domingo, 19 de março de 2006

A INVASÃO DO IRAQUE (Parte II – BALANÇO MILITAR E POLÍTICO)

A acreditar nas declarações do presidente George W. Bush, no dia 1 de Abril de 2003, a guerra no Iraque estaria concluída.

Nada de mais ilusório, conforme previsto por bom número de analistas, militares e de outras origens, a tarefa de pacificação do território iraquiano tem-se revelado longa e não isenta de contratempos. Após as primeiras manifestações de alegria pelo derrube do regime de Saddam Hussein, não tardaram que surgissem os primeiros focos de revolta e resistência. A crer na propaganda ocidental tratar-se-iam de fanáticos seguidores do antigo ditador que, logo que este fosse capturado, desistiriam de mais iniciativas. Sucede porém que Saddam viria a ser capturado no dia 13 de Dezembro de 2003, em Tikrit, mas as acções de guerrilha, contra as forças de ocupação e outros alvos, ainda se encontram longe de cessar.

Ao longo do tempo as forças americanas foram lançando várias operações militares de grande envergadura para, diziam, acabar com os focos de “insurgência”. Entre estas acções contaram-se o primeiro cerco e assalto a Fallujah, que teve lugar em Abril de 2004 para desalojar as forças (o exército do Mahdi) do clérigo xiita Moqtada Al Sadr que no início se opôs à presença de tropas estrangeiras no Iraque. Fontes oficiais referiram na altura a morte de 600 iraquianos (membros do exército do Mahdi ou civis) e 28 soldados ocidentais. Novo assalto ocorreria em Novembro de 2004 e do qual resultou (segundo fontes americanas) a morte e captura entre 2.500 e 3.500 iraquianos e a morte de apenas 80 soldados da coligação, mas esqueceram de mencionar os milhares de desalojados resultantes das duas acções (a cidade tinha uma população de cerca de 300.000 pessoas), estimando-se que após a destruição registada mais de 200.000 ainda vivam em campos improvisados próximo da cidade.

Já no final do ano passado surgiram notícias na imprensa ocidental sobre o emprego pelas forças ocupantes de armas químicas (na altura abordei o assunto aqui e aqui), traduzido no bombardeamentos com bombas de fósforo branco.

A par com estas acções militares de maior envergadura, outras de menor dimensão se realizaram na zona conhecida como o triângulo sunita. Agora mesmo decorre uma importante acção militar visando, ainda e sempre, anular as bases de apoio dos grupos que persistem em afrontar as forças de ocupação e lutar contra a sua presença no território iraquiano. Desta feita o alvo é a cidade de Samarra e as poucas notícias até agora conhecidas referem que se trata de uma acção conjunta entre tropas americanas e iraquianas.

Para complicar ainda mais a posição americana, surgiram notícias sobre a forma de tratamento e abusos praticados sobre prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghraib, sob administração e controle americanos, as quais debilitaram ainda mais as razões enunciadas para a ocupação, uma vez que uma delas era a de o regime anterior não respeitar os direitos humanos.

Entretanto esforços iam sendo feitos para procurar normalizar um novo governo iraquiano. Após um período em que as forças ocupantes dispuseram de um comissário na pessoa de Paul Bremer, em Junho de 2004 foi nomeado um primeiro-ministro interino, Iyad Allawi, na sequência da aprovação em Março de uma constituição provisória.

Este documento foi alvo de múltiplas críticas, nomeadamente do influente líder religioso xiita, o ayatollah Ali Al Sistani. O período que se viveu até à eleição de uma Assembleia Constituinte, em Janeiro de 2005, foi de constantes disputas entre as múltiplas facções de oposicionistas ao regime de Saddam Hussein, mas também entre as diversas facções étnicas e religiosas. Apesar disso a assembleia constituinte elegeu, em Abril, Jalal Talabani (de etnia curda), para a função de presidente e Ibrahim Al Jafaari (xiita) para o cargo de primeiro-ministro.

O território iraquiano congrega no seu interior três grandes grupos populacionais:
- os xiitas (que constituem uma das duas grandes seitas do Islão, criadas com o cisma que dividiu os fiéis após a morte do profeta Maomé; literalmente, a palavra significa "partidários de Ali", o genro do profeta Maomé, que estes acreditam ser o seu verdadeiro sucessor, tendo tido durante séculos uma influência decisiva sobre o Islão, apesar da sua posição minoritária);
- os sunitas (grupo maioritário do Islão, que domina quase continuamente desde o ano 661, onde representa cerca de 90 por cento dos fiéis, reconhecem de boa vontade a liderança de qualquer califa ou dinastia de califas desde que proporcione o exercício apropriado da religião e mantenha a ordem no mundo muçulmano; afirmam representar a continuação do Islão tal como foi definido através das revelações de Maomé e da vida do profeta e o seu nome deriva de "suna" - palavras e acções do profeta Maomé – pelo que se consideram a interpretação ortodoxa e correcta do Islão, enquanto os restantes grupos se desviam desta interpretação);
- os curdos são uma etnia de origem indo-europeia (e não árabe como os xiitas e os sunitas), partilham com os vizinhos xiitas e sunitas a religião islâmica e ocupam a parte norte do território iraquiano, o sul da Turquia e algumas áreas na Síria, Irão, Arménia e Azerbeijão, território também designado por Curdistão e por cuja independência há muito se batem, sendo a maior etnia no mundo sem estado próprio;
o que de per si é suficiente para criar uma instabilidade que deflagra ao mínimo incidente.

Esta tensão, agravada pela presença de forças ocupantes, e pela desastrada política aplicada pelos administradores americanos que afastaram indiscriminadamente de todas as posições potencialmente importantes os membros do grupo sunita (tipo pelos americanos como apoiantes de Saddam Hussein), conduziu a que estes tivessem boicotado as eleições para a primeira assembleia constituinte. Este órgão, maioritariamente xiita, produziu uma Constituição que viria a ser submetida a referendo nacional em Outubro de 2005, que por pouco não foi rejeitada (uma das regras era a necessidade de aprovação num dos três círculos sunitas), e que norteou as eleições legislativas que se realizaram em Dezembro de 2005.

O clima de insegurança, mas principalmente a grandes divergências entre etnias (curdos e árabes) e facções religiosas (xiitas e sunitas) está a provocar uma situação de quase ingovernabilidade do território. Atente-se que há cerca de três meses que se arrastam as conversações e negociações para a formação do novo governo iraquiano, isto enquanto a administração americana vai revelando cada vez menor disposição para assegurar uma permanência muito longa no território (a esta opção não é seguramente estranho o agravar da crise em torno do enriquecimento de urânio por parte do vizinho Irão).

Para agravar ainda mais este cenário, rebentou no passado dia 22 de Fevereiro mais um foco de tensão entre xiitas e sunitas quando foi destruído um santuário xiita – a mesquita do imã Ali - na cidade de Samarra. A este acto seguiram-se represálias sobre locais de culto sunita, agravadas a ponto de se falar abertamente num clima de guerra civil.

Esforços de contenção do conflito, preconizados pelo ayatollah Ali Al Sistani, pelo primeiro-ministro Ibrahim Al Jafaari ou mesmo pelo clérigo xiita Moqtada Al Sadr, parecem ainda não ter resolvido completamente a situação.

Numa fase de crescente necessidade de libertação das suas tropas no terreno (até porque 2005 foi o primeiro ano em que os EUA não lograram renovar os seus efectivos militares com o número suficiente de novos recrutas) a administração Bush parece desesperada para demonstrar a capacidade operacional das tropas iraquianas, algo que se poderá revelar desastroso, uma vez que continuam por esclarecer e resolver as constantes acusações que pendem sobre os corpos militares e militarizados, predominantemente integrados por xiitas, de liquidações sumárias de membros da comunidade sunita, e mesmo contraproducente num clima que sem exagero se pode definir de pré-guerra civil.

Tudo indica que os EUA se preparam para abandonar o Iraque (ver notícia de ontem do DIÁRIO DE NOTÍCIAS) durante o corrente ano enquanto se mantêm por resolver a crise política revelada não só pela dificuldade na formação do novo governo, mas também pelo funcionamento do novo parlamento, cuja sessão inaugural realizada no passado dia 16 foi suspensa 30 minutos após o início.

1 comentário:

rafael buchino disse...

q isso gente