sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

EXERCÍCIO DE VIDÊNCIA


Pese embora a reconhecida importância de acontecimentos como a chamada Primavera Árabe ou o mais recente Outono Russo, continuo convicto que o mais relevante continua a ser a crise sistémica que ao longo do ano que agora termina ganhou o epíteto de crise do euro, como se o problema fosse essa moeda ou as dívidas nela denominadas e não o evidente colapso dum sistema económico-financeiro que ameaça engolir tudo e todos.

Como aqui tenho defendido em múltiplas ocasiões, desde o rebentamento da bolha do “subprime” e da generalização duma crise de confiança interna ao sistema financeiro que a economia mundial, globalizada em benefício duma minoria de grandes investidores (não apenas as tradicionais grandes fortunas originadas no conhecido processo de acumulação de capital mas também novas formas como sejam os “hedge funds” e os fundos soberanos) e gerida a partir de estruturas não democráticas (desde as mais exclusivistas como a Trilateral ou o Clube Bilderberg até às mais conhecidas e mediáticas como o Clube de Davos), não recuperou do profundo golpe desferido pela ilimitada concupiscência financeira duma plêiade de gestores viciados em desmesuradas prebendas.

Ampliada por uma alavancagem financeira sustentada na miríade de produtos financeiros derivados e facilitada pela actuação permissiva das agências de “rating”, com uma dimensão ainda mal definida, a crise de origem especulativa há muito se transferiu para a esfera real da economia dificultando cada vez mais a vida das empresas e das famílias, que se vêem agora responsabilizadas por uma situação para qual pouco ou nada contribuíram. Fortemente flageladas pelo desemprego (consequência obrigatória das estratégias empresariais de resposta à contracção dos mercados, traduzidas na redução da actividade ou, no extremo, pela situação de falência), sobreendividadas por anos de degradação dos salários reais e de crédito fácil, as famílias estão agora a ver-se transformadas no bode expiatório das erradas estratégias de gestão pública e privada e empurradas para situações de crescente precariedade quando não de declarada miséria.

A situação que vive o euro e as dívidas públicas dos países dessa zona económica será, quanto muito a ponta visível do enorme iceberg que constitui as dívidas públicas denominadas em dólares, libras ou ienes e designado como alvo a abater pelos interesses sediados nas três praças financeiras (Nova York, Londres e Tóquio) que, coincidência máxima, se localizam precisamente nos países que usam aquelas divisas e por cuja sobrevivência se batem.

Tudo isto considerado e ainda a clamorosa inépcia dos actuais líderes políticos europeus, cuidadosamente infectados pelo mesmo vírus do dominante pensamento neoliberal que esteve na origem da actual preponderância do sector financeiro e na difusão do conceito duma globalização orientada para o seu favorecimento, não pode deixar de resultar na conclusão de que uma solução nunca poderá ser originada no seio da mesma linha de pensamento e na obediência do paradigma que originou o problema.

Quando até já alguns dos reconhecidos seguidores da via das políticas de “austeridade expansionista” começam a questionar a respectiva validade[1] não será de estranhar os fracos augúrios com que se antevê o novo ano que se aproxima.


Sob as ineptas lideranças políticas que se conhecem, a frustração e o desânimo parecem as únicas certezas para os tempos mais próximos, porque mesmo que a recente onda de dúvida que começa a grassar entre os habituais apólogos das políticas neoliberais (na qual merecem destaque dois artigos[2] que já se interrogam sobre a possibilidade da esquerda ter razão e a situação da democracia cristã ter perdido a sua alma) possa assinalar alguma possível mudança, apenas uma revolta popular poderá evitar a perpetuação do ciclo crise – austeridade – recessão – mais crise e impor a aplicação de políticas orientadas para a defesa dos cidadãos e a recuperação das economias, mesmo que isso implique “sacrifícios” para os credores. Mas essa tarda…


[1] Vejam-se a título de exemplo as opiniões expressas por dignitários como Manuela Ferreira Leite, Rui Rio e até em parte o próprio cavaco Silva, como é referido nesta notícia do NEGÓCIOS.
[2] Entre estes destaquem-se dois, publicados na edição de Outubro da revista Courrier Internacional, da autoria do jornalista inglês Charles Moore e do alemão Frank Schirrmacher, directores de reputados jornais conservadores como o The Daily Telegraph e o Frankfurter Allgemeine Zeitung, intitulados, respectivamente, «E se a esquerda tiver razão?» e «A democracia cristã perdeu a sua alma».

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O EXECUCIONISTA[1]


A dureza e a barbárie social que imperam recomendam um acréscimo de atenção geral a tudo o que nos rodeia. Digo isto porque nunca tendo sido um atento ouvinte (ou leitor) das rotineiras mensagens que os líderes (políticos ou religiosos) têm por hábito difundir nesta quadra, parece-me na actualidade de reflectir um pouco sobre o conteúdo da mensagem do primeiro-ministro[2], não tanto pelos títulos da imprensa, que vão desde um quase apologético «Passos Coelho pede "fôlego para as grandes tarefas"», do DN, um esperançoso «Passos promete reformas para “democratização” da economia», do PUBLICO, um cordial «Passos pede confiança para as reformas de 2012», do JN, e um mais assertivo «Passos aponta 2012 como ano de "grandes mudanças"», do EXPRESSO, mas principalmente pela afirmação de que “…temos de abrir a concorrência, agilizar a regulação…”.

É que expressões como “democratizar” a economia podem encobrir mecanismos particularmente perversos, como recentemente o referiu Emmanuel Todd numa entrevista ao LE POINT, lembrando que os «…países que estão ameaçados ou ficaram sob o controle de tecnocratas são a Grécia, Itália, Espanha e Portugal, países de democracia recente. Aliás, foi para garantir esses espaços democráticos que eles foram integrados na Europa e na zona euro. Mas hoje, longe de estabilizar estas frágeis democracias, os mecanismos burocrático-monetários lançam-nos de forma acelerada para os piores momentos do seu passado de instabilidade. Sim, a situação é grave. O risco de um ressurgimento do fascismo na Itália, na Grécia dos coronéis, na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar é real».

Do mesmo modo que ouvir Passos Coelho afirmar que «…2012 será um ano determinante para nós, para todos os Portugueses. Será determinante porque temos muitos compromissos para honrar, muitos objectivos orçamentais e financeiros para cumprir…», numa clara reafirmação de que para o seu governo a primeira prioridade não são os cidadãos do país que dirige mas sim os credores (bancos e “hedge funds” internacionais) para os quais cumprirá diligentemente, leia-se doa-nos o que doer, a infame função de cobrador.

Mias, para os seguidores da linha de pensamento de Passos Coelho expressões como “concorrência” e “regulação” não têm o significado que habitualmente se lhes atribui. Basta lembrar o que tem acontecido após a abertura à concorrência de sectores fundamentais da economia como a produção e distribuição de energia (electricidade e combustíveis) e a actuação de entidades reguladoras como a Autoridade da Concorrência que nunca conseguiu lobrigar nas muitas subidas e nas poucas descidas iguais de preços dos combustíveis o mínimo vislumbre de concertação e a consequente manipulação de preços. Subjacente à ideia de “abrir a concorrência” não tem estado a da protecção dos consumidores, tanto mais importante quanto aquela concorrência assume quase sempre as características dum oligopólio[3], da mesma forma que referir a necessidade de “agilizar a regulação” tem significado a pura e simples eliminação de regras e restrições que dificultem a produção de valor para os empresários.

Outra preocupante afirmação de Passos Coelho foi a de que «…temos muitas reformas estruturais para executar»…


…porque a atestar pelo que já foi “executado” teremos tudo a temer, muito em especial quando ouvimos que «…um dos objectivos prioritários do programa de reforma estrutural do Governo consiste precisamente na recuperação e no fortalecimento da confiança. Não só da confiança dos cidadãos nas instituições, mas também da confiança que temos uns nos outros, nas nossas relações profissionais, nas nossas relações sociais e nas nossas relações de cidadania» e quando vimos a ligeireza com que o mesmo Passos Coelho “cortou” salários e benefícios sociais, já podemos antever quem irá ver fortalecida a sua confiança.


[1] Adjectivo resultante da aglutinação de executor com o igualmente adjectivo exibicionista, indispensável para caracterizar um carrasco que revla particular empenho em se exibir e agradar aos mandatários.
[3] Designa-se por oligopólio a situação dum mercado com um número reduzido de empresas (no caso particular de duas chama-se duopólio), de tal forma que cada uma tem que considerar os comportamentos e as reacções das outras quando toma decisões de mercado, como seja o caso dos preços.

sábado, 24 de dezembro de 2011

NATAL POSSÍVEL…


Receio bem que tal como o famosíssimo Ebenezer Scrooge (personagem criado por Charles Dickens, personificação do avarento e que, diz-se, terá inspirado ao desenhador Carl Barks a figura do Tio Patinhas) também eu tenha recebido a visita dos fantasmas do Natal.

Não, não se trata duma efabulação tão adequada nesta época do ano, mas antes duma calculada reflexão.
Difícil de descrever, como imaginam, optei por traduzi-la através de imagens da autoria de dois dos grandes caricaturistas latino americanos da actualidade: o mexicano Darío Castillejos e o cubano, radicado no México, Angel Boligán.

Talvez por os tempos não estarem de feição, o fantasma de felizes Natais passados primou pela ausência…
Mas o pior é que se o fantasma do Natal presente, com o chorrilho de contas e demais dívidas que OUTROS contraíram e dizem que NÓS temos que pagar, foi muito pouco animador…


…o fantasma dos Natais futuros, quando os figurões persistem em que a solução é continuarem, de forma mais disfarçada ou mais descarada, a ir-nos aos bolsos, foi aterrador:

Assim, á míngua de melhor e como tão a propósito aconselhava o saudoso Raúl Solnado: Façam o favor de ser felizes… se puderem! (acrescento eu).