quarta-feira, 28 de maio de 2008

NOVAS ABORDAGENS

Enquanto esperamos para ver os efeitos de um anunciado boicote ao consumo de combustíveis comercializados pelas empresas líderes do mercado nacional, podemos (e devemos) continuar a colocar múltiplas questões em torno de todo este problema.

Quando diariamente nos confrontamos com os fracassos resultantes das políticas centradas no unilateralismo (muitas vezes associadas na linguagem comum ao nosso bem conhecido “quero, posso e mando”), no primado da acumulação e da concentração da riqueza num número crescentemente reduzido de indivíduos e na inacreditável tendência para julgarmos superiores os nossos modelos económico, social e político, de que nos servirão análises retrospectivas, por mais correctas e bem elaboradas que sejam, como a que hoje apresentou hoje
Perez Metelo no DN? Não será antes o momento para equacionarmos outras soluções?

Depois de aqui ter desmascarado a farsa e o logro em que consiste a associação do aumento dos preços dos contratos de futuros sobre o “crude” ao aumento do preço dos combustíveis[1] e de como este mecanismo insuficientemente explicado na imprensa tem sido utilizado pelas empresas refinadoras para aumentar os seus lucros e de no último “post” ter referido algumas das medidas de actuação mais divulgadas na imprensa – desde a crendice na eficiência do mercado até à intervenção governativa sobre os preços, passando por uma intermédia medida de redução da carga fiscal sobre os combustíveis – continuam a existir ângulos de abordagem por referir.

Quando estamos todos conscientes de que vivemos numa sociedade fortemente dependente da energia para a produção de bens e para o transporte, teremos que excluir, “a priori”, a pura e simples hipótese de reduzir drasticamente aquele consumo, mas todas as outras serão exequíveis num maior ou menor grau. Tornados dependentes da importação de bens alimentares por uma política anacrónica de deslocalização da produção agrícola, que apenas mediu os ganhos monetários e se alicerçou no dogma dos baixos custos dos salários e dos transportes, começamos agora com a subida em flecha dos combustíveis a sentir os efeitos negativos de termos abandonado produções agrícolas viáveis e, pior, a equacionar soluções que poderão revelar efeitos ainda mais perversos.

Argumentam os indefectíveis das virtudes do “mercado” que qualquer intervenção governativa – seja no congelamento dos preços seja na redução da carga fiscal – produzirá maiores custos futuros, pelo que o que temos a fazer é procurar um novo “ponto de equilíbrio” face ao encarecimento dos combustíveis. Convenientemente estes apóstolos do neoliberalismo não se pronunciam sobre o facto de até esta data pouco ou nada ter sido feito para o desenvolvimento de uma fonte de energia alternativa ao petróleo, salvo que se tal não se verificou foi apenas por o “mercado” ainda não ter sentido essa necessidade e nunca por os poderes públicos terem permitido que fosse a indústria petrolífera a controlar o processo de pesquisa e desenvolvimento das energias alternativas enquanto admitiam que o termo comparativo para a fixação do preço da energia eléctrica continuasse a ser o do petróleo, nem tampouco sobre a existência de um verdadeiro monopólio nacional ao nível da refinação petrolífera.

Desde a crise petrolífera da década de 1970 que pouco ou nada foi feito no sentido de desenvolver alternativas ao consumo desenfreado daquela fonte de energia[2]; agora, espartilhados entre a reacção dos países produtores de petróleo à desvalorização do dólar (traduzida numa natural subida do preço), as desastrosas consequência da política externa norte-americana para o Médio Oriente[3] e a reorientação de investidores e especuladores do mercado de capitais para o mercado das “commodities[4], quando os Estados, em nome de uma pretensa modernidade e maior eficiência na gestão, entregaram à iniciativa privada até os sectores produtivos estratégicos, abdicando de alguma possibilidade de reacção, que opções nos restam?

Se reconhecermos que ao longo das eras o que distinguiu os grandes pensadores e inventores da maioria dos seus contemporâneos foi a sua capacidade de observar os problemas sob um ângulo diferente, o que esperamos agora para agir da mesma forma quando, para mais, nos confrontamos com situações perante as quais as abordagens tradicionais não estão a funcionar?

Um primeiro passo nesse sentido passará obrigatoriamente pela necessidade de repensar os mecanismos de formação dos preços, expurgando-os de tudo o que contribua para o enviesamento do resultado final. No caso dos combustíveis é manifestamente questionável o facto de se utilizar o método LIFO[5] de gestão de “stocks” para a formação do preço final, porque este num período de acentuado crescimento dos preços tenderá a ampliar aquele efeito sobre o preço final bem como a sobreavalorizar os “stocks” adquiridos a preços inferiores.

Outro importante passo passará por uma cuidada avaliação dos efeitos da carga fiscal sobre a formação do preço e do real efeito que a inevitável quebra no consumo acaba por originar para o fisco. Nenhuma das figuras que até agora se têm manifestado a favor, ou contra, a redução da carga fiscal apresentou qualquer tipo de dados concretos que permitam avaliar os reais efeitos da solução que propõe; mais, nenhum dos defensores da manutenção da actual carga fiscal – sob o argumento de que a sua redução acarretará o agravamento do deficit das contas públicas ou de que é impossível reduzir a despesa pública – apresentou qualquer tipo de dados concretos e ainda menos demonstrou a impossibilidade de reduzir os gastos públicos[6].

No caso concreto, esta necessidade é ainda mais premente por sobre aquele produto incidirem dois impostos diferentes (ISP e IVA) e aplicados cumulativamente originando que o valor final do IVA cobrado seja ampliado pelo efeito da aplicação do ISP.

Quando hoje mesmo foi anunciado mais um aumento dos combustíveis – o 18º em 21 variações desde o início do ano – e se constata a evolução dos preços ao consumidor português...

... que para o caso da gasolina IO95 já se situa nos 1,5 euros/litro quando nos EUA é de 3,986 dólares/galão (valor que convertido para euros e litros corresponde a apenas 0,672 euros/litro[7]) e a crescente divergência entre a evolução dos preços médios do “crude”, medidos em dólares e em euros (com o preço médio mensal em Abril a fixar-se nos 65,7 euros/barril)...

...importante se torna concluir que de modo algum poderemos continuar a manter a atitude descrita pelo humorista Monte Wolverton...

porque dificilmente a passividade nos aproximará de alguma solução.
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[1] Para melhor se entender alguns dos mecanismos que estão por detrás dos mercados financeiros leia-se esta notícia do COURRIER INTERNATIONAL que , citando o THE WALL STREET JOURNAL, descreve a forma como o barril de petróleo atingiu pela primeira vez a marca dos 100 dólares:
«Se o barril de petróleo atingiu temporariamente os 100 dólares no dia 2 de Janeiro em Nova York, foi graças à acção de um pequeno corretor independente, Richard Arens, que quando o preço se situava nos 99,53 dólares decidiu desembolsar 100 mil dólares para comprar 1.000 barris, o volume mínimo permitido. O lote adquirido foi imediatamente revendido com um prejuízo de 600 dólares. Este foi o preço a pagar para ter sido o primeiro no mundo a comprar petróleo a 100 dólares. “Receberá por isso um certificado – que será seguramente emoldurado e pendurado, escreve o The Wall Street Journal que lamenta que a História não retenha também o nome do outro corretor – o primeiro no mundo a ter vendido petróleo a 100 dólares e a realizar um lucro de 600 dólares.»
[2] Entre as muitas questões que de pronto ocorrem a todos, saliente-se a ausência de investimentos na produção de energia eléctrica a partir de fontes renováveis (sol, ar, água) ou até do nuclear e ainda o inexplicável abandono de produção das primeiras gamas de veículos eléctricos que até foram alvo de bom acolhimento pelos utilizadores.
[3] Recorde-se que após a ocupação americana do Iraque as exportações petrolíferas daquele país não voltaram sequer a aproximar dos valores praticados durante a fase final do regime de Saddam Hussein , durante qual vigorou um embargo económico decretado pela ONU.
[4] Designação habitualmente utilizada associada ao mercado de mercadorias.
[5] Acrónimo de “Last In, First Out” que significa literalmente “último a entrar, primeiro a sair” e é um dos métodos de avaliação de inventários, no qual a última mercadoria a entrar é a primeira a sair; por oposição existe o método “First In, First Out” (“primeiro a entrar, primeiro a sair”). Historicamente o método mais utilizado era o LIFO, porém actualmente e por recomendação da International Accounting Standards Board (organismo internacional que define os padrões IFRS - International Financial Reporting Standards para as melhores práticas contabilísticas e de avaliação de activos) o método preferido é o FIFO por se entender ser o que origina menores distorções.
[6] Nesta famigerada questão, recordo que o governo, além de outras, tem sempre disponível a opção de abandonar os controversos projectos das faraónicas obras aeroportuárias e de implantação de uma rede de alta velocidade de muito duvidosa rentabilidade.
[7] O valor mencionado refere-se ao preço da gasolina corrente, segundo informação disponibilizada pela Energy Information Administration (órgão do governo americano que produz estatísticas de energia) na sua página na Internet (http://tonto.eia.doe.gov/dnav/pet/hist/mg_tt_usw.htm).

domingo, 25 de maio de 2008

BOICOTES

Não há jornal económico que nas últimas edições não chame à primeira página a questão do preço do petróleo (seja na perspectiva dos preços da matéria-prima ou dos produtos refinados, seja na das iniciativas governamentais para a redução da dependência energética), mas a mais curiosa de todas é a do SEMANÁRIO ECONÓMICO que faz eco de um apelo ao boicote que circula pela Internet e por SMS.

Este semanário e o DIÁRIO ECONÓMICO dão particular ênfase à questão, em notícias rigorosamente iguais (desde o título até ao desenvolvimento)[1], ou não partilhassem as duas publicações a mesma propriedade[2] e não fossem as peças assinadas pela mesma jornalista, assinalando não só os elevados prejuízos que dele resultariam para a GALP mas recordando também que esta não constituiu uma iniciativa inédita, pois já em 2000 se registou u ma actuação idêntica na Espanha e em França.

Muito mais curioso é o facto de na mesma edição o editorial do SEMANÁRIO ECONÓMICO, da autoria da sua directora Inês Serra Lopes, versar sobre o mesmo tema, abordando-o numa perspectiva um pouco diferente. Enquanto a manchete e a peça da jornalista Lígia Simões se fica pela apresentação de alguns comentários de responsáveis pelo sector da refinação e da revenda de combustíveis, destacando-se o facto daqueles considerarem que existem razões estruturais que justifiquem o actual nível dos preços do “crude”, a de Inês Serra Lopes aponta razões de natureza económico-social para o apelo ao boicote e termina lembrando as implicações políticas que poderão resultar de semelhante iniciativa.

Conhecida de há muito a temperança dos portugueses, poderá parecer estranha a proposta de boicote, mas a mim parece-me bem mais estranha esta súbita preocupação da imprensa e ainda mais o número de “explicações” que está a originar, tanto mais que num editorial do DIÁRIO ECONÓMICO, André Macedo vem defender a cada vez mais desgastada fórmula “mais mercado e mais concorrência” para resolver o aumento dos preços, enquanto apela, beatificamente, à actuação da Autoridade da Concorrência para assegurar o livre funcionamento de seu sacrossanto mercado.

Embora ridículo no geral, há um ponto no qual o autor tem toda a razão - «[b]aixar o ISP seria uma solução desejável, mas é irrealista nos actuais dias de incerteza: o Governo não dividirá uma parte dos 2,8 mil milhões de receitas que conta receber este ano. Também seria uma monstruosidade intervir e condicionar o preço. A prazo, a consequência seria brutal e iríamos todos – com ou sem carro – pagar a factura» - mas relativamente ao qual não desenvolve qualquer argumentação que fundamente a intransigente defesa do mercado. Pior, os argumentos de natureza orçamental e normativa que invoca (conjuntamente com o facto dos governos terem perdido capacidade de controlo sobre a política monetária, oportunamente referido no já citado editorial de Inês Serra Lopes) deveriam conduzir a uma outra linha de raciocínio: a actuação governativa deveria passar cada vez mais pela acção directa sobre sectores chave da economia.
A fundamentar esta asserção veja-se a recente decisão do governo de José Sócrates de não aplicar os termos de revisão dos preços dos transportes públicos, pedidos pelos industriais do sector, numa clara violação das regras em vigor.

Sendo óbvio que o aumento dos passes sociais constituiria mais uma acha para a fogueira da indignação geral, o governo preferiu suportar as críticas dos industriais dos transportes rodoviários (até porque ainda é proprietário de duas das principais empresas de transportes públicos, a CARRIS e a CP) na expectativa de aplacar um pouco a ira geral. Porém, não revela o mesmo tipo de preocupação na actuação da GALP, seja porque ainda detém parte do capital da empresa[3], seja por se considerar incapaz de enfrentar os interesses dos principais accionistas: a ENI e o Grupo Amorim.

Aliás a actuação dos interesses instalados na indústria petrolífera tem constituído matéria para diversas e reiteradas questões, mesmo em países como os EUA, no qual numa recente audição no Congresso[4] os patrões da indústria petrolífera foram lestos a culpabilizar o desfasamento entre a oferta e a procura de petróleo, a defender a necessidade de reabertura de vastas áreas do território americano à exploração petrolífera e a redução da apertada regulamentação sobre a indústria da refinação.

Enquanto de fora continuam a chegar notícias que dão conta que o mercado petrolífero está ”louco”, reproduzindo mesmo declarações do secretário-geral da OPEP que assegura que «[s]e aumentássemos a produção amanhã, os preços não baixariam, devido à especulação e ao dólar fraco», internamente discute-se o que fazer perante este cenário de evidente agravamento generalizado de preços, havendo mesmo quem, como Pedro Santos Guerreiro no JORNAL DE NEGÓCIOS, defenda que «[s]ó há uma medida directa que o Estado pode tomar que não distorce a economia: baixar o imposto sobre os produtos petrolíferos e monitorizar se essa descida não é apropriada pelas gasolineiras. De resto, só medidas indirectas (como apoios a empresas transportadoras ou incentivo a transportes públicos) fazem mais bem do que mal».

Entre tantas e tão contraditórias opiniões que os jornais vão difundindo, parece-me especialmente adequado proceder a alguma sistematização das mesmas.

Assim, para os países produtores de petróleo a subida do preço do “crude” está particularmente associada à especulação e à desvalorização do dólar, enquanto para a indústria petrolífera o problema centra-se num desajustamento entre a oferta e a procura, com esta última a crescer por impulso de países como a China e a Índia. Como é natural ambas as perspectivas apresentam algum fundo de verdade, embora a OPEP procure também disfarçar a sua própria incapacidade para aumentar a produção (seja por inadequação tecnológica e falta de investimentos atempados, seja por a indústria petrolífera já ter ultrapassado o pico de produção[5]) não é menos inegável que a crescente industrialização ditada pela política de deslocalização da produção industrial para a Ásia está a repercutir-se num aumento da procura de petróleo por esses países.

Como procurei explicar quando chamei especial atenção ao que se lê nos jornais, não deve subsistir qualquer dúvida de que a pressão especulativa é uma das grandes responsáveis pela subida descontrolada do preço do “crude”, mas a contínua instabilidade política e militar que é artificialmente mantida numa região de produção petrolífera tão sensível como o Médio Oriente não pode ser esquecida em toda esta situação.

No conjunto, tudo isto representa um “cocktail” fatal para os rendimentos das famílias; cada vez mais depauperadas pelo constante aumento dos bens de primeira necessidade, em consequência das políticas de desenvolvimento económico de cariz neo-liberal que continuam a retirar aos estados capacidade de intervenção e de influência na economia, sentindo dispor de limitadas capacidades de influência no processo de decisão político-económico, aos cidadãos talvez pouco mais reste que o dever da indignação e o recurso à contestação, sendo que a proposta de boicote ao abastecimento de combustíveis nos postos das marcas líderes de mercado poderá constituir uma boa opção.

Aguardemos pelos efeitos…
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[1] Para eliminar qualquer dúvida vejam-se os seguintes endereços:
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http://www.semanarioeconomico.com/empresas/empresas_desarrollo.html
·
http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/nacional/empresas/pt/desarrollo/1126730.html
[2] Ambas as publicações são propriedade da S.T. & S. F., Sociedade de Publicações Lda.
[3] De acordo com o quadro da Estrutura Accionista (consultável neste endereço: http://press.galpenergia.com/galpmedia/vpt/galpenergia/ogrupo/estruturaaccionista/) o Estado português detém mais de 8% do capital (7% através da PARPUBLICA e 1% através da CGD), constituindo o terceiro maior accionista da empresa.
[4] Ver notícia da CNN.
[5] Esta teoria do Pico Petrolífero (Oil Peak), também conhecido como Curva de Hubbert ou Pico de Hubbert, foi apresentada pela primeira vez em meados do século XX e previa que a partir da década de 70 a produção petrolífera entrasse em regressão. Foi o seu autor o geólogo Marion King Hubbert, que defende o princípio do inevitável declínio e fim da produção de petróleo; de acordo com a teoria, aplicável a um poço ou a todo o planeta, a taxa de produção tende a seguir uma curva normal, cujo comportamento se caracteriza por apresentar uma fase de crescimento e de regressão simetricamente distintas pelo período de apogeu ou pico. Na altura o pico foi estimado para a década de 1970 (data que se viria a confirmar para a produção originada nos EUA), enquanto actualmente se aponta para o período entre 2005 e 2025 para a produção mundial.
(Para mais informação consultar, por exemplo, este interessante artigo de David Room and Steve Tanner no seguinte endereço: http://www.thecuttingedgenews.com/index.php?article=476)

quinta-feira, 22 de maio de 2008

REFUGIADOS E XENOFOBIA

A crueza das imagens que estão a chegar da África do Sul, mais que uma evidência da crueldade humana (ou até da actuação do crime organizado, como pretendem alguns observadores[1]), deve ser entendida como uma possível e breve antevisão de novas tendências xenófobas, geradas pelas políticas económicas orientadas para a maximização da remuneração do capital.

Por mais que nos digam que é a conjugação das pressões originadas pela migração dos mais empobrecidos cidadãos dos vizinhos Zimbabwe e Moçambique e do crescente desemprego que se vive na África do Sul, que originou a realidade agora experimentada neste país e que as autoridades de Pretoria apelem à calma, recordem um passado recente de entendimento social e racial (situação bem expressa neste cartoon publicado no jornal sul-africano The Times)

e defendam princípios de solidariedade com as populações vizinhas, a dura realidade remete para uma situação bem diversa.

O discurso oficial poderá estar correcto e reflectir mesmo o real pensamento dos seus autores, mas a realidade económica no país poderá começar a não o suportar quando é conhecido o facto da moeda nacional (o rand) ter desvalorizado, desde Janeiro, mais de 12% contra o dólar norte-americano, de se registar um crescimento da inflação e da indústria mineira se apresentar em situação de recessão devido à carência de energia eléctrica. Com uma taxa de desemprego acima dos 30% nem as importantes reservas minerais (a África do Sul é um dos principais exportadores de ouro e platina) se revelam suficientes para oferecer perspectivas de melhorias no nível de vida das populações e em especial das franjas mais desfavorecidas- precisamente as que se mobilizaram contra a concorrência que os 3 a 5 milhões de imigrantes lhes fazem no mercado de trabalho.

Analisada nesta perspectiva, esta reacção primária, tanto mais injustificada quanto violenta, ganha novos contornos e deve mesmo merecer a atenção de um alerta.

Não há muito tempo os meios de comunicação europeus noticiavam as vagas de imigrantes africanos que procuravam aceder por qualquer meio a este continente e faziam-se eco das políticas que a UE se propunha implementar para combater o flagelo. De concreto resultou o endurecimento das práticas policiais dos países fronteiriços da UE que com a colaboração das autoridades marroquinas lograram instalar campos de refugiados naquele país reduzindo o número de tentativas de atravessamento do estreito de Gibraltar e minimizando os efeitos noticiosos.

Aplacadas as consciências europeias, nem por isso os africanos retidos em território marroquino passaram a dispor de melhores condições de vida nem o número de candidatos a imigrantes se reduziu, nem as prometidas iniciativas de desenvolvimento nos seus países de origem de verificaram.

As notícias do recrudescimento do xenofobismo e das revoltas populares contra o aumento generalizado dos bens essenciais (fenómeno particularmente agudo em países com rendimentos muito baixos), que vão estalando um pouco por todo o lado, são outros tantos sinais da mesma realidade: a crescente desumanização das condições de vida das populações, cada vez menos resultante de fenómenos ou catástrofes naturais, antes sim fruto da actuação concertada dos interesses económicos instalados.
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[1] Ver por exemplo esta notícia da BBC ou esta outra que não desperdiça o ensejo de associar a apaziguadora política sul-africana em relação ao regime de Mugabe.

domingo, 18 de maio de 2008

MAIO DE 68 (parte III – os soixante-huitards)

Se ninguém poderá negar, qualquer que seja a sua orientação político-filosófica, a importância do movimento social que ficou conhecido como o Maio de 86, já não é de estranhar que quarenta anos volvidos os seus participantes (os soixante-huitards)[1] e os seus herdeiros se envolvam em polémicas mais ou menos acesas sobre os respectivos efeitos e a actuação perante estes.

Talvez uma boa forma de representar esta diferença geracional seja a aqui apresentada pelo cartoonista Michael Kountouris…

…que, concorde-se ou não, capta bem a diferença de valores entre as duas gerações.

Esta polémica tem-se até estendido aos próprios “soixante-huitards” que hoje se alinham em posições diferentes.

É óbvio que quarenta anos volvidos sobre o Maio de 68 os seus intervenientes apresentem e defendam pontos e vista diferentes, embora possa ser difícil entender alguns deles, convém não esquecer que a grande novidade daquele movimento foi precisamente a de introduzir uma abordagem de libertação do pensamento.

Enquanto em França se reacende o debate em torno do Maio de 68 e alguns dos seus intervenientes defendem hoje pontos de vista diametralmente opostos, esgrimindo argumentos que vão do quase revisionismo de André Glucksmann[2] até ao triunfalismo de Daniel Cohn-Bendit[3].

Enquanto este conhecido activista da época publicou recentemente a sua visão do Maio de 68 sob o título «FORGET 68», no qual assegura que o Maio de 68 ganhou culturalmente e perdeu politicamente, mas que o mais importante foi aquela vitória, Glucksmann - que há alguns anos se tem vindo a aproximar das teses neoconservadoras – assume que o Maio de 68 foi o principio da superação do pensamento marxista e que o seu verdadeiro espírito se encontra hoje entre aqueles que o querem ver enterrado, como é o caso do actual presidente francês, Nicolas Sarkozy.

Muitas são as opiniões e os pontos de vista que ao longo de quarenta anos têm sido produzidos e difundidos sobre o Maio de 68 (ou sobre a verdadeira revolução cultural que o mundo ocidental viveu nos finais da década de 1960), quer sob a forma de texto quer sob outras como o cinema e a música (não resisto a recordar aqui o filme «The Big Chill»[4], de Lawrence Kasdan, e muitas das composições de Léo Ferré[5]), mas parece-me especialmente adequado terminar com uma citação do último artigo de José Gil[6] na revista Visão:
«…talvez a característica mais singular de Maio de 68 seja a de ter mostrado que as aporias da história eram falsas: foi possível trabalhar, conviver, desejar, amar intensamente 24 horas por dia; realizar uma comunidade deixando toda a liberdade ao indivíduo; desenvolver relações humanas intensas, criativas, numa sociedade altamente desenvolvida (no plano científico, tecnológico, económico, etc.); conceber e realizar um outro ensino, uma outra educação, outros circuitos de produção e distribuição artística, teatral, cinematográfica. Milhares de estudantes e artistas trabalharam horas e horas durante um mês e forjaram esses novos projectos, alternativas democráticas realistas, exequíveis, economicamente possíveis. Montes e documentos foram produzidos – demonstrando que o impossível era o real.»
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[1] Um “soixante-huitard” é a forma de designar as pessoas que participaram nos acontecimentos do Maio de 68, ou mais abrangentemente aqueles cujos ideais são aparentados com os daquele movimento.
[2] André Glucksmann era em Maio de 68 investigador do CNRS - Centre National de la Recherche Scientifique (Centro Nacional para a Pesquisa Científica) como especialista de guerra de dissuasão e estratégia nuclear. Em diversos trabalhos desde então publicados, as suas opiniões foram derivando desde o maoísmo inicial até ao apoio à invasão americana do Iraque. Foi fundador dos think tank Cercle de l’Oratoire (grupo de opinião francês surgido após o 11 de Setembro de 2001, difusor de opiniões atlantistas e próximo dos neoconservadores) e do neoconservador PNAC (Project for the New American Century) e é apoiante de Nicolas Sarkozy.
[3] Daniel Cohn-Bendit é talvez a figura mais mediática, associada ao Maio de 68. De estudante universitário da época, tido como próximo das correntes anarquistas, é hoje eurodeputado pelo partido verde alemão, no qual ajudou Joschka Fischer a tornar-se vice-chamceler e ministro dos negócios estrangeiros da Alemanha entre 1998 e 2005.
[4] Em Portugal foi exibido sob o título «Os Amigos de Alex»
[5] Léo Ferré, foi um dos grandes nomes da canção francesa, ombreando com o seu contemporâneo Jacques Brel, que canções como "Thank You Satan," "Mon Général" e "Ni Dieu, Ni Maître" transformaram em ícone da geração do Maio de 68.
[6] Filósofo e pensador português natural de Moçambique, concluiu a licenciatura em Filosofia na Faculdade de Letras de Paris, na Universidade da Sorbonne, em 1968. Professor universitário em Portugal e França é também autor de diversas obras, artigos e ensaios científicos, sendo talvez de destacar um livro publicado em 2004: «Portugal, Hoje. O Medo de Existir», obra que aborda as questões do quotidiano de uma forma simples e acessível. Em 2005 foi considerado pela revista francesa Le Nouvel Observateur como um dos 25 grandes pensadores do mundo.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

MAIO DE 68 (parte II)

Para melhor compreender o Maio de 68 é indispensável uma breve resenha dos acontecimentos mundiais que o envolveram.

No Vietname, após a derrota das tropas francesas, reabriu-se a luta entre o Norte e o Sul e desde meados da década que o exército americano luta ao lado deste. No início de 1968 as forças comunistas do norte lançaram a ofensiva do Tet, levando o conflito a cerca de uma centena de localidades vietnamitas e dando um primeiro passo para a expulsão dos americanos de Saigão, que ocorreria em 1975.

A contestação estudantil remontava já ao ano de 1967, período em que se destacaram as manifestações na Alemanha contra a Guerra do Vietname e contra o status quo político e social, continuou em 1968, ano em que se registaria mesmo um atentado contra o seu principal líder – Rudi Dutschke –, e alastrou à Grã-Bretanha, à Itália, à Bélgica, a Espanha e a Portugal.

Em abono da verdade se diga que esta ideia de que o movimento estudantil alastrou de França para Portugal pode ser objecto de fundada polémica, uma vez que a contestação estudantil era já uma prática habitual durante o Estado Novo. Assim, a primeira grande movimentação estudantil da década de 1960 remonta ao ano de 61 quando o habitual jantar comemorativa do Dia do Estudante (então celebrado a 25 de Novembro) realizado em Coimbra terminou com uma manifestação pelas ruas da cidade e com a inevitável intervenção policial a que os estudantes responderam com maior mobilização e a criação de um Secretariado Nacional de Estudantes Portugueses e do primeiro Encontro Nacional de Estudantes que teve lugar em Coimbra. O ano de 1962 começa com a marcação de nova data para a comemoração do Dia do Estudante, aumento da repressão policial, a reposição do luto académico na sequência da ocupação policial da Cidade Universitária de Lisboa e a insistência dos estudantes em manterem activas as suas organizações representativas, pelas quais passaram alguns nomes hoje conhecidos na cena política (Jorge Sampaio, na época Secretário-Geral da Reunião Inter Associações, o já falecido Sottomayor Cardia) e na cena cultural (Fernando Rosa, historiador e deputado, Ruben de Carvalho, jornalista e autarca) nacionais.

Esta centelha de luta manter-se-ia até ao eclodir de nova crise em 1969, desta vez em consequência da prisão do Presidente da Associação Académica de Coimbra por este ter tentado discursar durante a cerimónia de inauguração do novo “Edifício das Matemáticas” da Faculdade de Ciências da Universidade daquela cidade. Assinale-se que apesar das limitações impostas pelo estado policial que então vigorava, já nesta data se começavam a constituir os embriões das primeiras associações de âmbito liceal (então designadas de pró-associações), sinal do evidente vigor que o movimento associativo estudantil registava e que em boa parte também contribuiu para a introdução nos quartéis, por via do elevado número de milicianos alistados, das primeiras sementes da revolta que viria a eclodir em 1974.

Retornando aos acontecimentos de 1968, registe-se que a eleição de Alexander Dubcek dá início na Checoslováquia a um processo de desanuviamento na ortodoxia comunista, que ficaria conhecido como a Primavera de Praga, a que apenas a invasão pela União Soviética põe termo, restabelecendo aquela ortodoxia.

Nos EUA acentua-se a contestação à Guerra do Vietname e registam-se os assassinatos de Martin Luther King, activista pelos direitos cívicos para os negros, e de Robert Kennedy, irmão do presidente John F Kennedy, assassinado em 1965, e candidato à eleição para a Casa Branca.

Os focos de agitação que se registaram um pouco por todo o Mundo culminaram no movimento de contestação dos estudantes franceses que marcou uma real alteração de mentalidades, de costumes e uma crescente abertura a novas ideias. O slogan «É PROIBIDO PROIBIR» influenciou o papel dos intelectuais e o aparecimento e a divulgação de trabalhos na área das ciências sociais e humanas tornou-se uma realidade de peso no mundo científico.

A par com a importante evolução de mentalidades que representou, o Maio de 68 foi ainda relevante para o aparecimento dos movimentos feministas e para a aceitação do princípio dos direitos das minorias, além de ter originado outros efeitos ao nível político-económico, como os já referidos aumentos salariais, incluindo o salário mínimo, e da redução dos horários de trabalho (conhecidos pelos Acordos de Grenelle e em cuja negociação se destacou Jacques Chirac[1]).

À convulsão social que representou ter-se-ão ficado a dever realidades hoje banais como os valores da autonomia pessoal, de criatividade, o primado da satisfação pessoal e a recusa das regras tradicionais que, agora enquadradas sob outra dinâmica económica, contribuíram para a evolução da mundialização que então se contestava para a globalização que agora conhecemos ou para a corrente altermundialista onde se acolhem os movimentos ecológicos, pacifistas e as ONG mais activas.

Em termos gerais o Maio de 68 foi a maior contestação contra a ordem instalada, com a especial singularidade de ter aliado a contestação intelectual à do mundo do trabalho assim se convertendo num dos grandes passos para a tomada de consciência da mundialização da sociedade moderna e para a contestação do modelo ocidental da sociedade de consumo.

Valores como generosidade, humanismo, ecologia e nacionalismo foram alguns dos conceitos valorizados por este movimento contestatário de 68, verdadeira antecâmara do que assistiríamos nos anos 70 e 80.

Por tudo isto, para muita gente nada ficou como antes de Maio de 68.
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[1] Membro da UMP, foi titular de várias pastas ministeriais, assumiu ainda por duas vezes o cargo de primeiro-ministro (1974/76 e 1986/88) e o de presidente da república entre 1995 e 2007.

terça-feira, 13 de maio de 2008

O CINZENTISMO INTELECTUAL

Quando há cerca de uma semana li o comentário que Manuela Ferreira Leite escreveu no EXPRESSO sobre o aumento das matérias-primas, não pensei vir a dedicar-lhe aqui especial atenção, não fora o que hoje escreveu Mário Soares no DIÁRIO DE NOTÍCIAS sobre o mesmo assunto e aquele paupérrimo comentário da ex-ministra favorita de Cavaco Silva não justificaria uma linha de reflexão.

O que mudou? Quase tudo; a começar pela forma sintética como Mário Soares (o político generalista) nos transmite a sua visão das origens, responsáveis e consequências da crise económica que atravessamos (da qual a crise das matérias-primas e alimentares é uma parte), até ao facto de terminar com a sua opinião sobre a actuação recomendável para os que nos governam. Ao invés, Manuela Ferreira Leite (a reputada tecnocrata) espraia-se num texto repleto de generalidades, passíveis de serem lidas em qualquer folheto de divulgação e propaganda, vazio de apreciação ou até de sugestão de qualquer modelo de actuação menos que vago.

Que conclusão se pode retirar desta leitura? Que na prática Mário Soares se revela melhor conhecedor dos meandros económicos que Manuela Ferreira Leite? Seguramente que não!
O que distingue os dois textos e os dois autores é que um, Mário Soares, expõe opiniões, tece comentários e críticas e sugere soluções, enquanto outro, perfeitamente inserido nos modernos padrões do politicamente correcto (e ainda mais adequado a alguém que é candidato à liderança de um partido político), revela um total vazio de ideias próprias. Neste tudo são lugares comuns, nada é escrito que não o tivesse sido já por outrem…

Não será, seguramente pelo que escreveu sobre a crise das matérias-primas que Manuela Ferreira Leite arriscará perder a eleição no PSD.

E nós, até quando suportaremos este cinzentismo intelectual?

domingo, 11 de maio de 2008

MAIO DE 68 (parte I)

Estão-se a cumprir quatro décadas sobre um dos grandes acontecimentos políticos e sociais do século XX – o Maio de 68.
Sob esta designação ficou para a história o movimento social que abalou a França gaullista da época, enquanto para a geração que a viveu ficaram as memórias; palavras e imagens que ao longo dos últimos quarenta anos têm procurado explicar e/ou justificar os acontecimentos da época.

Uma abordagem superficial dos acontecimentos poderá revelar que após um curto período de contestação e agitação se seguiu a normalização que se impunha, porém o que então aconteceu em Paris não deve ser analisado fora do contexto do país, da Europa ou mesmo do mundo.

A década de 60 do século XX terá sido uma das mais férteis em movimentações sociais, culturais e políticas; num ambiente de Guerra Fria e de contestação à actuação norte-americana no Vietname, surgia nos EUA um movimento cultural (mas também de contestação à guerra) que ficou conhecido como o movimento “hippie”, que no mercado emergente da música popular lançou nomes como os de Joan Baez, Janis Joplin, The Grateful Dead, Creedence Clearwater Revival, Crosby, Stills, Nash & Young, Carlos Santana e Jimi Hendrix, enquanto em Inglaterra surgiam grupos musicais como The Beatles e Rolling Stones inseridos numa onde de renovação musical com origens nos EUA, mas também de contestação aos valores morais vigentes na época.

Se recordarmos que as razões próximas para a agitação tiveram lugar na Universidade de Nanterre, que entre as principais reivindicações que os seus estudantes apresentam se conta o livre acesso às residências estudantis (na época não era permitido aos estudantes de sexos diferentes a frequência dos edifício residenciais) e que a principal razão para o alastramento do movimento foi a invasão policial daquela cidade universitária decidida pelo reitor após uma tentativa de ocupação de uma residência de raparigas.

O desrespeito da ancestral regra de não intromissão das forças policiais na universidade foi o rastilho para sucessivas manifestações de estudantes noutros pontos do país e em especial na Sorbonne.

Numa época em que se registava a chegada de um número crescente de alunos ao ensino superior, fruto dos anos de crescimento económico no pós-guerra e do aumento da população (baby boom), e em que se mantinham inalteradas as mentalidades de professores e governantes, a irreverência própria da juventude e uma quase completa insensibilidade para lidar com ela acabou por crescer até ao ponto de Paris se ter transformado num campo de batalhas quase diárias entre estudantes e polícia. Foi o período das barricadas (recordando os antigos tempos da Comuna de Paris) e aquele que celebrizou a praia que existia por baixo das calçadas[1] do Quartier Latin[2].

Naturalmente a década que via a geração do pós-guerra atingir a maioridade e um relativo desafogo económico marcou também a natureza política dos acontecimentos estudantis que ocorreram nos EUA, Alemanha, Checoslováquia, Japão, Itália, México e Brasil, mas foi em França onde esta nova realidade foi mais longe. Originado num movimento de contestação estudantil iniciado em Março, ampliar-se-ia até colocar o país numa situação próxima da greve geral; em Maio, no apogeu da crise o presidente Charles de Gaulle chegou a procurar refúgio em instalações militares na Alemanha, enquanto o governo, liderado por Georges Pompidou, propõe a realização de eleições antecipadas.

Esta medida viria a revelar-se essencial para a sobrevivência de um sistema político que no início da crise estudantil revelou a maior inépcia e incapacidade para enfrentar uma situação que escapava aos padrões normais da época – os estudantes que não reivindicavam melhor ensino ou melhores condições nas universidades, mas o fim das discriminações de âmbito sexual (na época o acesso às instalações universitárias femininas estavam vedadas aos alunos masculinos), rapidamente evoluíram essas reivindicações em resposta à ocupação policial do campus universitário ordenada pelo governo.

Com o Quartier Latin transformado em campo de batalha entre estudantes e a polícia e com a crescente politização do movimento, a situação aproximou-se do incontrolável. As forças políticas tradicionais, qualquer que fosse o quadrante político em que se inseriam, revelaram enormes dificuldades em entender as motivações dos estudantes e estes, movidos principalmente pela irreverência e por um forte sentido de contestação, ainda que ideologicamente divididos entre maoistas, trotskistas e anarquistas, lograram organizar uma plataforma de resistência a que os slogans e as palavras de ordem da época[3] deram visibilidade.

O movimento alastra quando o SNE (sindicato dos professores do ensino superior) se pronuncia em favor dos estudantes e mesmo a oposição da CGT (a principal confederação sindical francesa) virá a revelar-se ineficaz; as tentativas dos líderes da CGT, como Georges Séguy, e do PCF para desacreditarem as movimentações estudantis, apelidando-as de pueris, pequeno-burguesas e esquerdistas colhem pouco ou nenhum eco quando pequenos sindicatos de empresa começam a ocupar fábricas, a solidarizar-se com os estudantes e a formalizar novas reivindicações.

De um pequeno incidente no meio estudantil o movimento de contestação alastrava ao mundo laboral e quando a RENAULT entra também em greve a situação no país tende a deteriorar-se, ao ponto dos trabalhadores prolongarem a greve após os sindicatos terem obtido a concessão de aumentos de 10% e de 35% para o salário mínimo.

Receando a queda do governo, o presidente Charles de Gaulle[4] dissolve a Assembleia Nacional e convoca eleições antecipadas. Às manifestações dos estudantes sucedem-se manifestações pró-de Gaulle e a crescente convergência entre gaullistas e demais agrupamentos de centro e de direita concluir-se-á com uma vitória, nas eleições de Junho, do partido do presidente (UDR - União Democrática Republicana) e um recuo dos partidos de esquerda.

Depois dos quentes dias de Maio, que viram emergir entre o movimento estudantil figuras como Daniel Cohn-Bendit
[5] (popularizado com o nome de Dany Le Rouge e hoje eurodeputado pelos Verdes) e saltar para a rua e para o léxico popular exigências de liberdade, afirmação pessoal, novos valores sociais, culturais, políticos e até sexuais, a França (e o Mundo) pareceram ter readquirido a calma e a pacatez anteriores e própria dos valores conservadores, mas as aparências iludem…
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[1] Referência a um dos slogans mais populares do Maio de 68 - «Sous les pavés, la plage» (A praia sob a calçada) - e que resultou do facto de durante a construção das barricadas e do seu “municiamento” mediante recurso aos paralelipípedos que então pavimentavam a zona ter sido posto a descoberto a camada de areia onde aqueles assentavam.
[2] Nome do bairro parisiense onde se localizam as principais instalações universitárias da cidade.
[3] Uma ideia sobre a variedade, a ingenuidade e a engenhosidade destes slogans pode ser obtida através da consulta deste endereço na Net: http://users.skynet.be/ddz/mai68, onde o seu autor compilou centenas deles.
[4] General que liderou o processo de resistência à ocupação alemã durante a II Guerra Mundial, exerceu os cargos de primeiro-ministro entre 1944 e 1946 e entre 1958 e 1959 e o de presidente da república entre 1959 e 1969.
[5] Além do já referido Daniel Cohn-Bendit, outras figuras da cultura e da política viveram o Maio de 68. Entre estas saliente-se: Jean Paul Sartre, filósofo existencialista que cedo se declarou a favor dos estudantes e que viria mais tarde a colaborar na fundação daquele que é tido como um dos produtos de Maio de 68: o jornal Libération; Louis Aragon, poeta e um dos fundadores do movimento surrealista, comunista, talvez devido à posição dúbia do PCF sofreu o repúdio dos estudantes quando procurou solidarizar-se com eles; Bernard Kouchner, médico e actual ministro dos negócios estrangeiros do governo de Nicolas Sarkozy, fundador da ONG Médicos Sem Fronteiras que na época liderou as greves na Faculdade de Medicina; Alain Krivine, líder da Liga Comunista Revolucionária (trotskista) e das manifestações estudantis veio a ser detido após a ilegalização da LCR e mais tarde candidato às presidências de 1969 e 1974 e eurodeputado.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

SERÁ DESTA QUE VAMOS MESMO TER UM REORDENAMENTO URBANO?

Haverá melhor forma para assinalar o Dia da Europa que referir aqui as políticas que nos possam aproximar desse conceito e nos ajudem a todos a aproximar-nos dos padrões de vida do conjunto dos países europeus?

Estou obviamente a referir-me ao anúncio ontem feito pelo Secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades de um novo Plano Estratégico de Habitação que, conforme noticia a LUSA, deverá ser colocado à discussão pública em Setembro e aprovado pelo Conselho de Ministros até ao final do corrente ano e segundo aquele responsável governativo representa um novo paradigma para a habitação em Portugal.

Ainda de acordo com aquela agência noticiosa o Plano Estratégico de Habitação «…recomenda a dinamização do mercado de arrendamento, público e privado, através de medidas de incentivo à oferta e procura, prevê a aquisição de imóveis pelas autarquias para arrendar, incentiva a habitação a custos controlados para venda e a reabilitação do parque habitacional existente», o que na realidade representa uma efectiva alteração ao modelo em uso que há décadas assenta exclusivamente na construção de habitações novas e para venda.

Este modelo exclusivamente orientado para o mercado de aquisição de habitação própria, criou uma situação de excesso de oferta, bem patenteada numa notícia da TSF que refere concretamente que «(n)os últimos dez anos, Portugal teve uma construção de habitações com um ritmo duas vezes superior ao de Espanha ou de França no mesmo período» .

Quando se estima a existência de cerca de 500.000 habitações vagas (naturalmente entre estas se encontrarão as muitas habitações degradadas e os milhares que nos últimos anos não têm encontrado comprador) no território nacional e é conhecido o elevado número de famílias que sobrevive em habitações sobrelotadas e em mau estão de conservação, natural se torna concluir que não só existe a premente necessidade de responder a este problema mas também uma excelente oportunidade de inverter a situação no parque habitacional nacional, especialmente quando o sector da construção civil atravessa uma agonia lenta em consequência do excesso de oferta que ele próprio originou e que finalmente a crise de “subprime” e a descida do preço das habitações em mercados como o americano, o inglês e o espanhol parecem ter agitado algumas mentes brilhantes.

Sinto-me tanto mais à vontade para afirmar isto quanto há algum tempo aqui referi a urgente necessidade de alterar o modelo pelo qual era dado às famílias a possibilidade de acederem à habitação, bem como o indispensável papel das autarquias em todos o processo de recuperação dos centros urbanos, no post «QUE FUTURO PARA AS NOSSAS URBES?».

Talvez por isso o conteúdo que conheço do Plano Estratégico de Habitação, apenas pelas notícias da imprensa uma vez que a página na Internet que devia ser dedicada se encontra inactiva, e pelos nomes de alguns dos que nele colaboraram (Nuno Portas, Augusto Mateus e Isabel Guerra), me leva a alimentar alguma esperança de que finalmente algo possa mudar, isto se houver real vontade política para o fazer e os empresário do sector da construção civil e os especuladores imobiliários entendam que é chegada a hora de encerrar o ciclo dos chorudos lucros com o negócio da venda em regime de propriedade horizontal.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

AS CONTRADIÇÕES DE CAVACO E O LABIRINTO DE VITORINO

A leitura da última crónica publicada por António Vitorino no DN, sob o título «LABIRINTO», induziu-me a retomar o tema do discurso do Presidente da República na cerimónia do 25 de Abril, se mais não fosse pelo facto de não ter o esgotado quando escrevi que discursos leva-os o vento.

Para mais Vitorino aborda a questão numa perspectiva de membro da classe política e embora reconheça que «…no mundo de comunicação global em que vivemos, a política constitui uma das actividades humanas que mais dificuldade tiveram em se adaptar às novas regras. Dito de outro modo: a política perdeu o seu "nicho de mercado" reservado, entrou em concorrência directa com outros "produtos" comunicacionais e... perdeu!», queda-se por uma explicação que não aborda o que me parece ser a questão fulcral: o cerne do problema não está na banalização do acto ou do pensamento político mas sim no vazio desse mesmo pensamento.

E como se não bastassem os discursos (e as ideias) vazios de conteúdo, rapidamente a estes se seguiram os políticos despidos de ética e de valores, pois é bem sabido quanto a ausência de ideologia (ou de simples ideias próprias) é o ambiente idealmente propício ao seguidismo. Quando o confronto político abdicou da vertente do debate de ideias (como é que alguém vazio de ideias as pode debater) entrou num ciclo de predominância dos populistas o que coloca o conjunto do fenómeno político a um passo do descrédito e, perigosamente, abre caminho aos que ainda acham que a solução é “haver alguém a mandar”.

Contrariamente aos que defendem que a mera integração europeia, que Portugal acompanha, garantirá por si só a manutenção da democracia[1], penso que corremos o sério de risco de já estarmos a viver um ciclo de “democracia de pacotilha”, caracterizado não só pela prevalência do tão apregoado bipartidarismo mas principalmente pela prevalência das respectivas correntes populistas o que conduzirá, inevitavelmente, a um distanciamento cada vez maior dos cidadãos e a uma mais fácil emergência dessas mesmas correntes.

Dito isto, estará o nosso modelo democrático no limiar de um vórtice de autodestruição?

Serão premonitórias, apesar do ridículo de terem sido proferidas por dois dos representantes máximos do nosso modelo democrático, as declarações de Cavaco Silva que durante o discurso citado referiu que «(n)ão há democracia sem política e não há política sem ideias políticas» e do presidente da Assembleia da República, o socialista Jaime Gama, que disse no seu discurso[2] que a criação de ideias políticas é indispensável para a democracia?

Quando duas das personalidades de topo dos dois partidos que praticamente desde o 25 de Abril têm conduzido os destinos do nosso país, proferem na mesma data afirmações deste tipo haverá pouco lugar a dúvidas quanto ao estado a que chegou o regime, mesmo que se queira manter uma fachada de normalidade.

Isso mesmo terá sido tentado pelo editorialista do DN[3] que logo no dia 26 escrevia que «Cavaco acertou na mouche ao dedicar ao alheamento dos jovens portugueses da coisa política o seu discurso comemorativo de mais um aniversário do 25 de Abril», para concluir que «(o)s partidos devem, por isso, reflectir seriamente neste aviso do PR, que com a sua palavra deu um peso institucional suplementar a uma revolta silenciosa dos eleitores que se exprimia através de crescentes taxas de abstenção»; mas mesmo lembrando que «(n)unca desde o 25 de Abril os partidos políticos estiveram tão distantes dos cidadãos» e que a «esta fria distância não é estranho o facto de a primeira geração de políticos profissionais ter chegado ao poder nos principais partidos. Os dois primeiros-ministros mais recentes, Santana Lopes e José Sócrates, formaram-se na escola das Jotas», enquanto, beatificamente, esquecia que o autor do discurso que louvava foi responsável por oito anos à frente do governo da República e que este período coincidiu precisamente com o que marcou o início desse mesmo afastamento.

Este tipo de análise, apesar de algumas vozes discordantes[4], foi dominante na imprensa ao ponto de nos principais jornais (para nem sequer falar nas cadeias de televisão) a polémica ter passado quase sem especial destaque, algo que embora estranho se insere precisamente na estratégia que há muito os aparelhos do PS e do PSD vêm implementando – esqueçam o que dizemos ou não dizemos e votem em nós!
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[1] Veja-se a título de exemplo as opiniões transcritas neste artigo do PUBLICO, assinado por Adelino Gomes.
[2] Citado nesta notícia do PUBLICO.
[3] O editorial referido pode ser lido na íntegra aqui.
[4] A título de exemplo refira-se este texto publicado no próprio dia, na página do PORTUGAL DIÁRIO.

sábado, 3 de maio de 2008

CARTER CONTRA OS TARTUFOS

Desde as primeiras notícias que deram conta da intenção do ex-presidente norte-americano, Jimmy Carter, se encontrar com dirigentes do Hamas que tenho procurado acompanhar a evolução desta iniciativa que, como não podia deixar de ser foi prontamente criticada pelo governo de Israel.

Ehud Olmert e os restantes membros não parecem dispostos a flexibilizar, por pouco que seja, o princípio de que não existe qualquer possibilidade de negociação com o que apelidam de grupo terrorista – o Hamas – tanto mais que enquanto simulam negociar com a Fatah, liderada por Mahmoud Abbas, vão na realidade prolongando a ocupação dos territórios palestinianos e esperando convencer a comunidade internacional que a solução para a crise que eles próprios ajudaram a criar é a divisão entre judeus e palestinianos.

Sustentados no facto de terem conseguido incluir aquele grupo islâmico nas listas internacionais de grupos terroristas, que os EUA se apressaram a criar após o 11 de Setembro, nem sequer após a vitória eleitoral do Hamas nas últimas eleições palestinianas[1] o governo de Telavive revelou o menor sinal de abertura. Pelo contrário, continua a privilegiar uma política de isolamento e de confronto com os palestinianos que chega ao ponto de aplicar um bloqueio à porção do território que o Hamas controla – a Faixa de Gaza – na sequência dos confrontos ocorridos em Junho de 2007 entre militantes deste grupo e da Fatah.[2]

Paralelamente, os seus correligionários americanos tudo têm feito para denegrir a iniciativa de Jimmy Carter, sendo excelente exemplo disso a panóplia de notícias e artigos de imprensa[3], acompanhados de cartoons, que surgiram na imprensa norte-americana retratando o ex-presidente como um joguete nas mãos dos terroristas.

Não estranho a estratégia, habitual neste tipo de situações e quando esgotados os argumentos para contradizer os pressupostos que o próprio enunciou no Cairo, após os primeiros contacto com responsáveis do Hamas, quando afirmou numa alocução proferida na Universidade Americana daquela cidade egípcia que a sua iniciativa apenas pretendia servir de exemplo para outros responsáveis e que era sua convicção que a estratégia de tentar isolar politicamente o Hamas apenas estava a servir para o fortalecer comparativamente com a Fatah.

Ninguém de boa fé poderá afirmar que a estratégia implementada pelos governos israelita e americano estará a resultar, salvo se for entendido como medida de sucesso a degradação das condições de vida das populações da Faixa de Gaza que o bloqueio israelita parece apostado em aniquilar pela via da fome, isto enquanto vai continuando a realizar os seus bem sucedidos raids eliminação selectiva de alvos.

Mesmo para os que pretendam ver o ex-prémio Nobel da Paz Jimmy Carter como o faz caricaturista Bob Gorrell, como apenas mais uma das armas terroristas…

…parece-me difícil convencer a opinião pública mundial de que o homem que negociou o primeiro acordo de paz israelo-egípcio – os acordos de Camp David, firmados entre Menachem Begin e Anwar al-Sadat – no distante ano de 1979. Reflexo disso mesmo tem sido a abordagem desta polémica na imprensa europeia, mais heterogénea que a norte-americana, a ponto do conceituado e conservador LE MONDE[4] ter colocado abertamente dúvidas quanto à eficácia da estratégia de isolamento do Hamas, adoptada por americanos e europeus.

Para já, e de concreto, pouco ou nada resultou desta iniciativa de Jimmy Carter além de muitos desmentidos e muita desinformação. A afirmação proferida por Carter a partir de Israel de que o Hamas estaria disponível para aceitar uma trégua, noticiada nomeadamente pelo DN, era no mesmo dia contrariada pelo PUBLICO que afiançava que o movimento islâmico não reconheceria o estado judaico além das fronteiras de 1967.

Isto significa na prática o que há muito vêem defendendo os líderes do Hamas: o não reconhecimento da ocupação israelitas de Jerusalém Leste, da Cisjordânia, da Faixa de Gaza e dos Montes Golan, a constituição de um estado palestiniano com capital em Jerusalém Leste, o desmantelamento dos colonatos judaicos nos territórios ocupados (Cisjordânia e Faixa de Gaza) e o reconhecimento do direito de regresso dos palestinianos expulsos daqueles territórios.

Enquanto de parte a parte se mantêm a intransigência de posições, bem expressa no facto da secretária de estado norte-americano Condoleezza Rice ter reagido às declarações de Carter[5] com a reafirmação da obrigatoriedade do Hamas renunciar à luta armada e a reconhecer Israel, no terreno a situação das populações palestinianas não pára de se agravar, pelo menos é o que afirma um relatório do Banco Mundial recentemente publicado que revela as limitações ao progresso económico resultantes da actuação israelita a qual não é poupada nas críticas.
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[1] As eleições legislativas realizaram-se em 25 de Janeiro de 2006 e registaram uma vitória do Hamas, movimento de origem islâmica tido como próximo dos Irmãos Muçulmanos (partido egípcio que se opõe ao governo secular de Hosni Mubarak). Este resultado, tido como surpreendente para a diplomacia ocidental, criou uma situação politicamente muito complicada na região agravada ainda pela recusa da Fatah (partido derrotado e a que pertence o Presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmud Abbas) em participar num governo de unidade palestiniana.
[2] Para mais detalhes sobre esta questão ver os posts «OS IRMÃOS INIMIGOS», «CONTRIBUTOS E OBSTÁCULOS PARA A PAZ - I», «CONTRIBUTOS E OBSTÁCULOS PARA A PAZ - II» e «NO FINAL DA FESTA CAIU A MÁSCARA».
[3] A título de exemplo, até pela origem, ver o artigo publicado no DAILY STAR do Líbano.
[4] Ver aqui o artigo em questão.
[5] Ver aqui a notícia difundida pela AFP.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O 1º DE MAIO OU PARA MELHOR ESTÁ BEM, ESTÁ BEM!

As efemérides não podem ser apenas oportunidades para celebrações e festejos de glórias passadas.

Por isso mesmo quando se comemora mais um Dia Mundial dos Trabalhadores, numa data que recorda as lutas operárias[1] que em finais do século XIX se batiam pela redução da jornada diária para as 8 horas, será mais uma excelente oportunidade para aqui fazer referência aos problemas que continuam a atingir aqueles que vivem da comercialização do único bem de que dispõem - o seu trabalho.

Entre os principais problemas costuma referir-se o flagelo do desemprego, realidade que ciclicamente afecta os trabalhadores das economias mais desenvolvidas mas nunca deixou de representar o principal problema nas economias mais periféricas ou menos desenvolvidas, e a eterna luta por um sistema de redistribuição mais equitativo da riqueza. Porém, nesta fase particularmente conturbada de implementação do modelo de pretensa globalização económica está a surgir uma nova realidade, tão preocupante quanto as anteriores: a da crescente pauperização de quem trabalha.

A atestar pelas notícias ontem difundidas a partir de França, segundo um estudo divulgado pelo Observatório Nacional da Pobreza e da Exclusão Social (organismo oficial francês) o processo de redução da pobreza[2] encontra-se estagnado. Os dados divulgados apontam não só para este facto, como ainda indiciam que o volume da pobreza tende a aumentar, uma vez que é cada vez maior o número de trabalhadores que se afundam em situações de precariedade, na medida em que a mera situação de emprego já não assegura a fuga a situações de pobreza[3].

O relatório alerta ainda que a aparente estabilização dos indicadores não pode servir para escamotear o facto de se estar a registar um agravamento da situação financeira dos mais pobres, nomeadamente das camadas mais idosas e isoladas, das famílias monoparentais e dos jovens desempregados ou à procura do primeiro emprego, pelo que a distância entre o nível de vida médio das famílias pobres e o limiar de pobreza estará acrescer, significando na prática que a pobreza será mais generalizada.

Se este é o quadro descrito para o conjunto da economia francesa, que mal ou bem ainda é um país que apresenta o oitavo maior PIB, qual será o cenário nacional quando todos bem conhecemos a realidade da economia portuguesa? Não é só o facto da nossa economia apresentar um PIB que é o 40º no plano mundial, mas principalmente porque é sobejamente conhecida a disparidade da generalidade dos salários nacionais (quando comparados com os dos nossos parceiros da UE), agravada ainda pelas situações de precariedade (sejam elas originadas pelo baixo nível de formação dos trabalhadores sejam pela permissividade da legislação laboral em vigor) e de elevada dependência do investimento estrangeiro para a criação de emprego.

Quando a nível mundial vão ganhando relevância as vozes dos que anunciam a dura realidade da fragilização das economias baseadas em modelos de desenvolvimento suportados quase exclusivamente na esfera financeira, que poderemos nós esperar do futuro próximo?

Onde estão os milhares de postos de trabalho que o governo de José Sócrates, na euforia da vitória, prometeu aos trabalhadores portugueses?

O que foi feito de concreto para colmatar as dificuldades dos milhares que têm visto as fábricas onde trabalhavam encerrarem[4] sob a alegação de que os custos de produção eram demasiado elevados?

Continuará a vizinha Espanha a absorver os mesmos volumes de mão-de-obra nacional quando atravessa crescentes dificuldades resultantes do abrandamento de uma economia fortemente baseada na especulação imobiliária?

Mesmo correndo o risco de falhar num ou noutro caso a resposta ao questionário é globalmente pessimista, tanto mais que quando os cenários de crescimento para as principais economias mundiais não param de ser revistos em baixa (sejam por organismos internacionais, sejam pelos próprios governantes) e as populações se confrontam com aumentos generalizados dos bens de primeira necessidade, o governo de José Sócrates continua a apregoar a nova aurora de prosperidade e crescimento.

Não fora o caso de estarmos a tratar de uma questão particularmente séria (e que afecta quase toda a gente) quase me apetecia recordar aqui que talvez a verdadeira explicação para esta estratégia possa ser encontrada no velho cenário do oásis guterrista, ou não fora Sócrates um dos discípulos dilectos de António Guterres.

Com miragens (do tal oásis que poucos mais conseguem lobrigar) ou outras visões e invocações divinas já naquela época deveríamos ter aprendido que não conseguiríamos sair deste ciclo infernal de empobrecimento nacional, mas apesar disso ainda hoje parece haver quem acredite que breve virá um novo salvador da Pátria.

Duvidam? Vejam com atenção os discursos e as declarações dos candidatos à liderança do PSD; ouçam o que dizem os que pretendem ser reconhecidos como alternativa ao actual governo e verifiquem a quase absoluta coincidência de opiniões e de políticas (ou da sua ausência) entre todos eles.

Porque o 1º de Maio surgiu como marco de luta e de afirmação de vontades, o que de melhor me ocorre é repetir o refrão da velha canção:

«Para melhor está bem, está bem
Para pior já basta assim!»
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[1] Os factos remontam ao mês de Maio de 1886, data em que realizou uma greve geral acompanhada de várias manifestações nas ruas de Chicago; nos dias seguintes mais manifestações terminaram em confrontos com a polícia, dos quais resultou a morte de alguns trabalhadores, novas manifestações de protesto, novos confrontos e mais mortes entre trabalhadores e polícias. A data começaria a ser comemorada a partir de 1889, quando a segunda Internacional Socialista aprova uma proposta para que anualmente se convoquem, naquela data, manifestações reivindicando aquela redução de horário de trabalho. Na sequência desta decisão, nas manifestações que ocorreram em França em 1891, virão a ocorrer novos confrontos e mais vítimas mortais que contribuíram para acentuar ainda mais o carácter da data como um dia de luta dos trabalhadores.
[2] NA UE usa-se como critério o valor de 60% do rendimento médio para definir o limiar de pobreza.
[3] É talvez oportuno recordar aqui aquelas que são consideradas as principais causas da pobreza, uma vez que esta resulta de um conjunto de factores como:

  • Factores políticos e legais – corrupção, inexistência ou mau funcionamento de um sistema democrático e fraca igualdade de oportunidades;
  • Factores económicos – sistema fiscal desadequado ou socialmente injusto, investimento reduzido e uma economia pouco diversificada;
  • Factores sócio-culturais – baixo nível de instrução e formação das populações, discriminação social ou racial, exclusão social e crescimento demográfico muito acentuado;
  • Factores naturais – catástrofes, epidemias (incluindo as dependências do álcool e de drogas) e situação climatéricas ou geográficas extremas;
  • Factores históricos – situação pós-colonial recente e passado de autoritarismo político;
  • Factores de insegurança – guerras, genocídios e crime organizado.

[4] Um bom exemplo disto mesmo é esta notícia de hoje sobre o despedimento de mais 400 trabalhadores da Yazaki Saltano.