quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

OUTRA OPERAÇÃO MILITAR INÚTIL

Quando em meados do mês li a notícia da atribuição do Prémio Nobel da Paz ao ex-presidente finlandês Martti Ahtisaari e o apelo que este então fez para que a comunidade internacional atribuísse a máxima prioridade à questão do Médio Oriente, tornou mais evidente a pergunta: porque é que nunca se recorreu a alguém com a experiência de Ahtisaari para ajudar a resolver o conflito israelo-palestiniano?

Embora ainda pudessem parecer longe as hipóteses de ocorrência de novo conflito naquela região, o já evidente fracasso do Roteiro para a Paz e da Cimeira de Annapolis[1] pouco mais podiam pressagiar que mais tempos conturbados.

Não que os esforços das partes envolvidas – com particular destaque para os EUA e a UE – fossem de molde a tranquilizar toda a gente, nem que a situação no terreno tivesse registado alguma significativa melhoria para as martirizadas populações palestinianas (e em especial para os cerca de milhão e meio de habitantes da exígua Faixa de Gaza sujeitos a um bloqueio económico e militar que se arrasta desde Junho de 2007), mas a conturbada situação internacional e a aparente acalmia nas críticas e condenações do regime iraniano poderia levar a crer que algum entendimento estaria a ocorrer, não fora a conjugação de dois outros factores nada negligenciáveis: a complicação da situação da política interna israelita e a manifesta degradação das condições de vida na Faixa de Gaza.

Os cruéis efeitos do bloqueio que Israel vem impondo àquele território palestiniano, a constante degradação das condições de vida das populações palestinianas condenadas a expiarem o crime de terem eleito democraticamente um governo que as potências ocidentais classificam de terrorista, e alguma perca de popularidade da liderança do Hamas, poderão explicar as razões pelas quais aquele movimento decidiu não renovar a trégua que fora acordada há cerca de seis meses e arriscar um recrudescer do conflito do qual espera obter ganhos à semelhança do ocorrido com o Hezbollah aquando da última invasão israelita do Líbano.

A esta arriscada estratégia do Hamas correspondeu o lado israelita com uma outra ditada não pelos princípios do diálogo e da concertação (aliás em perfeita consonância com o bloqueio que insistem em impor à Faixa de Gaza) mas principalmente por razões de natureza interna. Avizinhando-se um complicado processo eleitoral no próximo mês de Fevereiro, o governo de coligação liderado pelo partido Kadima optou por uma resposta belicista na expectativa de vir a colher benefícios eleitorais.

Como muito bem recorda Osamah Khalil num artigo de opinião, intitulado «The dogs of war» publicado da página ELECTRONIC INTIFADA, esta não é a primeira vez que em Israel se recorre ao uso da força contra os palestinianos como via para influenciar resultados eleitorais[2], nem esta acção pode ser classificada como resposta ao aumento do número de Qassams[3] lançados da Faixa de Gaza contra as povoações judaicas mais próximas (Sderot e Netivot), pois a ideia de fomentar um novo confronto na região deverá remontar ao atentado perpetrado em Fevereiro deste ano contra Imad Mughniyah (comandante militar do Hezbollah, morto num atentado em Damasco).

Cinco dias decorridos desde o início dos “raids” aéreos israelitas sobre a Faixa de Gaza, cerca de quatro centenas de mortos e quase dois milhares de feridos palestinianos (muitos dos quais acabarão por engrossar a estatísticas das baixas fatais dadas a precaríssimas condições médicas e sanitárias no enclave) e depois do aumento dos disparos de Qassams[4], surgiu uma primeira proposta de tréguas formalizada pelo Quarteto para a Paz (EUA, UE, Rússia e ONU) mas que Israel não parece disposto a aceitar. Este impasse pode ainda estar a ser influenciado por uma expectativa de melhoria das condições climatéricas que favoreçam a utilização de forças terrestres.

Enquanto isto analistas e comentadores vão dando à estampa as mais variadas observações, sendo de destacar do lado israelita comentários como o de B. Michael, publicado no YEDIOTH AHRONOTH[5] sob o título «Déjà vu in Gaza» no qual chama a atenção para três pontos: “não há muita glória nem bravura em voar sobre uma gigantesca prisão e disparar sobre a população com helicópteros e aviões de caça”, “quase metade das baixas são graduados de uma escola de polícia sem nenhuma ligação com os mísseis Qassam” e “de um lado e do outro apenas ódio, desgosto, dor e sentimentos de vingança resultarão desta operação. Talvez alguém venha também a ganhar alguns lugares no Knesset”, vão no sentido de desmistificar os principais argumentos que fundamentaram a operação CAST LEAD e que Ron Ben-Yishai expõe no artigo «Shock treatmente in Gaza», publicado no mesmo jornal.

Em idêntica linha crítica à acção militar, Gideon Levy comentou no HAARETZ[6], sob o título «The neighborhood bully strikes again» a tendência israelita para o uso excessivo da força: “Mais uma vez, mesmo existindo justificação, a violenta resposta de Israel excedeu toda a proporção e ultrapassou todos os limites da humanidade, da moralidade, das leis internacionais e da temperança”, que nem os jornalistas mais próximos do poder já tentam negar[7] quando comparam a actual acção militar ao modelo “shock and awe” tão caro aos neoconservadores americanos.

A avaliar pelas notícias mais recentes, Israel recusa a proposta de cessar-fogo do Quarteto para a Paz e continua a reforçar o seu dispositivo militar terrestre (blindados e infantaria mecanizada) na expectativa do lançamento da segunda fase da operação, enquanto os líderes mundiais vão tornando públicos os seus espúrios apelos ao fim das hostilidades, ou, cúmulo da hipocrisia, seguem estritamente a posição norte-americana de condenação do lado palestiniano[8] e de apoio a Israel.

Mesmo sem querer defender as acções violentas do lado palestiniano, alguém poderá afirmar em consciência que a única forma para lhes pôr termo é o recurso a um dos mais sofisticados e bem treinados exércitos mundiais?

É evidente que a divisão que grassa entre os palestinianos tem sido explorada, quando não fomentada, por israelitas e pelos seus indefectíveis aliados americanos, e que esta muito tem contribuído para a degradação das condições de vida nos territórios palestinianos, mas é igualmente verdade que Israel tem persistido no tempo com a uma política de puro segregacionismo, recusando até aos seus cidadãos de ascendência árabe alguns elementares direitos de representação e de crítica, de que esta notícia do jornal suíço LE TEMPS, que dá conta da expulsão durante uma sessão do Knesset de dez parlamentares árabes por contestarem a acção militar contra a Faixa de Gaza, é um perfeito exemplo.

Perante todos estes cenários que esperar como futuro para a região? Ainda continuará a haver quem acredite na viabilidade da solução «dois povos - dois estados» quando um deles não apresenta as mínimas condições de existência, pois além de ver o seu território cada vez mais reduzido e fraccionado ainda lhe é oferecido como vizinho um estado que persiste em ver como inimigos todos os que o rodeiam?

Afinal talvez tenha havido algo de positivo em ninguém ter pensado em recorrer à mediação do mais recente Nobel da Paz, sempre se lhe poupou a mancha de um quase garantido insucesso.
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[1] Sobre o conflito israelo-palestiniano ver os “posts”: «CONTRIBUTOS E OBSTÁCULOS PARA A PAZ – I» e «CONTRIBUTOS E OBSTÁCULOS PARA A PAZ – II»; sobre a mais recente iniciativa de paz norte-americana para a Palestina ver: «NO FINAL DA FESTA CAIU A MÁSCARA».
[2] A anterior ocorreu em 2000, quando na sequência do fracasso de negociações em Camp David o então primeiro-ministro, o trabalhista Ehud Barak (actual ministro da defesa na coligação que Ehud Olmert formou), lançou mão desse expediente para tentar contrariar o ascendente eleitoral do então o líder do Likud, Ariel Sharon.
[3] Designação de um sistema de míssil balístico de muito curto alcance (pouco mais de uma dezena de quilómetros) e de reduzida eficácia dada a reduzida precisão, desenvolvido pelo Hamas. Notícias mais recentes referem o uso de mísseis do tipo Grad, de origem russa mas actualmente produzidos em vários países, que em versões mais modernas podem alcançar os 40 km.
[4] Segundo esta notícia do LE MONDE, só num dia foram lançados cerca de uma centena de “rockets” e apenas após o início da acção militar é que se verificou a primeira baixa israelita.
[5] Tabloide de grande difusão em Israel, de pendor sensacionalista e pouco propenso à publicação de sofisticadas análises, cujo nome significa literalmente “Últimas Notícias”
[6] «A TERRA» é o mais antigo jornal israelita; considerado de linha editorial liberal é reputado principalmente pelas suas análises políticas e pela influência que se lhe atribui entre os círculos políticos, governativos e económicos.
[7] A título de exemplo ver a notícia «IAF strike on Gaza is Israel’s version of ’shock and awe’» do HAARETZ
[8] Um exemplo desta posição da administração Bush pode ser lido nesta notícia da TSF.

sábado, 27 de dezembro de 2008

A FIGURA E O FIGURÃO DE 2008

Saindo fora do habitual modelo de avaliação dos acontecimentos do ano – prática recorrente sempre que nos aproximamos do final de mais um ano – mas sem abdicar de um olhar sobre o que aconteceu em 2008, proponho-me fazê-lo mediante a evocação de duas figuras que creio terem marcado os últimos doze meses.

Tratando-se de um processo algo redutor (a escolha de apenas duas figuras para representar todo um ano de vastas actividades e marcantes acontecimentos) nem por isso deixa de ser um exercício interessante e até revelador do que de pior e de melhor nos terá acontecido. Como escolha pessoal que é, outras igualmente significativas poderiam ter sido feitas e não será de estranhar que no final da leitura haja quem se interrogue do porquê de ter preterido esta ou outra figura, nem quem seguramente me acuse de insensibilidade por não ter reconhecido entre os maiores a figura do futuro presidente dos EUA.

Mas vamos às escolhas!

Uma nacional, outra estrangeira. Uma pela positiva, outra pela negativa; ambas me parecem merecedoras de atenção, mas passemos aos factos.

A figura nacional que me parece merecedora de toda a atenção é a de Manoel de Oliveira, o artista que acaba de completar o seu centenário sentado na cadeira que a tradição "hollywoodesca" atribui à figura do realizador.

A referência não pretende ser sequer uma homenagem, pois o simples facto de ele ser hoje o mais idoso dos realizadores de cinema em actividade e de ao longo da sua vida ter realizado dezenas de filmes[1] (distribuídos entre longas, curtas e médias metragens, documentários, “videoclips”), de entre a primeira e a segunda realização terem mediado três décadas, de actualmente realizar um filme por ano (numa entrevista televisiva a propósito do seu centenário revelou que continua a trabalhar em alguns projectos) e de contar entre os galardões recebidos dois prémios da Bienal de Veneza (Leão de Ouro), em 1985 e 2004, e a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2008, são factos suficientemente relevantes, que terão estado na origem do extenso artigo que o NEW YORK TIMES lhe dedicou no passado mês de Setembro.

Se a figura do ano de 2008 se distingue pela sua faceta artística e humanística (a par com o notável fenómeno de longevidade intelectual e criativa), o figurão justifica o destaque pelo seu papel no desenvolvimento da crise económica que alastra pelas economias mundiais.

Norte-americano de naturalidade, mas de ascendência judaico-húngara (o seu nome de família original era Grünspan), distingiu-se como presidente do FED (o banco central norte-americano) durante duas décadas (1987/2006), precisamente aquelas que precederam a actual crise. Alan Greenspan – pois é a ele que me refiro – licenciou-se em economia na Universidade de New York e iniciou uma actividade como consultor que o conduziria à presidência do FED. Foi nomeado por Ronald Reagan, em Agosto de 1987 para substituir Paul Volcker, ganhou fama e notoriedade pela sua actuação na crise desse mesmo ano[2] e mais tarde na chamada crise das “dot-com[3], baseando sempre a resposta do FED às diversas crises cíclicas em intervenções na liquidez e cortes na taxa de juro.

A sua estratégia de utilização de mecanismos monetários (massa monetária e taxa de juro) como meio de controlo da economia estará, segundo prestigiados economistas como Joseph Stigliz e Paul Krugman[4], é a grande responsável pela bolha do imobiliário cujo rebentamento em 2007 deu início à sucessão de acontecimentos no meio financeiro que conduziram à actual crise.

Registe-se que numa recente audição perante o Congresso norte-americano[5], Greenspan admitiu que as suas convicções de ultraliberal se mostravam abaladas com o desenrolar dos acontecimentos, asserção que não significando uma confissão formal, nem por isso perde o seu peso, nem contribuiu para diminuir as críticas a que tem estado sujeito.

Perante a dimensão da catástrofe e a aparente atrapalhação de um dos seus grandes mentores e que durante décadas foi incensado como um “guru” do conhecimento económico é difícil não lhe atribuir de pronto o título de figurão do ano.
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[1] Uma listagem da sua filmografia pode ser encontrada na WIKIPÉDIA, outra encontra-se integrada na página da produtora MADRAGOA FILMES.
[2] A crise de 1987 iniciou-se em 9 de Outubro (Black Monday), data em que as cotações das principais bolsas mundiais caíram de forma abrupta (o Dow Jones Industrial Average caiu 22,6% nesse dia); a explicações para o fenómeno ainda hoje continuam a ser discutidas, mas entre as principais avultam a ideia de uma sobrevalorização dos activos e a interligação dos mercados em resultado das melhorias nos sistemas informáticos e de comunicações.
[3] Resultou do rebentamento de uma bolha especulativa em torno de empresas ligadas à Investigação e Tecnologia (I&T), conhecendo o seu apogeu em Março de 2000, e deve o seu nome ao facto das empresas mais afectadas terem sido as ligadas à Internet e às novas tecnologias que integravam o mercado do NASDAQ (National Association of Securities Dealers Automated Quotations).
[4] Ambos galardoados com o Nobel de Economia – Stiglitz em 2001 e Krugman em 2008.
[5] Sobre esta questão ver os “posts”: «CATA-VENTO GREENSPAN e »«AS DICAS DO MAESTRO».

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

O PAI NATAL DO NOSSO DIA A DIA

Atravessamos uma quadra onde ganhou foros de destaque a bonomia de uma figura como a do Pai Natal, cujas origens parecem remontar à figura de Nicolau Taumaturgo que no século IV foi arcebispo de Mira (localidade da Ásia Menor que hoje integra a moderna Turquia); a atribuição de muitos milagres e a fama de benemérito valeu-lhe a canonização, um arreigado culto nas Igrejas Católica e Ortodoxa e a qualidade de santo patrono na Rússia, Grécia e Noruega.

Na realidade terá sido dos EUA que se difundiram muitos dos mitos actuais sobre o Pai Natal e um dos seus percursores terá sido Clement Clark Moore, clérigo protestante que foi membro da direcção do New York Institute for Special Education e que escreveu em 1822 o poema “A Visit from Saint Nicholas”, no qual estabeleceu alguns dos padrões ainda hoje associados aquela figura. Outra importante contribuição terá sido a do desenhador e caricaturista Thomas Nast[1], que no mesmo século criou o actual visual do Pai Natal para uma edição especial da revista Harper’s Weekly[2].

Mantendo viva a tradição (e homenageando o trabalho de Nast), também os actuais caricaturistas recorrem à figura do Pai Natal para retratar e criticar a sociedade em que vivemos e nem com a euforia de compras e presente, esqueceram o clima de depressão que tanto se faz sentir; assim, à falta de uma história de Natal proponho-vos uma rápida visita por uma galeria de imagens que revelam bem a forma como alguns caricaturistas ligaram a realidade com a quimera natalícia.

Desde o canadiano Cameron Cardow, que optou por nos revelar um Pai Natal que procura manter a tradição de satisfazer os desejos infantis mas atravessa tempos difíceis pelo que o seu desabafo e magreza são disso imagem bem evidente...

ou o australiano Paul Zanetti que, invertendo a norma habitual, na qual o Pai Natal recebe e pondera os pedidos dos mais pequenos, coloca o pai a formular os pedidos de Natal para espanto do simpático velhinho e desespero dos mais jovens.

Os americanos Nate Beeler e Brian Fairrington, talvez ainda mais influenciados pelo clima depressivo do seu país, não hesitaram em colocar a simpática figura do Pai Natal em confronto com as duras realidades da sua economia. Assim, Nate Beeler não perdeu o ensejo de levar o Pai Natal a confrontar-se com as restrições ao crédito…

enquanto o pragmático Brian Fairrington nos revela um prosaico Pai Natal reconvertido à realidade de “cobrador do fraque”, actividade em que é diligentemente secundado pelos não menos feéricos gnomos.

E assim andou o Mundo em 2008…
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[1] Thomas Nast, nascido na Alemanha em 1840 (faleceu em 1902) ficou famoso pelo seu trabalho como desenhador e caricaturista, sendo considerado como um dos pais da caricatura política americana. Além de criador da moderna imagem do Pai Natal, foi ainda responsável pela popularização das imagens do elefante e do burro como símbolos dos partidos Republicano e Democrático, além de um activo crítico da política norte-americana do seu tempo, nomeadamente contra a corrupta administração de New York.
[2] O Harper's Weekly (A Journal of Civilization) foi uma revista de temas políticos publicada em New York entre 1857 e 1916, que além de notícias nacionais e estrangeiras incluía ensaios, ficção e humor. O seu período áureo coincidiu com o da publicação dos “cartoons” de sátira política de Thomas Nast.

domingo, 21 de dezembro de 2008

O QUE FAZER...

A conclusão mais ou menos abrupta do “post” anterior foi intencional, para criar espaço (e tempo) para uma análise mais detalhada das propostas possíveis de contribuir para a minimização dos efeitos e para o desenvolvimento de alternativas para a crise em curso.

Quem acompanhe minimamente as realidades económicas e sociais dos principais palcos da crise – EUA, Europa, Japão e BRIC
[1] - e as estratégias desenvolvidas pelos diferentes governos para gerirem a actual conjuntura, aperceber-se-á que em boa medida estas não diferem grandemente. Mesmo no caso europeu, em que se tem revelado particularmente difícil a concertação de uma estratégia comum e os estados-membros têm oscilado entre um maior ou menor intervencionismo público, verificam-se importantes pontos de contacto, nomeadamente o facto de todos os governos terem eleito como tarefa prioritária o financiamento e a recapitalização dos bancos, esperando por esta via que os meios financeiros (liquidez) injectados no sistema bancário acabem por alcançar os restante sectores e agregados económicos.

Esta visão, particularmente grata às correntes monetaristas e neoliberais, tem vindo a ser objecto de críticas cada vez mais abertas e objectivas dos grupos neokeynesianos e outros pensadores menos alinhados.

Entre os principais críticos conta-se o economista Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia pelo seu trabalho de análise dos padrões de comércio internacional, que num recente artigo publicado na NEW YORK REVIEW OF BOOKS sintetiza aqueles que entende serem os principais passos a seguir no combate à crise[2] e que em poucas palavras se poderá sintetizar por: investimento público, mais investimento público.

Contrariando aquela que é ainda a tese dominante entre as dogmáticas elites intelectuais e políticas mundiais, Krugman não enjeita sequer o uso do seguinte aviso: «Nada seria pior do que não fazer o necessário com medo de que agir para salvar o sistema financeiro seja "socialista"», talvez para acentuar o que ele próprio define como primeiro passo; a opção por incentivar a circulação do crédito e estimular o consumo.

Dentro da mesma linha de pensamento neokeynesiano encontra-se ainda o também galardoado Joseph Stiglitz que num entrevista ao jornal suíço LE TEMPS[3] defendeu, dentro da mais pura linha keynesiana, o recurso ao endividamento público como via para o relançamento das economias.

O problema é que quer um quer o outro referem de forma demasiado superficial a dimensão e as características dessa intervenção pública, não ultrapassando meras referências a obras públicas.
Ora se recordarmos o período de ouro da aplicação das teorias de John Maynard Keynes, o New Deal norte-americano, que foi implementado pelo presidente Franklin Roosevelt como via para a dinamização do tecido económico e para a ultrapassagem da Grande Depressão, foi muito mais que simples obras públicas; foi também uma visão diferente da finalidade e do uso das fontes de crédito.

Aqui é onde começam as minhas divergências relativamente aos modernos neokeynesianos; é que contrariamente a estes não me parece de hesitar na explicação da necessidade da reformulação do papel dos Estados nas economias, tanto mais que a falência do dogma neoliberal do “menos Estado, melhor Estado” está por demais demonstrada.

O investimento público pode, e deve, ir além das chamadas obras públicas e investir em tudo o que possa contribuir para a melhoria das condições de vida das populações – o ensino, a formação, a saúde, os transportes, a produção de energia, as comunicações e a segurança – será positivo no aumento do rendimento das famílias e, por via deste, no consumo. A dimensão da crise, cuja profundidade ninguém pode hoje assegurar qual seja, e as ondas de choque que já está a provocar na economia real justificam cada vez mais a necessidade da intervenção de um agente regulador que procure minimizar os efeitos recessivos que já se fazem sentir.

Olhando para a realidade nacional e confrontados com o fracasso que está a ser a ausência de uma estratégia europeia concertada, importa, mais do que nunca, deixar bem claro que se o objectivo é, como anunciam os nossos governantes, o relançamento da actividade económica nacional, as decisões até agora tomadas de apoio ao sector bancário são de reduzida ou nula eficácia; como se assiste em geral, persistem a falta de liquidez nos mercados financeiros, escassez que já está a afectar os restantes sectores económicos. Tentativas como a criação de linhas especiais de crédito para apoio à indústria e comércio esbarram em duas importantes limitações: a situação da banca e o sobreendividamento das próprias empresas.

Assim, o que resta são as opções de investimento público, mas estas não podem continuar a ser a injecção de fundos públicos na banca (pelo menos sem a respectiva contrapartida da nacionalização daquelas empresas) ou as grandes obras de regime, antes aquelas que ao nível local tenham maior impacto no tecido económico e social. É que esta pode ser uma excelente oportunidade para o lançamento de projectos de dimensão social (apoio à infância e à terceira idade, dinamização de programas de ocupação de tempos livres para jovens e idosos, programas de apoio doméstico para idosos, etc.), de projectos orientados para a recuperação urbana (agora que a construção civil vê reduzida a procura de novas habitações) e para a criação e manutenção de espaços naturais.

É certo que para a sua realização haverá que recorrer a algum acréscimo do endividamento público (dando razão aos que criticam a opção por se revelar penalizadora para as gerações futuras), mas este efeito poderá ser amplamente mitigado pela melhoria da gestão e afectação actual dos recursos disponíveis e pelos efeitos positivos que terá sobre o aumento da procura interna.
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[1] Designação habitual das principais economias emergentes: Brasil, Rússia, Índia e China.
[2] O texto foi igualmente publicado no Caderno P2 do PUBLICO do passado dia 17 de Dezembro.
[3] Há falta da fonte original (os artigos em arquivo são reservados a assinantes) recomendo a leitura da entrevista, disponível na página do COURRIER INTERNATIONAL.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

ESTARÃO OS BANCOS CENTRAIS A DAR DINHEIRO…

Para o melhor e para o pior a crise económica, e em especial o colapso do sistema financeiro internacional, continuam a marcar o dia-a-dia da imprensa nacional e estrangeira.

Depois do triste contributo do Prof. César das Neves (que foi objecto de análise e crítica no “post” anterior) e confirmando a reduzida aderência à realidade da aconselhada prática da calma e confiança, o próprio FED baixou as taxas do dólar para padrões inusitados[1]. Não só o corte anunciado foi de 75pb, quando o mercado não esperava mais que 50pb, como este resultou na fixação não de uma taxa mas de um intervalo entre 0% e 0,25%.

É verdade, leram bem, o banco central norte-americano admite financiar os bancos a preço 0 (zero). De pronto, a esperada tranquilização nos mercados se transformou em quedas do dólar (o mercado já teria descontado a descida de 50pb mas não a de 75pb) e dos restantes activos financeiros.

Para quem ainda duvidasse que para os banqueiros o custo real do dinheiro é nulo[2] (oficialmente a taxa de inflação nos EUA ronda o 1%, embora outros analistas a estimem nos 4%[3]) eis que o FED veio eliminar qualquer dúvida remanescente e na ânsia de reanimar uma economia anémica decidiu reduzir a sua taxa ao mínimo possível.

Tudo isto e a constatação que a decisão do FED constitui uma estratégia extrema no combate à recessão económica, terá levado o DIÁRIO ECONÓMICO a denominar aquela opção como uma “bomba atómica” e a chamar a atenção para duas realidades: o FED esgotou as suas possibilidades de intervenção (salvo o começar a assegurar o financiamento directo à economia) e que poderá significar o anúncio oficial do início de um período de deflação[4] nas economias ocidentais.

Mas o que ultimamente parece marcar a agenda das notícias económicas nacionais é o facto de sofrerem as PME nacionais com as piores condições de crédito, a ponto de já se ter lido que Sócrates pede aos bancos que emprestem mais dinheiro às empresas, do ministro Teixeira dos Santos já ter declarado que ”É preciso pressionar os bancos para que façam chegar o dinheiro às empresas”, chegando mesmo ao ponto de se ler que aquele Ministro das Finanças admite retirar garantias se banca não fizer chegar o crédito às empresas.

Neste contexto não é de espantar que a reacção tenha sido a de que uma Banca perplexa rejeita pressão do Governo, pois não só as beatíficas afirmações dos nossos governantes não passam de meros discursos populistas, como eles sabem (ou pelos menos os banqueiros já lhes explicaram) que existe uma abissal diferença entre dispor de liquidez (dinheiro) e emprestá-la. Esta é uma realidade universal, tanto mais que, conforme noticia o JORNAL DE NEGÓCIOS, o congelamento dos mercados de crédito fez disparar os depósitos dos bancos no BCE, com as instituições financeiras a preferirem a segurança do banco central da Zona Euro, facto perfeitamente em consonância com o clima geral de desconfiança que se vive no sector financeiro.

Mantendo integralmente o que escrevi no “post” «AS CRISES E A CRÍTICA», repito que os financiamentos obtidos pelos bancos nacionais graças ao aval do Estado não se destinam a contribuir para o estímulo da economia mas sim para consolidar os balanços dos bancos e limpá-los dos activos desvalorizados e José Sócrates e Teixeira dos Santos sabem-no desde a primeira hora, pelo que clamar agora pela intervenção dos bancos através das respectivas políticas de crédito é ingénuo, além de impraticável.

Salvo na CGD, banco de capitais públicos, o governo de José Sócrates não dispõe da mínima possibilidade de influenciar uma flexibilização dos critérios que cada banco usa para decidir a concessão de crédito. Mais, mesmo naquela instituição pública essa possibilidade chocará sempre com aquela que é a realidade da esmagadora maioria das PME e microempresas nacionais – a sua reduzida solvabilidade e insuficiência de capitais próprios - situação que as torna inadequadas para a obtenção de financiamento.

Agora, em época de crise, como antes em período mais fausto, o grande problema do tecido empresarial nacional não é o da reduzida dimensão do mercado interno ou das dificuldades no acesso aos mercados de exportação; não é o dos custos com o pessoal ou o dos elevados encargos sociais, mas sim o facto da grande maioria daquelas empresas não dispor de um volume de capitais próprios adequado.

Habituados a uma existência suportada em capitais alheios (cujos elevados custos vão repercutindo sobre os clientes) agora que estes se revelam menos disponíveis e mais caros os empresários clamam contra a injustiça de que se julgam alvos. Não fora a opção dos governos pela nacionalização, ou pela elaboração de planos de apoio às instituições financeiras, e aquelas reclamações não teriam a mínima justificação.

Aberto o precedente mundial com o sector financeiro, é natural que qualquer outro empresário (grande ou pequeno) se julgue no direito de beneficiar de idêntico tratamento. Afinal, também eles gerem empresas descapitalizadas e com acrescidos problemas de liquidez.

Tudo isto apenas vem reforçar a ideia de que a solução para a resolução da actual crise dificilmente será encontrada dentro da actual lógica do sistema capitalista de mercado e pior dentro da escola de pensamento vigente que centrando todas as atenções na superestrutura financeira global é absolutamente incapaz de perceber as necessidades dos restantes sectores económicos e ainda menos de gizar estratégias adequadas.

Sabendo-se que as crises que ocorreram no pós-guerra se desenvolveram principalmente na esfera financeira e que os efeitos que chegaram à economia real não foram tão acentuados quanto os que ocorreram na Grande Crise de 1929 ou como os que agora nos ameaçam, é de espantar que as soluções até agora preconizadas pelas altas instâncias pouco difiram das que contribuindo para ultrapassar aquelas pequenas crises, mais ou menos conjunturais, se estão a revelar insuficientes para mitigar a actual; quando as taxas de juro dos grandes bancos centrais forem todas nulas e quase tudo continuar na mesma, qual vai ser o passo seguinte?

Serão os governos suficientemente fortes, do ponto de vista político e social, para substituírem os bancos comerciais na emissão de moeda?

E se tal eventualidade ocorrer, qual será a melhor estratégia para fazer chegar a tão desejada liquidez ao circuito económico? Será financiando as empresas, ou aumentando as disponibilidades das famílias?

É que a resposta a estas questões não é de todo displicente, pois será delas que depende o nosso futuro e, quiçá, a duração da crise. Assim, se a opção fosse pela injecção de fundos na economia através do aumento do rendimento (e do consumo) das famílias o efeito de dispersão seria seguramente mais rápido que idêntica afectação de fundos às empresas, na medida em que estas iriam começar como equilibrar as suas próprias contas (há semelhança do que está a fazer o sector financeiro) antes de o fazer repercutir na produção e no rendimento dos seus trabalhadores.
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[1] Desde 1954 que a taxa directora do FED não descia a este nível.
[2] Se no caso norte-americano a taxa do FED era igual à da inflação oficial, no caso europeu quando o EUROSTAT anuncia uma taxa de inflação de 2,1% (ver a informação de 17 de Dezembro) e a taxa do BCE se situa nos 2,5%, pode-se falar em custo quase nulo.
[3] Sobre esta questão ver a página Shadow Government Statistics.
[4] A deflação define-se como uma redução do nível geral de preços, podendo caracterizar-se como um crescimento negativo dos preços médios.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

AS CRISES E A CRÍTICA

No próprio dia em que o DIÁRIO ECONÓMICO informou que o BANCO DE PORTUGAL ACUSA NOVE EX-GESTORES DO BCP, eis que o Prof. César das Neves saiu a público, na sua crónica semanal no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, criticando os que têm condenado a actuação do governo de José Sócrates na gestão da crise financeira. Para o insigne professor este não é momento adequado senão para promover a calma e a confiança.

Seguindo estritamente a velha receita de “cuidados e caldos de galinha”, o que todos deveríamos fazer no momento em que o sistema financeiro mundial colapsa devido à falência das mais teses monetaristas e neoliberais, seria manter mansamente a total confiança num sistema que comprovadamente se está a revelar incapaz senão de servir os interesses dos grandes investidores.

Mas curiosamente o que César das Neves propõe nem o seu discípulo Cavaco Silva cumpriu quando, durante a crise de 1987 e em pleno desempenho das funções de primeiro-ministro, declarou que (e cito de memória): “há na bolsa gato por lebre”! Porque é que figura tão pouca dada a especulações e a grandes alardes críticos lançou semelhante aviso num momento, mais do que no actual porque a crise de então era quase exclusivamente financeira, em que o mais importante também seria manter a confiança dos investidores?

Será que no fundo até o actual Presidente da República tinha uma perfeita noção do quão arriscados se tinham tornado os mercados financeiros, ou foi um mero deslize?

É que no momento actual não basta, como propõe o articulista, apreciar as críticas nas duas vertentes em que este o faz – a da utilização de fundos públicos e a do funcionamento da justiça – pois o que verdadeiramente está em causa (e ele sabendo-o bem e omitindo-o revela uma fraca integridade intelectual) é a apreciação crítica do modelo de funcionamento do sistema financeiro mundial.

Poderemos discutir até à exaustão se a melhor opção política será a de, em nome da credibilidade e da confiança, “salvar” toda e qualquer instituição financeira, ou pelo contrário deixar funcionar as leis do mercado e esperar que as instituições financeiramente mais saudáveis absorvam as mais débeis. Poderemos até deixar passar em claro a enorme contradição intelectual que consiste em ver os grandes defensores da livre iniciativa, do primado do mercado e da “mão invisível” transformados nos grandes defensores da intervenção dos Estados na banca (aqueles mesmos Estados que ainda há bem pouco tempo eram a origem de todos os males e a fonte de todas as ineficiências económicas), agora não podemos é calar que este é o momento oportuno para introduzir necessárias e significativas alterações num sistema financeiro que, prova-o a realidade, está a mergulhar o conjunto das economias numa recessão de dimensão ainda difícil de estimar.

E como não fazê-lo quando até nas esferas académicas (veja-se este artigo de Raymond Plant, professor do King’s College de Londres, publicado no mesmo dia pelo DIÁRIO ECONÓMICO) não falta quem contradiga a posição conservadoramente cautelosa de César das Neves? Mais, como é que aquele pretende, em complemento, convencer-nos com teses como a de que a “intervenção” no BPP não se destina a «...apoiar as fortunas e investidores, mas depositantes e fornecedores»? Terá esquecido que os ditos depositantes do BPP celebraram com o banco um contrato de gestão de património e não a constituição de um simples depósito e que o que terá movido o sindicato bancário a intervir foi a necessidade de salvaguardar o risco das suas próprias aplicações (para mais com a adequada protecção do “chapéu de chuva” governamental)?

É que a candura com que pretende convencer-nos da bonomia da intervenção pública, sustentando que «[d]ado que a crise paralisou o crédito e secou a liquidez, a acção das autoridades actua precisamente nesses meios, reactivando os mercados» baseia-se em premissas falsas; o que paralisou o crédito foi o excesso de risco em que incorreram os principais intervenientes naquele mercado e o que originou a falta de liquidez é a extrema opacidade das carteiras dos bancos, situação que conduziu a que os que disponham de maior liquidez a retenham, pelo duplo receio do risco dos parceiros e de poderem vir a necessitar da que cederem.

Confirmando tudo isto vejam-se as declarações do ministro das finanças, Teixeira dos Santos, que quando diz que “é preciso pressionar os bancos para que façam chegar o dinheiro às empresas” mais não faz que confirmar a ineficácia das medidas que os dois defendem e que, contrariamente ao que afirmou César das Neves, os financiamentos obtidos pelos bancos nacionais graças ao aval do Estado não se destinam a contribuir para o estímulo da economia mas sim para consolidar os balanços dos bancos e limpá-los dos activos desvalorizados que neles constam.

Por tudo isto é que, mais que nunca, este é o momento para pensar e agir no sentido da elaboração de um novo sistema financeiro mundial que retire aos banqueiros o poder de asfixia sobre toda a economia.

domingo, 14 de dezembro de 2008

MAIS PLANOS DE RECUPERAÇÃO

O resultado da última cimeira de europeia, que o PUBLICO anunciou dizendo que Líderes da UE de acordo sobre plano de relançamento de 200 mil milhões de euros, bem como a notícia difundida pela TSF que o Governo anuncia pacote de medidas de apoio ao investimento público e emprego, talvez possam constituir sinais muito positivos sobre a preocupação dos que nos governam quanto à necessidade de não abdicar da luta pela normalização das economias, porém uma leitura um pouco mais atenta daquelas notícias (e de outras) será suficiente para entendermos que a situação encontrar-se-á muito longe de controlada e ainda mais de contrariada.

A última reunião de Bruxelas não poderá ser considerada um grande sucesso – salvo as doutas opiniões dos participantes e do presidente da Comissão, Durão Barroso – não só no plano económico, onde tudo se resumiu à aprovação do plano que a Comissão apresentara quinze dias antes, como no político, onde a nota dominante foi o apoio ao governo irlandês para a realização de um segundo referendo para aprovação do Tratado de Lisboa (quantos mais poderão ser ainda necessários continua a ser uma incógnita, salvo se a crise económica funcionar como elemento decisivo para a aprovação de um tratado desenhado segundo as regras dos mais elementares princípios neoliberais que terão estado na origem da actual crise, o que a ocorrer será uma enorme contradição) e a reafirmação das metas ambientais[1].

Quando dias atrás critiquei a exiguidade do montante previsto pelo presidente da Comissão Europeia (apenas 200 mil milhões de euros) e o ridículo que constituía a participação do Orçamento Comunitário (escassos 30 mil milhões), no “post” a CARTEIRA DO DURÃO BARROSO, já tudo deixava antever que a proposta europeia pouco ou nada diferiria da americana (o famoso Plano Paulson[2]) onde a grande solução é a aposta na normalização do sistema financeiro e o incremento do recurso ao endividamento das empresas como via para o relançamento das economias.

Não fora o pequeno busílis de ter sido precisamente o colapso de um sistema financeiro apenas preocupado pelo perpétuo “mantra” do aumento dos lucros a originar a escassez de crédito e a ditar a redução do consumo das famílias e a consequente redução da procura que determinou as actuais dificuldades da indústria e do comércio e talvez os incentivos anunciados em Bruxelas e de pronto reproduzidos de São Bento pudessem vir a desempenhar algum papel na resolução dos problemas.

Esta realidade é ainda mais preocupante no caso português, porquanto não só se apresenta numa situação de excessivo endividamento externo como a generalidade do tecido empresarial nacional já apresenta uma situação de recurso em excesso a capitais alheios (financiamento bancário), pelo que o sucesso da iniciativa se me afigura de muito duvidosa eficácia. As linhas de crédito, mesmo beneficiando de taxas de juro mais reduzidas, não irão resolver o problema estrutural da economia portuguesa – a escandalosa escassez de capitais próprios de que sofrem a generalidade das nossas empresas. Quanto muito poderão ser utilizadas pelas mais dinâmicas (ou dotadas de melhor gestão) para reduzir os encargos mediante substituição das linhas de crédito já contratadas.

É que se a existência de crédito para o adequado financiamento da actividade económica pode ser uma pedra angular de uma bem estruturada e equilibrada economia, já a proliferação de empresas (e em especial de microempresas) descapitalizadas, baseadas em modelos produtivos tecnologicamente ultrapassados e dependentes de salários baixos e de subsídios públicos, não poderá produzir efeito diferente daquele a que temos assistido nas últimas décadas – encerramento de fábricas, deslocalização da produção para países de mão-de-obra ainda mais barata e desemprego.

Ora esta crise só poderá ser eficazmente combatida com medidas e políticas que estimulem o emprego (para através mais e de melhores salários incentivar o acréscimo do consumo interno e da procura) e que apoiem os sectores de actividade que revelem capacidades de crescimento e de competitividade e as empresas (e os empresários) que efectivamente se enquadrem em processos de modernização e revelem métodos de gestão adequados aos actuais desafios.

Já ao investimento público directo deverão se feitas outras exigências, a primeira das quais deverá ser a do fim das faraónicas obras de regime tão do agrado dos nossos políticos. Um novo aeroporto internacional ou uma bonita ligação Lisboa-Porto em TGV poderão constituir atractivo apenas para os que almejam entrar para o livro da história pela porta fácil, mas quem quiser vir a ficar associado a uma correcta política de superação da crise deverá apontar antes para obras de menor dimensão mas de efectiva eficácia, como sejam a requalificação da rede ferroviária nacional, a requalificação dos tão degradados centos urbanos das nossas localidades ou até a recuperação da rede nacional de estradas que a febre das auto-estradas iniciada durante os governos de Cavaco Silva ditou ao abandono.

A aposta que o governo de José Sócrates pretende fazer na aplicação de mais estes 2 mil milhões de euros agora anunciados na educação, mediante a recuperação de escolas públicas, e em projectos ligados à energia e à inovação, poderá ter sido ditada pela melhor das intenções, mas experiências anteriores não auguram nada de bom. Além de se correr algum risco investindo na recuperação de escolas que um dos próximos ministros da educação se apressará a encerrar (o que sinceramente espero que não ocorra, porque a iniciativa de recuperação do parque escolar é em si meritória), a ainda recente experiência desastrosa com a delapidação de fundos comunitários aconselha, no mínimo, a encarar estas medidas com as maiores reservas.

Mesmo sem negar a utilidade e a necessidade de investimentos nas áreas energéticas, área na qual Portugal dispõe de inegáveis vantagens competitivas na exploração de energias como a solar e a das marés, teria ficado muito mais tranquilo se Bruxelas e o nosso governo não tivessem anunciado apenas mais um pacote para os pacóvios aplaudirem e tivesse revelado um verdadeiro empenho no desenho de medidas práticas para contrariar a crise, começando pela significativa alteração das regras de funcionamento do sistema financeiro.

É que sem isso continuamos a correr o risco de voltar a ver “engolidos” na voragem especulativa os fundos que deveriam servir para o relançamento das economias europeias e da melhoria qualidade de vida dos cidadãos.
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[1] Neste capítulo destaque-se o programa do Objectivo 20/20/20, a saber: redução até 2020 de 20% na emissão de gases com efeito de estufa, aumento de 20% no uso de energias renováveis e redução de 20% no consume de energia mediante aumento da eficiência energética.
[2] Também conhecido na terminologia anglo-saxónica por TARP (Troubled Asset Relief Program).

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

AMADO REVELA QUE PORTUGAL ESTÁ DISPONÍVEL PARA RECEBER PRESOS DE GUANTÁNAMO

Esta notícia do PUBLICO veio esclarecer algumas das questões que nos últimos meses têm atravessado a mente dos mais preocupados dos nossos munícipes.

Afinal, os nossos governantes (locais e nacionais) revelaram uma particular capacidade de antevisão quando se propuseram construir uma nova prisão no concelho de Almeirim. Esta não irá apenas resolver o sempre delicado problema da instalação da população prisional nacional; com uma rara capacidade de previsão (quiçá conhecedores de pormenores que de todo em todo não poderiam chegar ao domínio público) os responsáveis nacionais e locais pela condução dos nossos destinos agiram pró-activamente e poderemos até começar a importar os presos de outros países.

As declarações do ministro dos negócios estrangeiros explicam agora a dimensão global do projecto do Estabelecimento Prisional a implantar na Herdade dos Gagos e o secretismo que rodeou a negociação entre o executivo autárquico e o governo central; agora ninguém ousará mais questionar a opção ou sequer o arrojo de avaliar os ínfimos prejuízos com o abate de alguns sobreiros (dúzias, centenas ou milhares que sejam) quando comparados com a relevância mundial daqueles que virão a ser os seus utilizadores.

Esta inteligentíssima medida não só poderá contribuir para resolver o delicado problema que constitui o facto de ninguém querer ter os presos à porta de casa, como ainda se poderá revelar de extrema utilidade na delicada tarefa de equilíbrio da balança de pagamentos nacional.

E não pensem que o que moveu os nossos governantes (locais e nacionais) foram apenas vis interesses materiais, porque desta forma até a aparente inoperância da justiça portuguesa deixará de constituir problema, pois se não conseguimos condenar os nossos criminosos sempre conseguiremos prender os criminosos dos outros... mas, esperem lá, os prisioneiros de Guantánamo foram julgados e condenados por quem?

Ditosa Pátria e Município que tais dirigentes tem...

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

EXARCHIA, A REVOLTA DOS JOVENS

As notícias originadas na Grécia trouxeram para as páginas dos jornais memórias da agitação que varreu os arredores de Paris há pouco mais de um ano, tanto mais que aparentemente até o rastilho terá sido idêntico – a morte dum jovem em consequência de acção policial.

Aos primeiros protestos rapidamente se sucederam outras reacções mais violentas e destas à generalização dos confrontos com a polícia e às acções de pura vandalização de carros e imóveis nos principais centros urbanos do país foi um passo. Quase tudo poderia ser idêntico ao que sucedeu em França – a frustações de uma juventude grega (como a da generalidade dos outros países) desempregada e com reduzida formação – não fora a coincidência dos tumultos terem começado no mesmo bairro de Exarchia[1] que em 1973, com o mesmo tipo de acções, despoletou o fim da ditadura naquele país.

Não bastando este paralelismo, a Grécia sente os efeitos de uma crise económica (a mesma que nos atinge a todos) e os de um governo demasiado fragilizado por sucessivos casos de corrupção (nada de especialmente inédito para nós) e ao qual a oposição recusou qualquer tipo de solidariedade.

O local donde irradiou a agitação é uma espécie de “Quartier Latin” de Atenas, facto que poderá explicar a rápida propagação da contestação de uma juventude desiludida pelo actual clima económico mundial e que acusa o governo conservador, liderado por Costas Karamanlis, pela ausência de políticas que enfrentem os efeitos da crise económica e de uso excessivo de força.
Às reivindicações das camadas mais jovens veio juntar-se a convocação de uma greve geral que está a paralisar o país e a aumentar grandemente a pressão sobre o governo.

Ao quarto de dia de confrontos entre os jovens e a polícia a própria envida especial do LE MONDE[2] confirma o crescente apoio da população a um movimento juvenil seguramente muito heterogéneo, mas não desprovido de lucidez[3] e de todo o desencanto daqueles que vêm muito pouco futuro no futuro... a ponto de não estabelecer grande diferença entre o partido conservador no governo (o liberal-conservador Nova Democracia) e a principal força da oposição, o PASOK (socialista).

Mais do que nos graves acontecimentos na Grécia, parece-me de meditar nas enormes semelhanças entre o que motivou a revolta da juventude grega e as condições e as perspectivas que em Portugal os governos do PS e do PSD têm oferecido aos mais jovens... e prepararmo-nos para a forte possibilidade de vermos tudo isto repetido, com os nossos filhos como actores centrais.
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[1] É o nome de um dos bairros de Atenas no qual se situam algumas das suas mais importantes escolas (o que lhe dá um carácter predominantemente estudantil) e o abrigo de muitos movimentos anarquistas. As suas origens remontam aos finais do século XIX e o facto de nele se ter originado, em 1973, o movimento de contestação que culminou com a abolição da ditadura militar em 1974, granjeou-lhe um estatuto especial na vida social e política grega, tornando-o local de eleição para artistas e intelectuais.
[2] Ver aqui a notícia na íntegra.
[3] A título de exemplo veja-se esta entrevista a um jovem que o jornal LE MATIN chamou Dimostenis.

domingo, 7 de dezembro de 2008

AINDA HÁ BONS EXEMPLOS

Enquanto continuam a surgir regularmente notícias sobre a situação das principais economias mundiais e estas se anunciam cada vez mais em situação de recessão crescem as hipóteses da crise, iniciada no Verão de 2007 com o rebentamento da bolha do imobiliário norte-americano e do crédito “subprime”, se espalhar a nível global.

É evidente que este conceito de difusão global da crise deverá sempre ser entendido com as devidas cautelas, na medida em que economias pouco desenvolvidas ou menos expostas aos efeitos do comércio internacional não deverão registar efeitos tão acentuados, nem tão graves, quanto as restantes. É devido a estes vários graus de interligação das economias que os especialistas observam atentamente todas as informações que chegam de economias como a da China, pois o seu abrandamento ou uma eventual entrada em recessão serão sinais mais que evidentes que a crise chegou para ficar durante algum tempo.

O papel da China na actual economia internacional e a sua importância enquanto motor de desenvolvimento, sendo um dos principais países produtores de bens de consumo, não carece de grande explicação e uma vez que a crise iniciada na esfera financeira está a alastrar para a chamada economia real, é cada vez mais observado com especial atenção, até porque este país devido aos excedentes monetários resultantes da sua superavitária balança de pagamentos é igualmente um dos grandes investidores (tomadores) de dívida pública norte-americana.

Mas, curiosamente chegaram notícias interessantes do Líbano – um pequeno país no Médio Oriente que não sendo produtor de petróleo, vivendo uma situação política conturbada e tendo sido recentemente alvo de uma guerra (a invasão israelita ocorrida no Verão de 2006) – apresenta um sistema financeiro com uma invejável saúde e vitalidade[1].

Quem o noticiou foi a insuspeita BBC (o artigo original pode ser lido aqui) através de uma peça da sua correspondente em Beirute que não hesita em iniciar o texto dizendo: «O Mundo pode estar em desagregação, mas Beirute floresce. O país mais conhecido pelas guerras, a agitação e a instabilidade não se limita a sobreviver à crise financeira global, parece estar a crescer graças a ela. Nas caves do Banco Central do Líbano os cofres encontram-se cheios. O dinheiro aflui como nunca, os bancos libaneses anunciam volumes de depósitos recordes e os banqueiros dizem que este é o melhor ano na história financeira do Líbano».

Será isto tanto mais espantoso quando um pouco por todo o lado banqueiros e industriais se queixam amargamente das dificuldades que atravessam, imploram o auxílio dos respectivos governos (os mesmos que ainda há poucos meses eram regularmente acusados de tentativas de interferência e acção nefasta sobre a livre iniciativa) e países (como é o caso do Islândia[2]) dotados de economias particularmente florescentes e bem inseridas nos delicados mecanismos do livre comércio internacional, de governos estáveis e isentos de agitações políticas e sociais, se confrontam com a necessidade de recurso ao auxílio de instituições como o FMI?

A resposta pode ser encontrada no corpo da própria notícia e fornecida em primeira-mão pelo governador do Banco Central, Riad Salameh[3], que garante que a origem do segredo reside no simples facto daquele organismo ter imposto regras conservadoras e severas aos bancos comerciais do país. Começando na imposição da constituição de um volume de reservas obrigatórias da ordem dos 30% dos recursos (isto é os bancos comerciais são obrigados a manter um volume de reservas superiores ao normalmente praticado no resto do mundo), interditando as aplicações em produtos financeiros especulativos ou de alto risco e obrigando os bancos mais frágeis a fundir-se com os mais fortes, quando a crise financeira estalou em Wall Street, Beirute estava preparada para acolher os fundos que nela procuraram refúgio.

Outro exemplo citado na notícia e que deveria ser de leitura obrigatória em todos os conselhos de administração dos bancos é a elevada margem de segurança exigida para a contratação de créditos e uma criteriosa avaliação das garantias associadas a cada operação. Um empresário imobiliário local é citado dizendo: «Isto pode não ser muito bom para os negócios, mas elimina a especulação e mantém os preços controlados».

Se estes critérios prudenciais fossem de utilização genérica no sistema financeiro mundial, em lugar das conhecidas práticas que privilegiam os lucros e dão cobertura às mais desenfreadas loucuras financeiras, mesmo que tivesse ocorrido a crise do “subprime” – algo muito duvidoso porque os clientes de maior risco teriam que dispor de um mínimo de 40% do valor das casas que quisessem comprar – nunca a banca no geral teria sido tão duramente atingida pelo descalabro de algum operador menos escrupuloso (ou mais ganancioso) e a escassez de liquidez que esta ditou não se teria disseminado pelo resto da economia com os efeitos que estamos a começar a conhecer.

Este exemplo, mais que demonstrar a justeza das posições dos que defendem a necessidade de um novo modelo de orientação para o sector financeiro mundial, revela à saciedade que os erros que foram cometidos por “génios” como Alan Greenspan e outros, não só podiam ter sido evitados como essa opção por um sistema financeiro menos orientado para a especulação e o lucro desmedido não teria tido nenhum efeito catastrófico na economia dos respectivos países.
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[1] Nada de demasiado espantoso atendendo ao facto de antes da Guerra Civil Libanesa (1975-1990) o país ter atravessado um período de relativa calma e prosperidade, já então devido em boa parte à actividade bancária que levou a que o país fosse conhecido como a “Suíça do Médio Oriente”.
[2] Ver a propósito o “post” «O PARADIGMA ISLANDÊS».
[3] Riad Salameh, antigo aluno da Universidade Americana de Beirute e governador do Banco central há cerca de quinze anos, foi galardoado em 2006 com o prémio do Melhor Governador do Banco Central, atribuído pela revista Euromoney devido ao seu trabalho durante a crise originada pela invasão israelita nesse ano.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A ÚLTIMA DE BUSH?

De acordo com esta peça publicada pela ABC World News, o ainda presidente dos EUA afirmou que sairá da Casa Branca de cabeça erguida…

Mas a pérolas derramadas pelo personagem não se ficaram por aqui e assegurou que a coisa que mais lamenta durante os oito anos que ocupou a Casa Branca, foi ter acreditado na informação incorrecta dos serviços de informações sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque, para concluir dizendo que «acho que não estava preparado para a guerra».

Afirmação que não o impediu de formular o desejo de vir a ser recordado como o libertador do Iraque.

Embora se tenha confessado mal preparado para a guerra, o mesmo não parece pensar relativamente à crise que o seu país atravessa (e obriga todo o Mundo a atravessar), pois entende que o TARP (Troubled Assets Relief Program ou Plano Paulson) está a resultar e que o seu governo tomou os primeiros passos decisivos para levar a economia a recuperar de uma situação para a qual não contribuiu; concretamente afirmou: «Sabe que sou o presidente neste momento, mas penso que quando a história deste período for escrita, as pessoas aperceber-se-ão que muitas das decisões que foram tomadas em Wall Street tiveram lugar décadas atrás[1], antes de eu ter chegado à presidência «…» as pessoas dirão que esta administração se esforçou para criar uma regulação. Haverá muitas apreciações do porquê disso não ter acontecido. Desconfio que muita gente concluirá que se não ocorreu foi por razões políticas».

Enquanto a Primeira-dama aproveitou a sua oportunidade para dizer que acha que o país está agradecido à liderança do marido e que «acho que eles pensam que ele foi alguém que os salvaguardou durante oito anos «…» e ouço em todas as ocasiões pessoas agradecerem-me e pedirem-me para lhe agradecer», George W Bush afirmou, em jeito de conclusão, que na despedida dirá ao seu sucessor: «Se puder ajudar, avise-me!».

Mesmo sendo verdade que presunção e água benta cada um toma a quer, é difícil ler este arrazoado de vulgaridades, frases feitas e mentiras sem lamentar mais uma vez a existência de semelhante personagem. Ainda se ele fosse o único…
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[1] Estará George W Bush a referir-se ao Financial Services Modernization Act , acto legislativo promulgado ao tempo de Bill Clinton e que derrogando o Glass-Steagall Act, que interditava aos bancos o exercício simultâneo das actividades de banco de investimento, de banco comercial e a oferta de serviços de seguros, abriu caminho a uma ainda maior desregulamentação na actividade bancária? ou a frase é uma mera desculpa que por acaso pode ter aquela leitura?

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

PORQUE FIZERAM CHORAR A ÍNDIA?

Volvidos pouco dias após o ataque terrorista a Mumbai, a capital financeira da Índia, além do elevado número de baixas e das evidentes dificuldades encontradas pela polícia e exército indiano par pôr termo à acção, muitas continuam a ser as especulações em torno dos perpetradores e dos seus objectivos.

Enquanto as populações choram as baixas, os locais devastados e a tranquilidade seriamente abalada, a AFP reporta a demissão do ministro indiano do interior seguida da do conselheiro de segurança, nos bastidores prosseguem as pesquisas para encontrar os responsáveis; apesar de uma pronta reivindicação por parte de uma organização islâmica denominada Mujahedeen do Deccan, os especialistas internacionais atribuem pouca credibilidade à possibilidade desta organização desconhecida levar a cabo uma acção tão bem planeada[1], dividindo-se entre os que atribuem a responsabilidade ao Lashkar-e-Taiba[2] (Exército dos Justos) de origem paquistanesa e os que mais vagamente acusam a Al-Qaeda.

Mesmo considerando que este atentado em Mumbai apresenta algumas semelhanças com o 11 de Setembro (o hotel Taj Mahal Palace é sem dúvida um dos maiores símbolos do poder de Mumbai e um dos lugares mais emblemáticos da cidade), dificilmente a autoria deixará de pertencer a um grupo mais especificamente relacionado com o tradicional conflito indiano-paquistanês e a disputa por territórios como Caxemira, a menos que queiramos alargar os horizontes da realidade geopolítica da região.

Esta hipótese não pode de modo algum ser descartada num período em que se anunciam alterações na política americana para a região (o recém eleito presidente Obama parece apostado em diminuir a presença militar americana no Iraque e concentrar esforços no Afeganistão) e em que as relações entre os estados rivais da Índia e do Paquistão parecem registar acentuadas melhorias[3]. Assim, uma acção como a realizada em 2001 contra o Parlamento indiano e que quase levou a novo conflito aberto entre a Índia e o Paquistão poderá ser de extrema utilidade no momento em que se torna cada vez mais evidente o recrudescimento da actividade dos “talibans” no Afeganistão. Ao concentrar a atenção (e as disponibilidades humanas e materiais) num conflito com a arqui-rival Índia, o Paquistão seria forçado a abrandar, senão mesmo suspender, o esforço contra as organizações islâmicas radicais que utilizam o seu território como local de refúgio e de lançamento de acções no vizinho Afeganistão.

Rebuscado?

Talvez não, porque aquela região há largas décadas que tem sido cenário dos mais variados conflitos (regionais e fronteiriços) e a flutuabilidade de alianças entre grupos religiosos e étnicos é proverbial e, não o esqueçamos, todos integraram o Império Colonial Britânico que sempre deixou uma indelével marca da sua passagem – o acentuar das rivalidades locais.

Reduzido hoje a um poderio muito menor, não será de estranhar que um dos primeiros alertas para a degradação da situação político-militar no Afeganistão tenha chegado precisamente da velha Albion, quando neste artigo de um correspondente da BBC no Afeganistão é citado um brigadeiro do exército britânico que afirma a necessidade de o Ocidente se contentar com o que for possível realizar no Afeganistão, dificilmente se poderá esperar mais que uma saída honrosa do cenário de conflito, quando são cada vez mais evidentes os fracassos acumulados pelas potências ocidentais e o país se encontra cada vez mais mergulhado num caos organizado à justa medida e necessidades dos traficantes de opiáceos[4].

Como se não bastassem as críticas cada vez mais abertas ao governo de Hamid Karzai, obrigado, por via da fragilidade de umas forças ocupantes demasiado dependentes das operações aéreas e condenados a suportarem os efeitos negativos das constantes baixas que provocam entre a população civil, a negociar com os senhores da guerra locais e com os chefes dos clãs a sua própria sobrevivência política, as cada vez mais evidentes contradições de americanos e europeus, com os primeiros a insistirem na “aposta” do apoio paquistanês e os segundos que parecem nunca ter entendido a impraticabilidade de instalação de um governo democrático, segundo o modelo ocidental, os “talibans” e os seus apoiantes[5] parecem ter encontrado mais uma via para facilitar o seu regresso ao poder no Afeganistão e para incendiarem ainda mais a parte do Industão[6] com que fazem fronteira
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[1] Recorde-se que esta acção apresenta muito poucas das característica dos “clássicos” ataques terroristas suicidas, mais parecendo uma acção de comandos militares.
[2] O Lashkar-e-Taiba foi fundado na província afegã de Kunar e operará actualmente em Lahore, no Paquistão, e na província Indiana de Caxemira. Os seus membros já lançaram importantes ataques na Índia, de que é principal exemplo o assalto ao Parlamento Indiano e o seu objectivo declarado é o pôr termo à presença indiana em Caxemira; embora alguns dissidentes tenham também perpetrado ataques em Karachi, no Paquistão, é comummente aceite a estreita ligação entre este grupo e o ISI (ver o conteúdo do portal South Asia Terrorism), os serviços secretos paquistaneses, cuja proximidade de interesses com os grupos islâmicos mais radicais é sobejamente conhecida. Incluída no Index dos grupos terroristas mundiais, o Lashkar-e-Taiba poderá ter alterado a sua designação em 2002 para Jama’at-ud-Da’wah passando a apresentar-se como uma organização de auxílio humanitário, muito popular no Paquistão onde disponibiliza ajuda médica e educação entre as camadas mais pobres da população.
[3] O próprio governo paquistanês, que desde a primeira hora condenou o atentado e pediu à Índia que não tirasse conclusões precipitadas, já se prontificou a colaborar nas investigações, mesmo antes do apelo da secretária de estado Condoleezza Rice nesse sentido.
[4] As notícias sobre o aumento da produção e exportação de heroína a partir do Afeganistão deixaram há muito de constituir novidade e até já o NEW YORK TIMES se referiu em Outubro passado envolvimento de Ahmed Wali Karzai, irmão do presidente Hamid Karzai, no tráfico de heroína.
[5] Entre estes importa salientar não apenas os grupos islâmicos mais radicais, mas também sectores do exército paquistanês e do ISI (serviços secretos paquistaneses).
[6] Embora esta seja uma designação caída em desuso (a designação hoje corrente é sub continente indiano) e só usada em contextos históricos, parece-me bem mais adequada (até pela ligação histórica).