domingo, 27 de abril de 2008

DISCURSOS LEVA-OS O VENTO

Foi intencionalmente que esperei um par de dias antes de aqui comentar o discurso do Presidente da República na 34ª Sessão Comemorativa do 25 de Abril e fi-lo na dupla expectativa de “deixar assentar a poeira” das primeiras reacções e de esperar por algum comentário mais maduro, porque evidentemente comentários como o do Primeiro-ministro José Sócrates: «Eu só posso concordar com o senhor Presidente da República e manifestar minha adesão à vontade que o Presidente exprimiu de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para chamar mais a atenção dos jovens para a política. Mas é natural que os jovens tenham outras preocupações»[1] são tão inúteis e vazios como qualquer outra lapalissada[2].

Aliás generalidades e disparates sobre o tema do discurso presidencial (incluindo o próprio discurso) são matéria suficiente para muitas e longas dissertações.

Senão vejamos:

Disse o nosso presidente que «(n)ão é justo para aqueles que se bateram pela liberdade, tantas vezes arriscando a própria vida, que a geração responsável por manter viva a memória de Abril persista em esquecer que a revolução foi um projecto de futuro e que, por ter sido um projecto de futuro, deve continuar a ser um sonho inspirador e um ideal para as gerações vindouras». Frase bonita, promissora, muitos dos homens que estiveram envolvidos nos acontecimentos de Abril de 74 tê-la-ão apreciado, mas os que prezem a sua própria memória deverão lembrar-se que os primeiros revezes ao “projecto de futuro” ocorreram durante o período em que o próprio Cavaco Silva foi Primeiro-ministro.

O estudo[3] que diz ter encomendado à Universidade Católica e no qual baseou o essencial do seu discurso apresenta um conjunto de conclusões que parece ter surpreendido o Presidente da República e a generalidade da classe política nacional. Ora isto mesmo é apenas a prova do profundo alheamento em que vivem os dirigentes deste país; não são apenas os jovens portugueses que revelam uma inaceitável ignorância de factos históricos basilares, são também aqueles que revelam um total autismo da realidade social que pretendem dirigir.

Já no passado mês de Fevereiro, a propósito de um documento que a SEDES então publicou, me pronunciei aqui sobre o crescente afastamento entre políticos e eleitores que no fundo não é muito diferente da questão agora levantada por Cavaco Silva, porque se aquele foi abordado numa perspectiva económica – o crescente fosso entre os rendimentos dos mais ricos e os dos mais pobres – este de natureza cultural deriva directamente daquele.

Quem de boa fé pode esperar que a generalidade dos nossos jovens se preocupe com a aquisição de conhecimentos e competências quando as perspectivas de vida que os dirigentes nacionais lhes oferecem são reduzidas ou nulas? Quem pode negar que o clima de insatisfação profissional e laboral é inevitavelmente transmitido aos mais jovens e numa fase particularmente susceptível das suas vidas?

Quem acompanhe minimamente o ambiente que se vive nas nossas escolas (e para tal basta ter seguido o percurso escolar de um jovem nos últimos vinte anos) não pode afirmar-se espantado com fenómenos como o do alheamento, do desinteresse, da alienação cultural ou até do abandono escolar, porém os sucessivos governantes que temos conhecido agem como se de nada se tivessem apercebido e tudo corra como se vivêssemos no melhor dos mundos!

Se o Presidente da República pretende fazer-nos crer que sente que «…não temos conseguido mobilizar os jovens para um envolvimento mais activo e participante na vida política…» e que «…a população portuguesa tende a ser céptica em relação à eficácia da participação política tradicional, isto é, aquela que é feita através dos partidos…» como pode esperar que da anunciada intenção de «…promover em breve um encontro com representantes de organizações de juventude, tendo por objectivo colher a sua opinião sobre o distanciamento dos jovens em relação à política e sobre as medidas que possam contribuir para minorar ou inverter esta situação…» possa resultar algo diferente de “mais do mesmo”?

Para os mais cavaquistas que o próprio Cavaco recordo que foram durante os anos da sua passagem por S. Bento que se enraizaram os saudáveis” princípios do “politicamente correcto”, já para não falar da política de sobrevalorização do betão em detrimento da cultura e que data desse mesmo período de governos de nítida tendência tecnocrática a proliferação da cultura do oportunismo, do facilitismo e do sucesso instantâneo e a qualquer preço…

Se os anteriores governos de Mário Soares já tinham marcado a primeira vaga de reformismo político – período em que o mais importante deixou de ser o debate das ideias perfeitamente consignado no princípio de “arrumar o socialismo na gaveta” – foi com a ascensão da plêiade cavaquista que a importância do “parecer” se assumiu definitivamente sobre “o ser”e “o saber”.
A um Cavaco convicto sucedeu-se um Guterres, prenhe de hesitações mas forte no seu “oásis” até que pressentindo a derrocada optou pela desistência. Foi um período em que na ausência de uma crítica assumida ao modelo anterior se permitiu o seu desenvolvimento e enraizamento – foi a concretização do sonho da EXPO e o ainda mais anacrónico lançamento do grande desígnio nacional da organização de um Europeu de Futebol – enquanto éramos alegremente empurrados para o passo seguinte.

Ao titubeante e negocial Guterres seguiu-se um jovem Durão Barroso que prometeu mundos e fundos e fugiu em direcção à Comissão Europeia à primeira oportunidade. Como se não bastasse o inqualificável acto de subserviência em que se traduziu o seu papel de mordomo da Cimeira das Lages que prenunciou a invasão norte-americana do Iraque, ainda abandonou as funções deixando no seu lugar um substituto de enormíssimo peso político – o inqualificável Santana Lopes – e o acólito Paulo Portas.

Tudo isto aconteceu com o beneplácito do antecessor de Cavaco Silva na Presidência da República – Jorge Sampaio – que a tudo foi dando a indispensável cobertura legal, talvez na expectativa de assegurar para o seu partido (o PS) uma vitória nas eleições que toda a gente sabia que viriam a ser antecipadas e que, na linha do benjamim de Cavaco Silva, nos trouxeram José Sócrates, o benjamim de António Guterres.

Perante esta rápida resenha que expectativas poderemos alimentar para o nosso futuro? Será com o contributo dos “jotas”, formados em generalidades e banalidades, que ambicionam substituir no poder os seus actuais detentores que surgirão contributos válidos para invertermos a situação de cinzentismo político que é o que realmente revela o estudo da Universidade Católica?

Para mim, como para muitos outros, que não pertencem nem nunca pertenceram a qualquer associação de “jotas”, a resposta é particularmente simples – este discurso e as iniciativas de Cavaco Silva continuarão a ser apenas mais do mesmo…pelo menos enquanto aceitarmos pacificamente que aqueles que nos conduziram até aqui se arroguem o estatuto de salvadores da Pátria.

Isto dito, invade-me uma tristeza tão grande e um sentimento de incapacidade tal que nem a nota de esperança com que planeei acabar este post parece já fazer sentido. Mas, para os que forem mais optimistas que eu, aqui recordo uma parte da crónica semanal de Baptista-Bastos[4]:

«O FUTURO É HOJE

Trinta e quatro anos depois, continuo a viver no refúgio das minhas esperanças. É muito difícil separar-me dessa ideia de comunidade que foi a moral da resistência, e do conceito de que a História caminha no sentido da libertação do homem. Mas também aprendi a não me acomodar a essa espécie de vocação para o desencanto, reduto onde se lastimam homens e mulheres da minha geração e da seguinte. A festa acabou. Vivemos um instante em que protagonizámos um apólogo presumidamente dialogal, porque, na realidade, havia, e sempre houve, dois países, com compromissos inconciliáveis e linguagens opostas. A existência de classes não é uma falácia, embora queiram inculcar a sua ausência a fim de impedir que as julguemos.

A festa acabou. Não terminou, porém, a definição daquilo que possui a faculdade de reavivar o que pretendem fazer-nos esquecer: os sonhos, a teimosia da vontade, a obstinação da esperança. Chamam-lhe utopia, e condenam-na como fautor de destruição do outro e, portanto, de si próprio, em benefício de uma verdade suspeita. A cada um a sua idiossincrasia, as suas possibilidades, a sua área de agir. Pessoalmente, sou incapaz de viver sem palavras, sem livros, sem o ajustamento desses livros e dessas palavras a uma ética que respeite o leitor, para nunca me extraviar do princípio das convicções mútuas
___________
[1] Citado nesta notícia do PUBLICO.
[2] Termo de origem francesa, criado a partir de um verso da Canção "La Mort de la Palice" dedicada a Jacques de la Palice e que retrata uma frase que contém uma repetição que já poderia ser deduzida sem qualquer ambiguidade a partir de uma afirmação contida na primeira parte da frase. (adaptado de Wikipédia).
[3] O ESTUDO SOBRE AS ATITUDES E COMPORTAMENTOS POLÍTICOS DOS JOVENS EM PORTUGAL, pode ser encontrado neste endereço.
[4] A crónica de Baptista-Bastos pode ser lida na íntegra aqui.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

ABRIL DE SIM ABRIL DE NÃO


Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.

Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.




Manuel Alegre, de 30 Anos de Poesia; Publicações Dom Quixote

quarta-feira, 23 de abril de 2008

PIRATAS A BORDO

A multiplicação das notícias que referem a ocorrência de actos de pirataria em águas da zona do Corno de África, trouxe-me à memória a antevisão que Jacques Attali publicou em 2006.

Na obra que intitulou «BREVE HISTÓRIA DO FUTURO» aquele antigo guru de François Mitterrand e hoje conselheiro de Nicolas Sarkozy, insere numa das formas que antevê – o hiperconflito – o ressurgimento do fenómeno da pirataria no qual engloba muitas das actuais práticas criminosas (tráfico de droga, mulheres, armas e jogos) situadas num plano superior ao actualmente conhecido perpetradas pelo que designa como Estados-piratas ou não-Estados.

Refiro aqui esta antevisão de Attali mais pelo avolumar das notícias que por uma crescente semelhança com o modelo antevisto que o autor faz preceder de uma outra fase – o hiperimpério – que esse sim, se poderá assemelhar ao período que estamos a iniciar.

Inegável é que nas últimas semanas se registaram quatro ataques a embarcações que navegavam próximo das costas da Somália e que este constitui sem qualquer sombra de dúvida um não-Estado (para usar a definição de Attali) ou um Estado falhado, como é comummente designado entre a comunidade ocidental.

Além do caso que envolveu o sequestro da tripulação do veleiro francês «Ponant», resolvida com uma acção militar francesa da qual resultou a captura de alguns dos piratas, ocorreram mais três casos nos dois últimos dias. O que envolve o pesqueiro espanhol «Playa de Bakio» sequestrado quando pescava em águas somalis e dois petroleiros, que não tendo sido apresados sofreram estragos consideráveis.

A zona onde ocorreram estes casos, as águas próximas do Corno de África, é considerada como uma das mais perigosas na actualidade; só na Somália, onde o problema se agrava pela debilidade do Estado e das forças de segurança locais, em 2007 foram sequestrados 11 navios, com 154 reféns.

No ano passado, os actos de pirataria aumentaram 10% no mundo depois de três anos de queda regular. No total, registaram-se 263 incidentes, mas especialistas admitem que o número possa ser bem maior, já que muitos donos de pequenos barcos não formalizam as queixas. A par com o aumento do número os assaltos estão a tornar-se mais violentos, principalmente na costa africana, onde os piratas descobriram o filão do sequestro; nos últimos 10 anos, 3.200 pessoas foram feitas reféns em 10 regiões críticas pela intensa acção desses grupos, responsáveis pela morte de 150 pessoas e de 500 feridos.

Além do recente e já referido caso do sequestro do veleiro francês «Ponant», outro caso muito mediático correu há cerca de três anos com o cruzeiro de luxo americano «Seaborn Spirit» cujos 150 passageiros escaparam ao assalto graças à intervenção dos seguranças do navio que conseguiram evitar o pior.

Ainda não existem notícias da reacção espanhola, mas o governo francês reagiu prontamente mediante a implementação de estratégia em duas frentes: negociou a libertação dos reféns com os piratas e enviou uma força especial para acompanhar os acontecimentos, força esta que conseguiu inclusive capturar 6 dos 12 piratas referenciados.

Simultaneamente com a notícia da captura o governo francês tornou pública a intenção de julgar os piratas no seu território e de envidar esforços para fomentar o debate deste problema no Conselho de Segurança da ONU que a avaliar pelas estatísticas e pelo mapa junto não se resume àquela região africana mas que se estende a algumas das principais rotas comerciais de três continentes, como o Estreito de Malaca (entre a Indonésia, Malásia e Singapura), a costa sul da China e do Bangladesh, no Sudeste Asiático, na Somália e na Nigéria (costa africana), onde os principais alvos são os petroleiros.

A dimensão do fenómeno e o crescimento que se tem registado nas trocas comerciais mundiais, a maior parte das quais ainda se processa por via marítima[1], implica a necessidade dos Estados enfrentarem mais este problema, para cujo crescimento não poderá deixar de contribuir o crescente fosso entre países ricos e países pobres, bem como o sentimento de exclusão que as populações dos países pobres vão reconhecendo cada vez mais.
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[1] Estimativas apontam o facto de cerca de 80% do comércio mundial ser objecto de transporte marítimo e os prejuízos resultantes da pirataria ultrapassarem a dezena de milhar de milhão de dólares.

sábado, 19 de abril de 2008

AS DORES DE ANDRÉ MACEDO

Fruto da actual conjuntura económica tenho acompanhado com especial assiduidade as últimas edições do DIÁRIO ECONÓMICO, no qual a par com as muitas notícias e análises sobre a evolução da crise económica encontrei há dias um editorial com a assinatura de André Macedo que me parece merecedor de especial atenção por abordar uma questão de grande importância – o que deve ser um Serviço Nacional de Saúde – na actual conjuntura ou em qualquer outra.

O pequeno texto além de pretender analisar a actuação da nova Ministra da Saúde – a quem logo à partida atribui uma manifesta prática de desmantelamento das reformas iniciadas pelo antecessor, Correia de Campos – vai um pouco mais longe e pretende até esclarecer os seus leitores que, contrariando a asserção que atribui a Ana Jorge[1], não poderá haver Saúde sem iniciativa privada.

Como é hábito entre os indefectíveis da supremacia da qualidade da gestão privada sobre a da gestão pública e para maior confusão de ouvintes e leitores misturam-se e confundem-se princípios essenciais de natureza socio-política, básicos à condição e dignidade humana, com postulados do foro político-económico.

O director do DIÁRIO ECONÓMICO pode, e deve, ter ideias próprias e expressá-las (será para isso que lhe pagam), mas não pode é escamotear alguns factos concretos na sua ânsia por agradar aos interesses económicos que há anos vêem rondando o sector da Saúde e que incapazes de prosperarem pelos seus próprios meios reclamam o desmantelamento do SNS de forma a assegurarem maiores lucros.

Assim, em nome do sacrossanto princípio da socialização dos prejuízos e da privatização dos lucros, vão-se encerrando serviços públicos para em sua substituição surgirem negócios a que apenas os mais endinheirados poderão aceder e para que tudo isto não seja alvo de unânime condenação popular não faltam notícias regulares sobre as deficientes condições de funcionamento dos hospitais públicos nem sobre as famigeradas listas de espera para as mais variadas e urgentes intervenções cirúrgicas, como se isso fosse característica intrínseca a um serviço público de saúde e não fruto da intencional redução do investimento nesse serviço.

Esta campanha, orquestrada e magistralmente conduzida, conta ainda com o fortíssimo apoio do sector financeiro, seja por via das parcerias que os principais bancos mantém com empresas da área da saúde seja por via dos modernos seguros de saúde que publicitam maravilhas de celeridade e condições de luxo a preços de saldo, e até com a crescente conivência de governos ávidos de resultados nas suas políticas de redução de déficits.

Bem podem os políticos em geral clamar aos quatro ventos as maravilhas da externalização dos custos e acenar promessas de grandes reduções de impostos apenas alcançáveis por esta via, porque a realidade que de quando em vez a própria imprensa vai apresentando é bem diferente. Há poucas semanas o JORNAL DE NOTÍCIAS noticiava que a Entidade Reguladora da Saúde recebeu perto de 3400 queixas durante o ano de 2007, muitas das quais denunciando situações de discriminação de tratamento, como refere aquela notícia e esta do PUBLICO.

Mesmo sendo real o argumento da importância da iniciativa privada no campo da saúde e que tem sido desta iniciativa que têm surgido as principais inovações tecnológicas no sector, não é a existência de um SNS que inviabiliza a de hospitais, clínicas e consultórios privados e muito menos a impede, porquanto sempre existirá uma franja da população que disporá dos meios de acesso a esses serviços; o que os críticos do SNS não dizem é que a exiguidade desse mercado reduz substancialmente a sua atractividade, ou seja, os lucros...

Não é, como pretende André Macedo, o asco e o desprezo pelo lucro que norteia os que defendem o justíssimo princípio de um SNS, é o asco e o desprezo pelos que subordinam o interesse pessoal ao interesse colectivo e é isto que os andrés macedos deste mundo não conseguem (ou não querem) entender.
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[1] O artigo é introduzido pela seguinte frase laminar: «A ministra Ana Jorge disse no sábado que a Saúde “não pode ser encarada como um negócio” ou como “um sector lucrativo”. Dita por Ana Jorge a frase não surpreende».

quarta-feira, 16 de abril de 2008

IL CAVALIERE A TORNATO[1]

Embora as sondagens já tivessem indicado uma vitória de Silvio Berlusconi, nem por isso o resultado das eleições legislativas em Itália – uma maioria nas duas câmaras para o bloco de direita – deixa de constituir alguma surpresa, acompanhada ainda de uma nítida tendência para uma bipolarização no cenário político italiano.

Após a demissão do governo de centro-esquerda liderado por Romano Prodi, a quem não se poderá negar a iniciativa de algumas reformas mas que não resistiu ao abandono da coligação de um dos pequenos partidos que a compunham, o eleitorado parece cada vez menos disposto a aceitar este tipo de riscos e quase todos os pequenos agrupamentos se viram excluídos da nova assembleia.

Aparte este fenómeno verdadeiramente novo num cenário político onde a fragmentação partidária tem sido regra dominante desde o final da II Guerra Mundial, pode-se dizer que estas eleições representaram apenas mais do mesmo...

Pela terceira vez nos últimos quinze anos, eis que o magnata da comunicação social em Itália volta a assumir a liderança de um governo. Nem mesmo as recorrentes acusações de corrupção nem as condenações judiciais em primeira instância, nunca ratificadas após apelo, parecem ter influenciado uma votação que deu a Berlusconi e aos seus aliados da Liga do Norte uma confortável percentagem de 48% dos votos.

Talvez completamente esquecido do malogro que constituiu o último governo liderado por Berlusconi, que deixou a economia italiana numa situação lastimável, o eleitorado italiano voltou a confiar neste empresário de 71 anos a condução dos destinos de um país que continua a debater-se com os crónicos problemas da corrupção, com uma economia cada vez mais débil, uma dívida externa em crescimento e em nítida perda de influência no conjunto da UE.

Fortalecido pelo controlo que exerce sobre a comunicação social (Berlusconi é o patrão da MEDIASET, o maior grupo de comunicação social em Itália e do clube de futebol AC Milan) e com o apoio dos nacionalistas da Liga do Norte, o futuro governo italiano poderá contar com algumas facilidades de governação que, há semelhança do ocorrido nas anteriores legislaturas, o seu desmesurado culto da personalidade, a falta de capacidade de diálogo e o polémico sentido de humor se encarregarão de desbaratar.

Se atentarmos nos grandes temas de debate durante a campanha – o problema dos lixos de Nápoles e a situação financeira da ALITALIA, a companhia aérea italiana, – fácil se torna concluir que embora aparentemente divididos entre esquerda e direita as duas grandes concorrentes não debateram princípios políticos mas meras soluções pontuais. Num total vazio de ideias terá vencido o candidato que melhor apelou ao “coração” dos eleitores (ou que mais influência tem nos canais televisivos), o que mais promessas fez (mesmo que ignore completamente como as deveria cumprir se nisso pensasse)...

Como hoje referiu Baptista-Bastos na sua habitual coluna no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, o «...caso italiano reflecte a crise ideológica na Europa, tanto à esquerda como à direita. Ambas demonstram ser incapazes de elaborar uma política de civilização, que se oponha a este tipo de aventureirismo e aos perigos daí decorrentes» que além de resumir muito do que vemos em nosso redor nem sequer constitui leitura única e radical, pois o insuspeito LE MONDE, em editorial, escreveu: «O Sr. Berlusconi aproveitou uma vez mais o sentimento de rejeição da política, algo que não é uma especialidade italiana mas que na península italiana a ascensão de um populismo de quer de direita quer de esquerda».

Para quem ainda alimente algumas, poucas, esperanças nos resultados que possam advir desta terceira passagem de Berlusconi pelo governo, sempre recordo que este apenas sobreviverá com o apoio da Liga do Norte e que este grupo nacionalista e xenófobo seguramente se fará pagar bem caro para manter o seu apoio.

E se este é o preocupante cenário a nível interno, que dizer do futuro papel de uma Itália dirigida por Il Cavaliere no processo de dinamização da UE? Quem já esqueceu a rocambolesca tentativa de nomeação de Rocco Buttiglione[2] para comissário europeu?
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[1] Literalmente O CAVALEIRO VOLTOU, título em alusão à designação “Il Cavaliere”, pela qual Silvio Berlusconi é há muitos anos conhecido no mundo dos negócios.
[2] Para quem queira recordar a polémica ou ler um pouco mais sobre Buttiglione pode encontrar aqui o perfil que a BBC em tempos publicou.

terça-feira, 15 de abril de 2008

DITADORES, PROTODITADORES E POLÍTICOS DE PACOTILHA

Enquanto no Quénia se prepara o início de um novo período político, que se espera de estabilidade, após o acordo estabelecido entre Mwai Kibaki e Raila Odinga e no Zimbabwe se aguarda pela substituição pacífica de Robert Mugabe, assistimos na Europa à recente eleição de Silvio Berlusconi (a terceira) para a liderança do governo italiano e em Portugal ao contínuo desenrolar de “casos” políticos, como o do rocambolesco episódio da não realização da tradicional sessão solene no Parlamento madeirense para recepção ao Presidente da República.

Por outras palavras, quando em regiões onde as tradições democráticas são incipientes (casos do Quénia e do Zimbabwe) ou onde é reconhecida a volatilidade dos seus governos (nos 63 anos vividos após a II Guerra Mundial a Itália já conheceu 62 governos) são esses os factos centrais no debate político, entre nós insiste-se na estratégia de criar “factos” políticos para alimentar o debate. Como se não bastassem, nem merecessem atenção, os muitos problemas económicos e sociais que continuam por resolver, a classe política nacional continua a alimentar um grupo de figuras (se calhar era mais correcto chamar-lhes figurões) cujo único objectivo parece ser o da criação dos tais “factos”.

E não se creia que estas personagens são figuras de segundo plano que de quando em vez se alcandoram para lançar as suas atoardas, nem meras personagens de fugaz aparição. Infelizmente encontramo-los entre as principais figuras da trama política nacional, indo desde líderes partidários até chefes de governos regionais.

Neste capítulo os últimos dias voltaram a ser profícuos em notícias; desde as infelizes declarações do líder do principal partido da oposição, a propósito de um alegado favorecimento a uma jornalista à qual atribui uma ligação estreita com o actual primeiro-ministro[1], até à inqualificável decisão, anunciada pelo inefável Chefe do Governo Regional, de não assinalar a visita do Presidente da República à Região da Madeira com a tradicional sessão solene no Parlamento Regional.

Vindo de quem veio a notícia e a decisão – para que a ninguém restassem dúvidas de quem manda na Madeira nem sequer foi o Presidente da Assembleia Regional a assumir o que passa por ter sido uma decisão da sua responsabilidade – não estranho o conteúdo nem a prosápia; o que verdadeiramente estranho é a reacção do Presidente da República que, mesmo profundamente imbuído do pesado fardo do seu cargo, não deveria deixar passar em claro mais um insulto de Alberto João.

Mas, o que poderemos honestamente esperar de quem, durante a campanha eleitoral que o conduziu ao cargo que ocupa, se passeou pela Madeira fazendo campanha de braço dado com o mesmo Alberto João que tempos antes, no aceso da polémica em torno da demissão do governo de Santana Lopes e da alegada responsabilidade de Cavaco Silva naquela decisão[2], Alberto João propôs que o partido a que todos eles pertencem – o PSD – expulsasse o «Sr. Silva».

Enquanto os políticos nacionais não souberem, ou quiserem, assumir posições de frontalidade que deles afastem a suspeição de que tudo aceitarão para garantirem futuros benefícios pessoais (sejam eles de natureza política ou outra), dificilmente a política nacional deixará de ser um desfiar de “factos” inventados, empolados ou manifestamente acessórios ao real cerne dos problemas nacionais e aos anseios das populações.
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[1] Esta questão foi apreciada por alguns dos habituais comentadores dos factos políticos nacionais, dos quais deixo os seguintes:
·
Carla Machado, no PUBLICO;
·
João Miguel Tavares, no DIÁRIO DE NOTÍCIAS;
e pela própria Fernanda Câncio, num artigo do DIÁRIO DE NOTÍCIAS: «
A QUALIDADE DESTA DEMOCRACIA»
[2] Na época terá tido grande impacto um artigo publicado por Cavaco Silva onde, numa alusão à actuação do governo de Santana Lopes, usou a figura de estilo cara aos economistas da «boa moeda» versus «má moeda».

domingo, 13 de abril de 2008

PARA ACABAR COM A MANIPULAÇÃO DOS JOGOS

Embora muito do que se tem passado nos últimos dias em torno do périplo mundial da chama olímpica possa ser classificado de mero “fait divers” nem por isso a campanha de contestação contra a política chinesa relativamente ao Tibete deixa de ser uma realidade, nem a situação naquela região parece registar significativas melhorias.

Enquanto as manifestações pró-Tibete se vão sucedendo ao ritmo do percurso da chama olímpica, outros acontecimentos se vão desenrolando em torno da renascida polémica da realização dos jogos, neste verão, em Pequim. Entre apelos mais ou menos claros ao boicote aos jogos e o anúncio de alguns chefes de governo da intenção de não comparecerem nas tradicionais cerimónias de abertura, regista-se uma crescente tensão entre as autoridades chinesas e o Comité Olímpico Internacional a propósito da famigerada questão dos direitos humanos que levou o próprio LE MONDE a escrever «Sobe o tom entre Pequim e o COI a propósito dos direitos humanos».

Como habitual as autoridades chinesas mostram-se tão preocupadas com a situação quanto os grupos de pressão ocidentais se encarniçam sobre o assunto, mas de modo algum admitirão uma saída para a crise que os obrigue a “perder a face”, seja do ponto de vista externo e, pior ainda, do ponto de vista interno.

Para cúmulo do ridículo universal é o facto do alvo das recentes manifestações pró-Tibete consistir num símbolo revestido de uma carga muito especial, facto que o humorista Tab conseguiu captar muito bem...

...e que deveria constituir objecto de um debate profundo por parte do COI.

Longe de defender os pressupostos e o “modos operandi” chinês, parece-me de enorme oportunidade um debate internacional sobre o futuro que pretendemos para os Jogos Olímpicos.
Recordando que na sua versão moderna os Jogos resultaram de um projecto que um aristocrata francês, o Barão de Coubertin, lançou em finais do século XIX, numa tentativa de recuperar o ideal helénico da celebração de jogos (manifestações desportivas) como meio de celebração da paz e concórdia entre as cidades-estado gregas. Embora haja historiadores que associam a celebração dos jogos ao culto dos mortos, é inegável que aquando da sua realização era decretada um trégua geral e impostas severas sanções a quem ousasse rompê-la; esta prática perdeu-se durante a vigência do Império Romano e do conturbado período da Idade Média europeia que se lhe seguiu.

Com o renascimento da ideia e a organização regular dos Jogos (a sequência quadrienal apenas foi interrompida nos períodos das duas guerras mundiais) cresceu a sua importância enquanto meta última de qualquer atleta, não sendo por isso de estranhar que estes tenham conhecido uma crescente politização[1]. Desde os Jogos de 1936, realizados em Berlim, que o governo Nazi de Adolf Hitler se esforçou por converter em mais uma manifestação de propaganda, até aos Jogos de 1980 e 1894, realizados respectivamente em Moscovo e Los Angeles que primeiro os EUA e depois a União Soviética boicotaram, e passando pelo atentado ocorrido em Munique durante os Jogos de 1972, várias foram as ocasiões em que os Jogos Olímpicos se viram envolvidos em polémicas de natureza política, sem que até à data a entidade responsável pela sua organização alguma vez tenha revelado grande preocupação em eliminar semelhantes riscos.

Se a eventualidade de um atentado terrorista é uma ameaça que, infelizmente, impende sobre as principais manifestações mundiais (sejam elas de natureza desportiva ou cultural), resultando não tanto do carácter intrínseco do evento mas principalmente da dimensão da sua cobertura mediática, já as manifestações do tipo boicote podem e devem ser evitadas mediante uma simples e razoável medida: a celebração dos Jogos num local fixo, que a comunidade internacional respeite enquanto espaço internacional e neutro, papel que a Grécia, enquanto país de origem, poderia muito bem representar.

Que interesses se movimentam no COI para que até hoje uma solução tão simples ainda não tenha sido posta em prática?

Por anacrónico que pareça, acho que os principais interessados na manutenção desta situação são os mesmos que normalmente se pronunciam pela importância dos Jogos mas que regularmente os usam para a prossecução de fins totalmente alheios ao chamado espírito olímpico, a ponto de me levarem a colocar outra questão: alguém pensa que a escolha de Pequim para os Jogos deste ano foi inocente?

Mesmo que se tenha registado aqui uma conjunção de interesses entre os governos chinês (desejoso de melhorar o seu reconhecimento internacional e de o aproximar da real influência da sua economia) e americano (desejoso de introduzir os seus modelos de funcionamento político e económico num mercado da dimensão do chinês) é possível que este último pensasse já aproveitar a situação para aumentar a pressão internacional sobre o primeiro.
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[1] Esta utilização dos Jogos para a obtenção de vantagens políticas não é característica da sua versão moderna porquanto já no período helénico as diversas cidades-estados gregas não desperdiçavam a oportunidade de capitalizar os sucessos dos seus atletas, sendo que muitas vezes os Jogos chegavam a ser utilizados como sucedâneo da guerra ou como via para a transmissão de mensagens de natureza bélica (era natural que as cidades-estado ponderassem particularmente as iniciativas de ataque às rivais que revelassem melhores resultados nos campos dos jogo, na medida em que estes eram reveladores da boa condição física dos seus guerreiros.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

IRAQUE - ESTABILIZADORES OU DESESTABILIZADORES? (parte II)

Na primeira parte do texto procurei traçar uma panorâmica dos recentes acontecimentos no Iraque, envolvendo os principais actores internos – Nuri al-Maliki e Moqtada al-Sadr – e a actuação dos países vizinhos, com especial destaque para o Irão e a Turquia, estados que lutam pelo estatuto de potências regionais.

Interrompidos os combates entre o exército e a polícia afecta ao governo de al-Maliki, talvez devido à mediação iraniana (ver o post anterior IRAQUE - ESTABILIZADORES OU DESESTABILIZADORES? (parte I)), com um aparente reforço da posição de Moqtada al-Sadr e um evidente desprestígio de Nuri al-Maliki (que se envolveu pessoalmente numa acção infrutífera) e da coligação governamental que lidera, tanto mais gritante quanto o Exército do Mahdi (milícia xiita afecta a al-Sadr) manteve intacta a sua organização e capacidades bélicas. Pior ainda são as notícias que vão dando conta das deserções que a estrutura militar registou para o campo de al-Sadr à medida que os confrontos foram alastrando a outras zonas e se foram arrastando no tempo[1].

Actores externos: os americanos

A atestar pelas notícias difundidas desde as primeiras horas[2] a acção militar não contou com a participação de forças estrangeiras, embora estas tenham estado no terreno fornecendo apoio logístico (alimentos e munições), o que de modo algum pode excluir a administração de George W Bush de todo este cenário, tanto mais que numa fase mais adiantada até disponibilizaram apoio aéreo e de artilharia pesada.

É difícil entender, como pretende o director da CIA, Michael Hayden, nesta notícia divulgada pela RFE/RL que nem ele nem o embaixador norte-americano, Ryan Crocker, nem o comandante-chefe das forças de ocupação, o general David Petraeus, tiveram qualquer conhecimento prévio da operação desencadeada em Bassorá.

Mesmo quando o embaixador norte-americano procura enfatizar o lado positivo da operação militar – a dinâmica do governo de al-Maliki e a tomada do controlo do estratégico porto de Um Qasr[3] – o que acaba por sobressair são as vantagens que o governo de Bush poderá retirar desta situação durante a audição que ontem se realizou no Senado, traduzidas nomeadamente no conteúdo da própria proposta apresentada por David Petraeus – suspensão do programa de retirada de tropas, soba a legação de que o reforço do contingente americano teve como contrapartida a contenção dos contestários e uma redução do número de baixas entre os soldados norte-americanos[4].

É igualmente difícil negar qualquer causalidade entre a decisão de al-Maliki e a recente visita do vice-presidente Dick Cheney à região, inserida no âmbito do périplo, iniciado em Bagdad, que realizou por alguns países da região, até porque este não se coibiu de reafirmar o desejo americano de resolver a situação no Iraque[5] e o objectivo da deslocação não terá sido apenas para conversar com alguns interlocutores iraquianos privilegiados, para abordar com os sauditas a questão da subida do preço do petróleo, nem como ironiza o caricaturista Jeff Danziger para preparar um eventual refúgio após o final do seu consulado.

E os iraquianos?
Como é hábito (e tudo aponta que também neste caso a tradição ainda seja o que é), resolvidos a contento os interesses dos poderosos (EUA, companhias petrolíferas, Irão, etc.) os mais pequenos serão abandonados a braços com as dificuldades que a destruição do país e dos laços sociais e económicos acarretarão.

Para quem ingenuamente duvide que tal possa suceder, recordo aqui a expressão usada pelo senador republicano e candidato á sucessão de George W Bush, John McCain, que para justificar a permanência das tropas americanas no Iraque afirmou aos jornalistas que «os nossos aliados, os países árabes, a ONU e os próprios iraquianos não assumirão as suas responsabilidades se nós retirarmos de forma apressada e desastrada»[6], como se a destruição da débil economia e das débeis infraestruturas iraquianas não tivesse resultado da acção norte-americana e esta não tivesse ocorrido em total dissonância com a opinião da generalidade da comunidade internacional.
Para agravar ainda mais a situação, se as perspectivas oferecidas pela ocupação norte-americana já eram reduzidas, importa referir que tudo indica que após um período em que a conflitualidade interna se encontrava principalmente orientada contra as forças ocupantes ou contra a corrente religiosa oposta (exemplo evidente têm sido os atentados visando as comunidades xiita e sunita), evidencia-se agora que os combates estão a alastrar ao interior do próprio grupo maioritário (os xiitas).

As probabilidades de início de um período de paz no interior do Iraque são cada vez mais diminutas. Após a ocupação norte-americana e o período de confrontos entre xiitas e sunitas, quando os responsáveis norte-americanos procuram passar a mensagem de que estão a ter êxito na política de contenção da violência eis que os recentes confrontos entre o exército leal ao governo de Nuri al-Maliki, coligação de maioria xiita entre o SCII e o partido Dawa, e o Exército do Mahdi, organização liderada por Moqtada al-Sadr, se envolvem numa escalada de violência que apesar da trégua alcançada corre o risco de reacender ao menor pretexto, porque na essência se trata de uma luta pelo poder político num território dividido por questões étnicas (árabes contra curdos), religiosas (xiitas contra sunitas) e pela partilha das riquezas originadas na exploração petrolífera.

Analisada friamente, esta nova realidade não constituirá uma especial novidade para o povo iraquiano, porquanto fruto da sua integração num estado de matriz cultural árabe está há muitos séculos habituado a conviver com acesos períodos de violência, com o objectivo de originar lideranças fortes que lhe proporcionarão períodos de paz e florescimento.

Esta realidade é de entendimento particularmente difícil para os povos ocidentais, que há alguns séculos desenvolveram um modelo não bélico de escolha das lideranças (o tal modelo democrático que a administração Bush e os seus orientadores neocons sempre desejaram implantar pelo Mundo fora, nem que seja à força da bala) e que ultimamente têm pecado pelo fundamentalismo com que observam e pretendem conviver com as outras formas civilizacionais e culturais.
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[1] Uma das fontes desta informação é o insuspeito correspondente da BBC em Bagdad, na sua crónica «Iraq hearing takes on new urgency».
[2] Esta notícia da BBC e este comentário de um seu correspondente podem servir de exemplo.
[3] Um Qasr, situado um pouco a sul de Bassorá e com acesso ao Golfo Pérsico, é o único porto iraquiano que permite a exportação de crude.
[4] Para mais detalhes sobre esta situação ler esta notícia da BBC:«US ‘must suspend’ Iraq withdrawal».
[5] Ver a propósito a notícia da BBC intitulada «Cheney vows to finish job in Iraq».
[6] A citação original pode ser confirmada nesta notícia da BBC.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

DESPUDOR TOTAL E COMPLETO

Que a chamada crise do “subprime” não se limitaria à economia norte-americana nem seria uma situação meramente passageira de falta de liquidez que o mercado se encarregaria de resolver é algo que não constitui novidade para ninguém[1], pelo que talvez não fizesse grande sentido vir aqui chamar a atenção para um conjunto de notícias que o DIÁRIO ECONÓMICO hoje publicou sob o título genérico «Banca alemã considera que crise global se agravou e vai durar», não fosse o facto de incluir a informação de que a «Europa cria sistema para salvar bancos em colapso».
Na prática, a peregrina ideia adoptada pelos ministros das finanças da UE consiste em algo tão simples e pouco polémico como repartir os custos necessários à “salvação” dos bancos em risco de falência pelos países membros onde aquelas instituições operarem.

Como se não bastasse admitir-se que os governos dos países-membros injectem milhares de milhões de euros em bancos cujas administrações pagas a peso de ouro e que durante anos a fio realizaram lucros fabulosos oportunamente entregues aos accionistas, ainda se propõe que este esforço financeiro seja distribuído pelos governos dos diferentes países onde aqueles bancos operam. O despudor (ou será a falta de meios de governos como o inglês, o francês e o alemão) já chega a ponto de fazer os contribuintes estrangeiros pagarem pelos erros dos banqueiros e pela inépcia dos sistemas de fiscalização dos mercados e dos respectivos bancos centrais!

A avançar-se para uma solução desta natureza quanto calhará a cada cidadão europeu, não-francês, suportar da incompetência do conselho de administração da SOCIÉTÉ GÉNÉRAL que não soube (ou não quis) impor limitações à desbragada actuação dos seus operadores de mercado?

A par desta legitimíssima pergunta outras devem ser colocadas.

Então porque é que os ministros das finanças não aprovaram procedimentos de idêntica envergadura para combater o processo de deslocalização de empresas para os paraísos asiáticos da mão-de-obra barata?

E o que é feito das tão apregoadas regras de livre funcionamento do mercado, sempre invocadas quando se trata de deslocalizar empresas e lançar centenas de trabalhadores para o desemprego? Onde pára agora a famigerada “mão invisível” que tão bem tem destruído os tecidos produtivos dos países da UE que estes mesmos senhores ministros deveriam ter sido os primeiros a defender?

Ou será a “mão invisível” a que vemos neste “cartoon” de Pat Bagley, distribuindo uma esmola entre os atingidos pela crise?

É que mesmo que seja socialmente entendível a intervenção dos poderes públicos para defesa dos interesses dos depositantes nos bancos, e por mais limitada e extrema que a medida possa ser, esta não poderá ser feita no sentido de colmatar os prejuízos dos administradores e dos accionistas desses bancos; estes terão que ser responsáveis pelos maus actos de gestão praticados e, há semelhança das empresas dos outros sectores de actividade, sujeitas a situações de falência ou de “take over”.
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[1] Pelo menos para quem tenha acompanhado de forma atenta o que a diversa imprensa nacional e estrangeira vai divulgando a pouco e pouco, ou para quem tenha lido os vários “posts” que desde meados de 2007 tenho dedicado a esta questão. Mais, especificamente sobre as estratégias que os banqueiros nacionais se preparam para implementar para ultrapassar a crise, ver o “post” datado de 16 de Março: «OS BANQUEIROS E A CRISE».

domingo, 6 de abril de 2008

IRAQUE - ESTABILIZADORES OU DESESTABILIZADORES? (parte I)

Estabelecida uma trégua, após os acesos combates que ocorreram um pouco por todo o sul do Iraque no final do mês passado, entre as forças militares e policiais do governo iraquiano, dirigido pelo xiita Nuri al-Maliki, e as milícias do Exército do Mahdi, dirigidas pelo clérigo xiita Moqtada al-Sadr, é oportuna uma reflexão em torno daqueles acontecimentos, dos seus actores e do que terá provocado este recrudescimento da violência.

Actores internos: Nuri al-Maliki e Moqtada al-Sadr

A primeira referência a salientar é o facto do confronto agora registado ter constituído o primeiro embate entre forças xiitas, facto que poderá pressagiar o início de uma nova fase no complicado processo político interno.

Até agora os principais confrontos (pelo menos os mais mediáticos e sangrentos) foram os que tiveram como interveniente as forças de ocupação e como principais alvos os terroristas da Al-Qaeda e a facção sunita, tida como afecta ao regime do deposto Saddam Hussein. Pelo menos esta era a forma como a imprensa ocidental foi descrevendo os sucessivos focos de conflito que as forças americanas e inglesas foram encontrando, mesmo quando em 2004 se registou o sangrento assalto à cidade de Najaf.

A segunda referência é para a especial a capacidade de organização, o armamento e a resistência que o Exército do Mahdi revelou, da qual resulta que os recentes acontecimentos poderão ter catapultado ainda mais o seu líder, Moqtada al-Sadr, para um papel fundamental na definição do xadrez político iraquiano. Se al-Sadr já representava uma importante força no parlamento – integrou a coligação xiita no poder até Abril do ano passado – o desfecho dos recentes confrontos ampliou-a ainda mais e até poderá ter consolidado a sua implantação nos principais centros populacionais, situação de que Sadr City, o bairro periférico de Bagdad que alberga 2,5 milhões de xiitas e é assim designado em memória do Grande Ayatollah Mohammed Sadeq al-Sadr (pai de Moqtada), é verdadeiro paradigma.

O reconhecimento popular, que lhe adveio principalmente da sua filiação e do facto daquele ter sido executado por Saddam Hussein, pode ainda ajudar a contrabalançar o menor peso religioso originado na sua pouca idade, apenas 35 anos, factor que sendo de grande peso na estruturação da hierarquia religiosa xiita, nem por isso tem forçado Moqtada a revelar-se como um actor menos calculista e ambicioso. Apelando ao mais profundo sentimento xiita, o dogma do “regresso do 12º imã” (o Mahdi), Moqtada tem alicerçado o seu crescente poder num forte apoio popular e no proselitismo dos seus fiéis seguidores que o apresentam como o principal actor na dupla oposição à presença americana e à influência sunita.

Após um período de confronto aberto com o exército americano, que culminaria, em 2004, com o assalto a Najaf que quase custou a extinção do seu braço armado, Moqtada suavizou a sua estratégia chegando mesmo a declarar em Agosto de 2007 uma trégua unilateral com o invasor. Este período, que terá servido para o reagrupamento e reequipamento das suas fileiras, coincidiu com aquele em que se registou uma assinalável redução no número de confrontos e de baixas entre os americanos, foi igualmente aproveitado pelo governo iraquiano (coligação xiita e curda onde pontifica o Supremo Conselho Islâmico do Iraque, agrupamento liderado pelo Ayatollah Muhammad Baqir al-Hakim, do qual é membro o primeiro-ministro al-Maliki[1] e que também dispõe de um braço armado – a Organização Badr), para consolidar a sua posição interna.

Característico das sociedades islâmicas, onde é estreita a dependência entre o poder religioso e o administrativo, a luta política tende a extravasar os contornos habituais para os ocidentais, pelo que os recentes confrontos devem ser encarados como algo “normal” num período de instabilidade política. A esta acresce ainda o facto do actual Grande Ayatollah, o imã Ali al-Sistani (também ele figura tutelar do SCII), apresentar já uma avançada idade, facto que associa à luta política a disputa por uma sucessão à qual al-Hakim é um dos grandes pretendentes.

Se este cenário político-religioso parece um pouco complicado, acrescente-se que além da natural rivalidade religiosa entre al-Hakim e al-Sadr (ainda que este devido à sua pouca idade e à reduzida formação teológica não constitua um adversário directo) existe ainda entre as duas famílias uma ancestral rivalidade pelo papel de liderança entre a comunidade xiita.

Actores regionais: Irão e Turquia

Inserindo tudo isto no contexto regional, constata-se que o vizinho Irão tem desde longa data apoiado os grupos religiosos xiitas (e as respectivas milícias), discutindo os observadores qual dos dois grupos – SCII e Organização Badr versus al-Sadr e o Exército do Mahdi – se lhe situa mais próximo. Enquanto uns salientam as críticas de al-Sadr à hierarquia xiita pela sua dependência iraniana (o próprio Ali al-Sistani é de nacionalidade iraniana), outros recordam que al-Sadr segue as orientações teológicas do Ayatollah Kadhim Hussayni al-Hairi, de nacionalidade iraquiana mas residente em Teerão.

O mais certo é que o regime iraniano apoie ambas as facções, fazendo variar a intensidade dos respectivos apoios em função dos seus interesses conjunturais – oscilando entre uma maior oposição à presença americana ou o lançamento de uma política de aproximação e entendimento com os EUA – estratégia que poderá ser confirmada pelo teor da notícia publicada na página da RADIO FREE EUROPE/RADIO LIBERTY[2] que refere que o cessar-fogo agora alcançado entre as duas facções foi precedido de dois dias de reuniões com representantes dos dois grupos, que se deslocaram em conjunto à cidade iraniana de Qom.

Atendendo à insuspeita origem da fonte da notícia parecem restar poucas dúvidas sobre a influência iraniana na região e até sobre o potencial papel estabilizador que esta poderá assumir. A dúvida subsistirá apenas até que seja resolvida a importante questão sobre o futuro para um país que em função dos interesses americanos e dos dos vizinhos Irão e Turquia (competidores directos pelo estatuto de potência regional), caso em que o país poderá ser retalhado, com o Irão a anexar a região de influência xiita e a Turquia a proceder de forma idêntica com a parte iraniana do Curdistão.

Esta probabilidade é tanto maior quanto a Turquia mantém o seu exército nas fronteiras com a parte iraquiana do Curdistão (fontes há que referem que as acções militares prosseguem no interior do território) a pretexto de combater os “terroristas” do PKK, algo que apenas seria possível com o acordo tácito da administração Bush.

[A seguir: os actores externos]
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[1] Nuri al-Maliki é o líder do Partido Dawa, membro da coligação SCII.
[2] A RADIO FREE EUROPE/RADIO LIBERTY ou RFE/RL é uma organização independente orientada para a divulgação de informação, via radio, para os países da Europa de Leste, do Médio Oriente e para a Ásia Central e Sudoeste Asiático, cujo financiamento é assegurado pelo Congresso norte-americano.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

A MONTANHA FISCAL PARIU UM RATO ANÉMICO

Corte de IVA “prudente” pode vir a não ser sentido pelos consumidores. Este foi um dos títulos escolhidos pelo PUBLICO para dar a conhecer aos leitores, da sua edição impressa, a mais recente decisão do governo de José Sócrates.
Confirmando os sinais que desde o início do ano vinham chegando regularmente dos lados de São Bento, eis que o governo confortado pelos bons resultados da estratégia implementada para a redução do déficit, agora confirmados pelo INE[1], resolveu reduzir a taxa do IVA em 1 ponto percentual.
Dito assim, até podia parecer que esta era uma boa notícia para todos os que diariamente enfrentamos a cada vez mais difícil luta do equilíbrio dos magros orçamentos familiares proporcionados pelos salários, que as confederações patronais nos impõem com o beneplácito do governo; porém, na mesma hora em que fazia o anúncio da descida da taxa do IVA, o governo confessou a sua impotência para assegurar que a medida política anunciada fizesse sentir os seus efeitos nos bolsos dos contribuintes.
Como se não bastasse o óbvio oportunismo político de que se reveste esta medida ainda assistimos ao despudor de um chefe de governo afirmar que os ganhos expectáveis reverterão para os lucros das empresas e não para os magros orçamentos das famílias. Que mais será preciso dizer para explicar porque é que a montanha fiscal pariu um rato anémico?
Mesmo sem querer enveredar por uma explicação demasiado técnica, haverá quem duvide que esta decisão de José Sócrates constitui apenas mais um dos muitos logros a que os nossos governantes nos têm acostumado? É que se a intenção do executivo era realmente a de aliviar a carga fiscal sobre os contribuintes não haveria melhor forma que a de reduzir a taxa do IVA? A resposta é igual para ambas as questões e reveladora de que o que o governo realmente pretende é apenas dar a ilusão de que se mostra preocupado com a crescente redução do poder de compra dos cidadãos enquanto continua a proporcionar meios acrescidos de aumento dos lucros das empresas, em especial das empresas de comércio e distribuição, sector de actividade onde pontificam alguns dos maiores grupos económicos nacionais e estrangeiros – AUCHAN (francês), SONAE Distribuição e JERÓNIMO MARTINS (portugueses), LIDL e PLUS (alemãs), DIA (espanhol, mas integrado no grupo francês CARREFOUR) e INTERMARCHÉ (franchising de origem francesa) – que seguramente muito agradecerão esta iniciativa.
Bem podem vir a público as associações e confederações patronais reivindicar a descida da taxa do IRC como medida mais adequada ao relançamento da economia nacional porque o governo de José Sócrates, perfeitamente consciente da reduzida percentagem de empresários que se sujeitam à tributação em sede de IRC (continua a ser prática corrente perfeitamente aceite pelo aparelho fiscal português que as empresas nacionais sobrevivam anos a fio sem quaisquer lucros e aquelas que apresentam lucros significativos sempre vão encontrando forma de se eximirem ao respectivo pagamento de impostos[2]), encontrou uma via para lhes assegurar um ligeiro aumento nos ganhos que só não é maior por ainda não estar totalmente assegurado o famigerado reequilíbrio orçamental.
A confirmar a manifesta degradação do poder de compra das famílias portuguesas, se tal fosse necessário, eis que ontem o mesmo PUBLICO deu à estampa os últimos dados estatísticos do INE resultantes de um estudo sobre orçamentos familiares, realizado entre Outubro de 2005 e Outubro de 2006, segundo os quais as famílias portuguesas vêem mais de um quarto do seu rendimento gasto nas despesas de habitação ou com ela relacionadas.

O quadro anterior, retirado do relatório do INE, é bem revelador da evolução nos últimos 15 anos, período em que se registou um aumento de 114,5% naquele tipo de despesas; este assinalável aumento terá sido “financiado”, dentro do grupo das principais despesas, graças à redução registada nos gastos com vestuário e calçado (redução de 55,9%), com produtos alimentares e bebidas não alcoólicas (47,5% no mesmo período, fruto da expansão das grandes superfícies e da significativa redução das margens em sectores de actividade como o do comércio a retalho) e à redução de 12,8% nos gastos com transportes (leia-se aquisição de novas viaturas).

Bem podem os técnicos do INE, os jornalistas, como o do PUBLICO, e os políticos afirmar que a redução dos gastos em bens de primeira necessidade (como a alimentação e bebidas e o vestuário) é sinal da evolução e do “enriquecimento” da sociedade portuguesa, porque basta atentar no facto de os gastos com a habitação terem disparado na década de noventa para os mais atentos recordarem que este período coincide com o da passagem pelo governo de Aníbal Cavaco Silva e da política económica liberal que este iniciou, particularmente traduzida no boom da construção civil que durou até ao primeiro lustro deste século.
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[1] O texto do INE - Procedimento dos Défices Excessivos - pode ser encontrado aqui.
[2] Caso concreto disto mesmo noticiou o DIÁRIO ECONÓMICO quando referiu em título que os BANCOS PAGAM MENOS 29% DE IMPOSTOS.