De acordo com o calendário encerra-se hoje um período festivo que, para os católicos, antecede o início de uma época de jejum e abstinência.
Há semelhança de muitas outras festividades, também o Carnaval regista as suas origens em períodos históricos muito anteriores ao cristianismo, corrente religiosa que inteligentemente procedeu à conversão de todas as festividades que pode de forma a retirar-lhes a faceta pagã que ostentavam. Talvez o Carnaval tenha sido a que melhor resistiu a este processo de “purificação”, tendo ao longo do tempo mantido na prática o conceito que esteve na sua génese – época de festa e de excessos, comemorativa da fecundidade da terra e própria do início da Primavera.
Terá morrido como rito de fertilidade, mas manteve o ar de festa e de excessos a ponto de na linguagem popular se chamar carnaval a todas as situações que ultrapassem os conceitos e regras estabelecidos pelas normas gerais.
Parece-me por isso perfeitamente lógico falar hoje de um verdadeiro carnaval que teima em persistir no nosso país e que há muito ultrapassou as barreiras temporais normalmente associadas aos dias de folia carnavalesca. Estou-me a referir, como é óbvio, à situação que o nosso país atravessa em termos de Justiça.
Mesmo deixando para outras observações casos como o da “Casa Pia” ou o do “Parque”, ou outros envolvendo abusos e maus tratos de crianças, os habituais como os do tráfico de drogas e os ditos de “colarinhos brancos”, ficam ainda muitas situações para explorar e tentar entender.
Que outra coisa se pode dizer de actuações como a dos juízes portugueses que há uns meses fizeram greve, ou do próprio funcionamento da justiça portuguesa que para além de muito lenta é constantemente alvo de persistentes dúvidas quer na actuação durante o decorrer dos processos, quer no seu desfecho. É óbvio que não sendo a interpretação da lei um conhecimento vulgarizado a todos os cidadãos, parece-me absolutamente indispensável que as decisões (pelo menos as mais polémicas e mediatizadas) sejam cabalmente explicadas para que a maioria dos cidadãos as entendam, mesmo em situações de desacordo.
Caso se pretenda (como já ouvimos a alguns responsáveis políticos e judiciários) inverter a imagem de desconfiança e descrédito com que a generalidade dos cidadãos caracteriza o sistema judicial português é indispensável que esta imagem de TUDO POSSO, QUERO E MANDO, que geralmente aparece associada ao funcionamento da justiça, seja invertida e que os seus principais responsáveis (magistrados e juristas) nos transmitam uma melhor imagem de isenção e transparência.
Outros factores deverão igualmente ser corrigidos, como seja o caso sempre falado do segredo de justiça. Se é difícil explicar aos leigos, que somos todos nós cidadãos comuns, o seu funcionamento (com regras e limites que em muitos casos parecem completamente absurdos) deverá ser claro e a sua violação prontamente denunciada, corrigida e condenada.
Não podemos é continuar a assistir a situações como a de aparecerem notícias em jornais sobre matérias aparentemente em segredo de justiça, sem que até esta data um único dos respectivos infractores tenha sido julgado. Grave, é para a opinião pública apenas ser divulgada a actuação sobre quem difunde a informação (independentemente de haver ou não razões para tal actuação), ficando no “segredo dos deuses” quem beneficiando de acesso directo às fontes de informação (os tais processos em situação de segredo de justiça) divulga os seus conteúdos, ou partes, que a alguém interessará ver divulgadas.
Mais importante que julgar e condenar jornalistas (e muitos haverá que já o deveriam ter sido) é julgar e condenar (com maior severidade, porque a responsabilidade é infinitamente superior) quem na realidade deu o primeiro passo para a violação da lei, seja ele juiz, magistrado do ministério público, advogado, escrivão do tribunal, funcionário de limpeza, ou o que for…
O carnaval que tem sido a justiça em Portugal tem que conhecer um fim, sob pena de a breve trecho se iniciarem processos de julgamento pessoal (vinganças) ou popular.
De uma sociedade que se diz moderna e civilizada mas cujos governos não conseguem fazer funcionar os seus tribunais em clima de isenção, seriedade e confiança, apenas se pode dizer que existe para servir os interesses de um número diminuto de indivíduos que vivem e prosperam à margem da lei.
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