, continua por realizar um verdadeiro debate sobre a estratégia para sair da crise.

Enquanto as personalidades conotadas ou mais próximas das concepções neoliberais persistem na diabolização da coisa pública e os mais moderados defensores de uma via de renovação do sistema capitalista procuram introduzir alguma seriedade no debate, os tradicionais porta-vozes dos sectores mais contestatários parecem ter emudecido perante a verborreia dos primeiros e pouco ou nada têm contribuído para o debate. Assim, espartilhados entre os produtores de anátemas contra tudo o que possa por em perigo o seu sacrossanto “mercado” e a nítida sensação que as soluções propostas como infalíveis salvadoras tresandam a bafio e não passam de uma mera repetição de muitos dos erros que levaram as economias ao estado em que se encontram, muita gente se interrogará se não existe mesmo outra alternativa, tanto mais que apesar dos sinais de recuperação das economias se mantém em crescimento as taxas de desemprego, a ponto de muito pouca gente ter festejado o anúncio do fim da recessão.


É claro que no quadro conceptual em que funcionam os paladinos do “mercado” e da livre concorrência será quase impossível encontrar soluções que não passem pelos referenciais que originaram (e fundamentaram ideologicamente) a chamada globalização e que no essencial não pugnem pelo aprofundamento da liberalização dos mercados, mesmo quando isso implica, à evidência, a perpetuação do desemprego.

Teoricamente, a falência do modelo de desenvolvimento que nos conduziu a esta situação deveria suscitar entre os teóricos e os técnicos a necessidade de elaboração de novos referenciais, contudo, aquilo a que assistimos é ao apelo à continuação do “jogo”, ou ao mero recurso a paliativos, como recentemente o fez um grupo de especialistas europeus (entre os quais Jacques Delors, o lendário “pai” da UE), ao apelarem à imediata activação do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira. Embora louvável, a intenção daquelas personalidades não representa mais que um mero paliativo para o problema de fundo que é o do endividamento dos Estados em exclusivo benefício do sector financeiro.

Mais que propor a activação de um mecanismo comunitário de apoio aos estados-membros mais endividados, o que se deveria fazer era alterar radicalmente um sistema que usurpou aos Estados o poder de criação da moeda, algo que no actual quadro europeu – espaço comunitário onde vigora um sistema de moeda única num mais vasto espaço de integração económica – só será exequível a partir dessa estrutura.

Porém, enquanto esta for dirigida por políticos da índole de Durão Barroso, Van Rompuy e afins, bem poderemos continuar a ouvir os mesmos discursos e a sofrer as mesmas políticas[1] orientadas exclusivamente em prejuízo da vasta maioria das populações (entre as quais se inclui a crescente multidão de desempregados), que nem as mobilizações populares até agora realizadas conseguirão alterar uma vírgula.
As greves e manifestações já realizadas um pouco por toda a Europa (e pelo Mundo) só terão efeito real quando a estas forem associadas propostas concretas de mudança profunda no paradigma de desenvolvimento económico que a todos tem orientado. Limitar as reivindicações populares a mais emprego e melhores salários, sem denunciar que a clara origem da crise se situa no crescimento “ad nauseam” de um sector financeiro-especulativo totalmente desligado dos sectores produtivos da economia, nas distorcidas políticas de redistribuição de rendimentos e de imposição fiscal (entre os dois únicos factores produtivos nas economias, o capital e o trabalho), que tem lançado as Famílias e os Estados na dependência do endividamento (aumentando ainda mais os já desmesurados lucros do sector financeiro), além de pouco contribuir para a resolução do problema, continua a oferecer um argumento aos defensores do ultra-liberalismo, na figura da anarquia e da quebra da produtividade.

Assim, as movimentações populares, para aumentarem a sua eficácia terão que seleccionar correctamente os alvos e ser complementadas com ideias claras sobre as alternativas. Esta hipótese (ou o mais simples e prosaico pânico de que o poder possa “cair na rua”[2]) parece estar a ser equacionada pelos que nos governam ou talvez não tivesse surgido a mais recente necessidade nacional – o investimento de 5 milhões de euros em viaturas anti-motim[3] – no auge da medonha crise financeira que o governo de José Sócrates se propõe combater com as medidas hoje mesmo anunciadas de novos aumentos de impostos e de reduções salariais.


[1] Veja-se esta notícia onde o ECONÓMICO adianta que «Barroso revela hoje medidas polémicas de resposta à crise»
[2] Situação naturalmente equacionada quando se constata o número anormalmente elevado de detenções efectuadas e objecto até de títulos noticiosos como: « Greve geral já provocou meia centena de detenções» ou  Milhares de pessoas protestam em Bruxelas contra austeridade na UE».

domingo, 26 de setembro de 2010

ESTARÁ O MONSTRO MESMO MORTO?


Quem no início desta semana tenha folheado um ou outro jornal norte-americano não pode ter deixado de notar as notícias que, dando conta de uma conclusão do National Bureau of Economic Research (NBER), anunciavam o fim oficial, nos EUA, da recessão iniciada com a crise do “subprime”.


O comité de especialistas do NBER, que em Abril último adiara aquele anúncio oficial alegando não dispor ainda da necessária segurança (alguns dos seus membros admitiam mesmo a possibilidade da economia voltar aos resultados negativos), anunciou agora que a crise terminou em Junho de 2009, embora o sentimento da generalidade das pessoas contrarie abertamente aquela conclusão.
Fazendo-se ainda sentir bem vivos os efeitos de destruição de empregos, facto aliás registado pelos especialistas mas prontamente apontado como o único indicador negativo entre o conjunto observado, é natural que a reacção não seja propriamente eufórica, tanto mais que todos os sinais de recuperação económica são extremamente anémicos e existem observadores que mantém hoje, como em Abril mantinham alguns dos membros do NBER, a convicção de que as principais economias deverão voltar a registar resultados negativos muito em breve.

Esta perspectiva de “double dip”, é também defendida no último relatório do “think tank” europeu LEAP, que fundamenta em indicadores como a evolução do Índice de Crescimento da economia norte-americana e numa simples antevisão da evolução política e social, marcada pela realização das eleições intercalares do próximo mês de Novembro. 


Partindo da observação de factos tão concretos quanto a visível tendência para o aparecimento de candidatos exteriores ao “establishment” bipartidário (principalmente os ultraconservadores do movimento “Tea Party”), aquele “think tank” atribui uma elevada probabilidade à eclosão de uma maior agitação social, fenómeno que apenas poderá agravar as reconhecidas dificuldades que a instável economia americana atravessa, tanto mais que o desemprego continua elevado (os membros do NBER reconhecem essa realidade, como refere esta notícia do THE NEW YORK TIMES, e falam numa taxa de 9,6%, número francamente inferior aos 22% estimados pelo SHADOW GOVERNMENT STATISTICS) e as perspectivas de melhoria estão longe de serem animadoras; desde o início oficial da recessão foram destruídos 7,3 milhões de empregos nos EUA, as famílias viram-se desapossadas de 2,5 milhões de lares e o crescimento da economia continua a revelar-se dolorosamente lento, com o segundo trimestre do ano a registar um crescimento de 1,6% quando o anterior atingira os 3,7%, números bem inferiores aos 5% registados no último trimestre de 2009.

A gravidade do problema do desemprego (nos EUA e no resto das economias ocidentais) foi bem traduzido no último relatório da OCDE que estima, para a economia norte-americana um crescimento em 2010 da ordem dos 2,6% e uma estagnação da taxa de desemprego, pois o valor estimado para o crescimento económico representa cerca de metade do necessário para que a taxa de desemprego descesse 1%; àquela previsão soma-se o facto reconhecido de crise após crise estar a aumentar o período de tempo que medeia entre o início do ciclo de crescimento económico e a redução dos níveis de desemprego.

Se observarmos que na crise dos anos 80 do século passado o emprego começou a registar crescimento quase simultâneo com o fim da recessão, enquanto em 2001 demorou cerca de 19 meses a recuperar e agora, 15 meses volvidos não se regista o menor sinal de abrandamento, talvez se justifique a procura de outra explicação para o fenómeno além da que é tradicionalmente usada pelos especialistas que atribuem aquele hiato à demora na recuperação da confiança pelos agentes económicos (leia-se, empresários), bem como a natural frustração das populações.


A questão é que, tarde ou cedo, o desânimo popular terá reflexos na situação política dos Estados e fenómenos como o já referido movimento “Tea Party”, as manifestações que um pouco por todo o lado vão surgindo contra as políticas económicas e sociais dos governos e até decisões altamente controversas, como a medida populista e securitária de expulsão dos ciganos recentemente decidida pelo presidente Sarkozy, serão cada vez mais frequentes e introduzirão uma acrescida componente de insegurança que as franjas mais conservadoras e radicais não deixarão de explorar.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

FANTASMAS ORÇAMENTAIS


O resultado do leilão, hoje realizado, de dívida pública portuguesa apresentou a esperada consonância com as operações congéneres espanhola e irlandesa que esta semana tiveram lugar e que no seu conjunto mereceram uma aceitação positiva (com a procura a exceder a oferta), mas com taxas cada vez mais elevadas.

Este resultado, tal como quase tudo o que nos últimos tempos tem acontecido em Portugal, será apreciado pelo governo de José Sócrates como um claro sinal positivo e pela oposição (com especial destaque para o partido da alternância) como um sinal negativo.

Ninguém poderá duvidar que é grave a situação do endividamento público em Portugal, nem que o governo em funções ou os seus antecessores pouco ou nada têm feito para a contrariar, começando pelo simples facto de que todos têm subordinado as suas intervenções aos interesses e aos calendários políticos das respectivas clientelas. Isto é tanto verdade quanto se constata que governo após governo se repetem as mesmas piedosas intenções e as mesmas práticas – privilegiando recurso ao aumento de impostos em detrimento de um controlo e/ou redução dos gastos – quando não a mesma incapacidade na abordagem da questão.

Que as economias mundiais se revelam cada vez frágeis e que as perspectivas de resolução da crise mundial se encontra ainda muito longe, parece deixar cada vez menos dúvidas, mas tudo isso não constitui senão uma pequena fracção do problema quando políticos e dirigentes parecem orientados por uma agenda completamente diferente.

A nível do grão de areia que representa a economia portuguesa no cômputo global, a questão do endividamento público é quase irrelevante, mas constitui uma clara evidência da incapacidade do modelo de endividamento global. Tal como as famílias foram progressivamente empurradas para o endividamento (como única via para o acesso a bens e serviços que os decrescentes salários não podiam assegurar), também as finanças públicas, privadas de maiores receitas por via de políticas fiscais que isentando empresas e fortunas beneficiaram a concentração da riqueza, sofreram o mesmo tipo de pressão, com os resultados conhecidos.

Curioso é vermos agora os mesmos políticos e economistas, que defenderam a realização de investimentos públicos espúrios (como os estádios de futebol e pontes de reduzida ou nula utilidade pública), fazerem coro pela necessidade de redução da despesa pública, como se na actual crise o essencial desta não consistisse num dos possíveis instrumentos para a redução das desigualdades e uma indispensável ferramenta para a dinamização do tal “mercado” de que sempre foram paladinos empenhados.

Haverá sinal mais claro da gravidade da situação que ouvir aqueles senhores clamar (de forma indirecta e capciosa, pois convém não esquecer a regra do politicamente correcto) contra mais um aumento de impostos? É que embora eles não o digam, o seu real receio é que não havendo já grande margem para aumento dos impostos sobre os trabalhadores por conta de outrém, o governo, agora apodado de despesista, se vire para os rendimentos do capital como última fonte de rendimento.

Constituindo o endividamento (do Estado e das famílias) uma das melhores formas de concentração da riqueza nas mãos de um grupo diminuto de poderosos, estranha-se que os políticos que sempre representaram tão bem os interesses daqueles pareçam subitamente tão preocupados como bem das multidões de deserdados, depois de nas últimas décadas terem defendido e aplicado uma política de esbulho do património público e em especial da sua componente produtiva. Privados das receitas das empresas públicas – oportunisticamente apontadas como ineficientes e fonte de despesa, mas que logo que oferecidas à iniciativa privada se revelaram grandes geradoras de lucros e dividendos – os Estados foram progressivamente manietados à dependência da dívida, a mesma que agora os sufoca e que deles exige a imposição de ainda maiores sacrifícios às populações.

A grande lição que já deveria ter sido extraída da crise que atravessamos é que ela está a abalar os próprios fundamentos de um modelo de desenvolvimento assente no enriquecimento de uma minoria a expensas da vasta maioria e que se quisermos ultrapassar as suas actuais limitações teremos que gizar um novo modelo de organização que, definitivamente, separe as esferas produtivas da financeira e limite esta ao realmente importante papel de canalização do aforro para o investimento.

sábado, 18 de setembro de 2010

MAIS NUVENS NEGRAS

Quando a meio da semana li no PUBLICO que «O problema da dívida pública foi o Lehman Brothers europeu» e que «Colapso do banco foi o rastilho para crise ainda sem fim», veio-me à memória o discurso que Ben Bernanke, o presidente do FED, proferiu no final do mês passado durante uma reunião anual daquele banco central e o recente anúncio do novo acordo de regulação bancária (Basileia III).
Coincidindo com o anúncio de um crescimento trimestral da economia norte-americana abaixo do esperado (1,6% contra os esperados 2,4%), Bernanke reafirmou, sem especificar, a disponibilidade do FED para assegurar o crescimento económico embora «...as projecções macroeconómicas continuem incertas e a economia permaneça vulnerável a desenvolvimentos inesperados»[1], deixando assim subentendida a previsibilidade de novo “mergulho” das economias, bem como a possibilidade de um novo pacote governamental de estímulos à economia e de nova iniciativa de refinanciamento da banca, já que a iniciativa de aquisição dos chamados “activos tóxicos” (TARP e outras iniciativas para facilitar a liquidez bancária) parece estar esgotada.
Além do claro sinal de que os senhores da finança mundial esperam tempos difíceis, a vacuidade do discurso do homem forte do FED apenas pode pressagiar que perante nova hecatombe financeira aquele banco central se prepara para repetir a solução aplicada sem grande sucesso aquando da falência do Lehman Brothers e confrontado com a insolvência do sistema financeiro se prepara para nova operação de injecção de liquidez, sem ter sequer compreendido a origem do problema e as limitações da solução.
Se tudo começou no facto das instituições financeiras terem usado até à exaustão os capitais de que dispunham em sofisticados e incompreendidos produtos financeiros e de nos seus balanços figurarem biliões e biliões de “papéis” de reduzido ou nulo valor, a solução preconizado por Bernanke e pelos seus pares consistiu apenas em trocar esses títulos por unidades monetárias que os bancos tiveram de devolver aos bancos centrais sob a forma de reservas para garantir a solvabilidade perdida.
As evidentes carências próprias e a necessidade de fazer crer ao público em geral que tudo corre bem (em caso contrário arrisca o bem conhecido fenómeno da corrida aos levantamentos) constitui uma das principais razões para o facto da banca em geral ter reduzido substancialmente o fluxo de financiamento às empresas que, criadas sem a adequada dotação de capitais próprios e habituadas a viver num ciclo de abundância de capitais alheios, vivem tempos cada vez mais difíceis e são obrigadas cada vez mais a entrar em processos de falência originando os conhecidos aumentos de desemprego e redução do crescimento económico.
Igualmente atingidos por este vórtice destrutivo são as finanças públicas que vêm reduzidos os valores cobrados em impostos (sobre o trabalho, por via do desemprego crescente, sobre a actividade empresarial, por via da contracção das vendas, e da destruição do tecido empresarial, por via das falências) e acrescidas as dificuldades na obtenção de empréstimos, seja pela redução directa da procura seja pelo aumento dos juros exigidos pelos compradores daquele tipo de dívida.

Não se creia, porém, que os grandes prejudicados têm sido os bancos, pois basta lembrar a forma como os seus lucros têm crescido para afastar semelhante ideia. Quem tem suportado este modelo financeiro e na realidade vive hoje pior que há uns anos atrás, são os cidadãos (em especial a enorme massa de trabalhadores por conta de outrém) dos Estados cujos bancos centrais se apressaram a socorrer a banca em risco de falência; além dos que viram esfumar-se as suas míseras poupanças aplicadas nos famosos fundos de pensões e outros esquemas ilusionistas, ou viram as empresas onde trabalhavam reduzir a actividade e encerrar por falta de encomendas ou por os seus accionistas terem decidido deslocalizar a produção para países com mão de obra ainda mais barata e dócil, também os que mantém os seus postos de trabalho enfrentam os aumentos de impostos, decretados pelos governos ávidos de aumentarem as receitas fiscais e de agradarem aos investidores (maioritariamente os bancos e demais empresas financeiras), e todos a redução das políticas sociais decididas pelos governos, ainda e sempre, em nome da necessidade de redução dos défices públicos.
Nem se espere do novo quadro de regulação bancária, conhecido por Basileia III, a solução para os desmandos que originaram o avolumar da crise em 2008, que demorou dois anos a surgir e mantém inalterado o que de pior se pratica no mundo da finança, pois além de manter o princípio da reserva fraccionária (até o agravamento da taxa mínima de capital – TIER 1 – ficou aquém do esperado) e reservar a capacidade de criação de moeda à esfera privada, também nada faz para eliminar os offshores, o que reduz a quase zero as tentativas para introduzir mecanismos de controlo efectivo da actividade mais especulativa.

[1] A citação foi traduzida do referido discurso, que pode ser lido na íntegra aqui.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

QUAL CRISE, QUAL CARAPUÇA...

Livre-se quem tenha chegado a um país como o nosso e desconhecendo em absoluto o que nele ocorre decida recorrer aos canais televisivos nacionais e em especial aos programas de grande informação e debate como meio de informação, pois ficará com a ilusória ideia que os grandes problemas nacionais não são o desemprego nem a crise económica, mas sim as gravíssimas questões do despedimento do principal responsável pela equipa nacional de futebol e a inquietante questão da condenação, por envolvimento num qualquer escândalo pedófilo, de uma conhecida figura da televisão.

É verdade, quando o Mundo se debate com a situação de crise económica e com o flagelo do desemprego, neste cantinho à beira-mar plantado discute-se acesamente aquelas questões com o mesmo empenho e invocação de argumentos como se da sua resolução dependesse a sobrevivência do País.

Qual crise, qual carapuça... o que parece preocupar mesmo os portugueses (a avaliar pela programação das televisões) são os problemas daquelas personalidades e de modo algum questões como a crescente pauperização das populações, de que a revolta que recentemente eclodiu em Moçambique é apenas um reflexo.


Consequência do agravamento das condições de vida e em resposta ao anúncio de novos aumentos de bens e serviços essenciais os moçambicanos saíram à rua para protestar e contestar um governo que regista cada vez maiores dificuldades em disfarçar as gritantes diferenças entre ricos e pobres e uma total incapacidade no combate à corrupção, que continua a ser um dos maiores flagelos das economias.

Pese embora o relatório hoje apresentado pela ONU que revela que a fome tem recuado nos últimos 15 anos, nem por isso o problema deveria merecer menor atenção pois aquele resultado positivo dever-se-á a um ciclo anormal de boas colheitas e de queda nos preços agrícolas, tendência que a crise mundial começa a inverter.

Mas, como referia no início, tudo isto tem passado muito ao lado dos espaços de grande informação televisiva, preferindo esta uma forma de mistificação da realidade e de aturdimento das populações que é ela própria um claro sinal da insensibilidade que grassa pelas sociedades ocidentais e de um tipo de miopia intencionalmente cultivada, que talvez só conheça indícios de cura quando a revolta dos desapossados chegar às cidades e aos bairros onde ainda se vive uma aparência de abundância.

sábado, 11 de setembro de 2010

MENTES CRÉDULAS

Assinala-se hoje mais um aniversário (o nono) dos atentados às Torres Gémeas de Nova Iorque e, não fora um quase “fait divers”, poder-se-ia dizer que hoje como então tudo continua na mesma.
Nove anos volvidos e um inquérito oficial depois, continuam por explicar e esclarecer questões da maior importância que deveriam hoje ser relembradas, não fosse a oportuna ideia veiculada por um pastor lunático de se assinalar a data mediante a queima em praça pública de exemplares do Alcorão.


Sobre a inoportunidade e a irresponsabilidade da ideia já vários responsáveis norte-americanos, incluindo figuras da administração e o próprio Obama, se pronunciaram, mas o que me parece digno de reter é a essência da própria ideia.

Será espantoso que nove anos após a catástrofe ocorrida em Nova Iorque e duas guerras de agressão depois, um membro importante de uma qualquer religião apele aos seus fiéis seguidores que promovam uma das manifestações mais bárbaras de incivilidade e ignorância que a queima pública de livros?

Não será precisamente o desviar das atenções para os verdadeiros problemas originados no 11 de Setembro de 2001 (que procurei sistematizar nos “posts” que aqui publiquei em 2006) que pretende o reverendo Terry Jones? ou espera lançar, à semelhança dos papas medievais, mais uma cruzada contra os infiéis?

Mesmo que as hesitações reveladas nos últimos dias indiciem tratar-se mais de um caso de publicidade instantânea que de uma verdadeira “cruzada”, o certo é que infelizmente parece continuar a haver mentes crédulas e facilmente influenciáveis, agora como quando a administração Bush pretendeu que o objecto voador que embateu contra o Pentágono foi um Boeing 757.

Entretida com o queima não queima do padre Jones  ou com a pseudo polémica em torno da construção de uma mesquita em zona vizinha à das antigas Torres Gémeas, a imprensa prefere uma vez mais o acontecimento oco e balofo a uma séria abordagem das questões sobre o 11 de Setembro que continuam por responder.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

MG2

O novo ano escolar está aí e com ele está a chegar aos alunos do primeiro ciclo do ensino básico a nova geração de computadores Magalhães, agora conhecido como MG2.

Apesar da polémica que rodeou a produção e a distribuição da primeira geração eis que o governo de José Sócrates se prepara par repetir a dose e inundar as notícias de imagens de crianças felizes por receberem o seu primeiro computador. Não conseguimos travar o drama do desemprego, nem apresentar qualquer rumo para a economia nacional, mas, bacocamente, pretendemos integrar o pelotão da frente na divulgação e utilização das novas tecnologias.

No futuro os jovens formados no nosso sistema de educação continuarão a não revelar as necessárias competências e às habituais acrescentarão ainda mais esta:



mas esse será um pormenor de somenos importância, pois poderão rapidamente substituir a leitura dos clássicos da literatura portuguesa (obviamente não disponíveis nas bibliotecas virtuais) pelos triliões de bytes de pseudo informação globalizante.

Infelizmente às gerações Coca-Cola e MTV suceder-se-á a geração Google e os resultados não serão melhores.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

UM CIRCO PARA ENTRETER

Que esperanças poderão ser depositadas numa nova ronda de negociações entre Israel e a Autoridade Palestiniana que á partida se sabem não assentarem em qualquer base de estabilidade e que são fruto exclusivamente da vontade (ou do interesse) da administração norte-americana?



Além do mais que provável agravamento de crispações e de um eventual comunicado que assegurará o empenho de todas as partes na prossecução do grandioso objectivo da paz entre os povos, que mais será de esperar de uma das mais mal preparadas cimeiras entre judeus e palestinianos e a propósito da qual o ministro dos negócios estrangeiros israelita – o ultraconservador Avigdor Lieberman – afirmou que a paz é inalcançável nesta geração.

Bem se poderá dizer que tudo não passará de mais uma magistralmente encenada manobra de propaganda a que americanos, judeus e palestinianos se estão a entregar, na qual a dócil participação da Fatah palestiniana é explicada pelas próprias palavras do habitual chefe da delegação palestiniana, Saheb Erakat, que afirmou à AFP: «Se chegarmos a um acordo, o Hamas desaparecerá, mas se fracassarmos, então nós desapareceremos».

As três partes sabem perfeitamente que não existe qualquer hipótese de sucesso numa negociação sobre a questão palestiniana que não envolva a devolução dos territórios palestinianos (incluindo Jerusalém Leste) e dos Montes Golan, ocupados em 1967 na sequência da Guerra dos Seis Dias, a consagração do direito de retorno dos palestinianos expulsos e, a fundamental de todas: a questão do direito do acesso às fontes de água potável.

Quando à partida o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, anunciou como questão primordial o problema da segurança israelita e deixou no ar a dúvida sobre o prolongamento da moratória à ampliação dos colonatos judaicos na Cisjordânia, até os mais optimistas deviam ter compreendido de imediato que nada de novo surgirá nos tempos mais próximos e que mais que as iniciativas desestabilizadoras fomentadas pelo Hamas, é a essência teocrática do próprio Estado de Israel que põe em causa qualquer processo sério de negociação.

A reunião agendada para 14 e 15 de Setembro para a estância turística egípcia de Sharm el-Sheikha confirmará tudo isto.

domingo, 5 de setembro de 2010

MONSTRUOSIDADE JURÍDICA

Ignoro de todo (e duvido que em boa verdade alguém o saiba) se os arguidos no caso Casa Pia serão ou não culpados, como os declarou há dias o tribunal de primeira instância que demorou seis anos a julgar o caso.

Ignoro igualmente se a mais mediática das personalidades condenadas poderá invocar a monstruosidade jurídica de que se diz vítima.



Não tenho infelizmente qualquer dúvida que a Justiça em Portugal continua a dar de si a pior das imagens possíveis, que uma maior celeridade no julgamento eliminaria as suspeições de uma sentença ditada por pressão da opinião pública e que às vítimas de todo este processo continua por ser explicado como é que os responsáveis pela sua formação e protecção (o Estado e os sucessivos dirigentes da Casa Pia) puderam sair incólumes de tudo isto.

A monstruosidade, a verdadeira monstruosidade, é uma sociedade onde tudo isto acontece e tudo continua como se tratasse da coisa mais normal e banal.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

NÓS E OS OUTROS

Com o fim do tradicional período de férias estivais, junta-se ao habitual regresso às aulas para os mais jovens a chamada “rentrée” política, que no plano europeu tem estado a ser marcada pela polémica decisão do governo francês, liderado por Nicolas Sarkozy, de proceder à expulsão de um elevado número de famílias ciganas naturais da Roménia.

Baseado no princípio imposto pelos países da Europa Central quanto à movimentação e instalação dos naturais da Roménia e da Bulgária aquando da adesão daqueles dois países à UEE, sequioso de melhorar a sua imagem eleitoral (principalmente junto dos sectores mais conservadores) o governo francês decidiu proceder à expulsão de famílias de etnia cigana.Esta decisão do governo conservador de Sarkozy poderia não ter atingido as proporções que está atingir não fossem as anteriores polémicas declarações do actual Presidente (quando em 2005, então como Ministro do Interior, apelidou os manifestantes dos arrabaldes de Paris escumalha e ameaçou “limpar a zona à mangueirada”) ou as actuais do Ministro do Interior em exercício e a anunciada intenção de vir a retirar a cidadania aos cidadãos de origem estrangeira envolvidos na prática de crimes, numa clara e directa ligação entre emigração e criminalidade.


Em resumo, em provável consequência do escândalo financeiro Woerth-Bettencourt e seguramente como reflexo da queda da sua popularidade, o exuberante Sarkozy deu início a uma campanha que em boa medida os seus opositores apelidam de xenófoba. O próprio LE MONDE (jornal francês reputado internacionalmente e correntemente designado como moderado) já se envolveu na polémica e de forma particularmente dura para o inquilino do Eliseu, que num editorial assinado pelo seu Director, Eric Fottorino, escreveu há uns dias: «Depois da “escumalha” e da “mangueirada”, imagens de marca do sarkozismo, depois da criação do ministério da identidade nacional e da imigração, comparação duvidosa sugerindo que a segunda ameaça a primeira, o presidente ergueu ele próprio o muro. O dos preconceitos, dos estereótipos, dos inimigos do interior. O da desconfiança entre Eles e Nós, entre a França dos “verdadeiros” franceses e o sofrimento de todos os que não roubam nem matam, mas carregam o estigma do estrangeiro. Raramente foi tão curto o caminho entre o amor próprio e o ódio aos outros

Aberta a polémica, inflamadas as paixões (algo tanto mais fácil quanto os tempos de incerteza mantém altas as taxas de desemprego), bem podem vir agora os panegiristas do inefável Sarkozy lembrar que os críticos têm responsabilidades históricas (como o fez o conselheiro presidencial Alain Minc a propósito da reacção do Vaticano à expulsão dos ciganos), a milenar questão da resistência à integração das comunidades ciganas, ou mesmo tentar dourar a pílula mediante a organização de um encontro para debater o tema da imigração; o que realmente ressalta de todo este imbróglio é que a par das tradicionais dificuldades na integração das comunidades errantes (seja por vontade própria ou dos poderes estabelecidos), sociedades ditas modernas e esclarecidas continuam a permitir o aflorar dos sentimentos mais primários que há pouco menos de um século e na sequência daquela que então era a maior crise económica de sempre conduziram à emergência de regimes nacionalistas, fascistas e militares.

Estigmatizando hoje os ciganos, amanhã os negros e todos os dias os muçulmanos, caminhamos alegremente, numa Europa que se quis farol de liberdades e de direitos cívicos, para a destruição do principal de todos os princípios e valores: ninguém deve ser discriminado em função da sua origem, raça ou credo.