quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

AINDA O ESTRANHO CASO DAS CARICATURAS

Para quem tenha acompanhado aos meios de comunicação nacionais ou estrangeiros nos últimos dias, não pode deixar de “esbarrar” em notícias e/ou comentários (eu próprio já abordei o assunto aqui e aqui) a propósito do caso da publicação das famigeradas caricaturas de Maomé por um jornal dinamarquês. Ás manifestações e tumultos que se lhe sucederam em diversos países islâmicos, o ocidente tem respondido com declarações, mais ou menos oficiais, de diferentes governos ocidentais, sem que quaisquer delas consigam explicar cabalmente a situação.

Quando nos países islâmicos começam a acalmar se as manifestações mais radicais, eis que estas se começam a registar em alguns países europeus. Com carácter mais pacífico, mas sem abdicarem da condenação do acto, as comunidades islâmicas instaladas na Europa fazem ouvir a sua voz, na rua ou sempre que possível, como aconteceu este fim-de-semana em Évora durante o Simpósio Internacional sobre a "Sociedade Cosmopolita, Segurança e Direitos Humanos" em que participou o líder da comunidade ismaelita – Aga Khan – e aproveitou a oportunidade para criticar a publicação dos “cartoons”, que considerou ofensivos, mas concluiu que a controvérsia deveria ser entendida como "um choque de ignorância", em vez de "choque de civilizações".

Enquanto do lado islâmico quase só nos chegam os ecos das críticas, do lado ocidental perfilam-se duas linhas distintas: a dos que criticam a publicação das caricaturas em nome do respeito intercultural e os que a defendem em nome da liberdade de expressão. Neste confronto entre dois valores particularmente caros às sociedades que gostamos de definir como avançadas, nem sempre se tem conseguido apresentar um discurso coerente e que de forma clara desmistifique muito do que aqui está envolvido.

Para começar convém recordar que a iniciativa de publicação das polémicas caricaturas partiu de um desafio colocado pela direcção do «Jyllands Posten» (jornal dinamarquês tido como próximo do governo de coligação liberal-conservador liderado por Anders Fogh Rasmussen) à comunidade de desenhadores/caricaturistas para abordarem o tema. Obrigado a vir a público retratar-se (o jornal publicou um texto do seu redactor-chefe, Carsten Juste, pedindo formalmente desculpa à comunidade islâmica pela publicação dos “cartoons”) nem assim o jornal deixa de lembrar a acção concertada de um conjunto de clérigos muçulmanos e de governos árabes que aproveitaram a ocasião para incitar a violência contra os países ocidentais.

Conhecendo a origem do incidente (e a política algo xenófoba dos conservadores dinamarqueses) e sabendo-se que logo após a publicação, representantes do corpo diplomático islâmico, acreditado em Copenhaga, solicitaram explicações a este governo que escudado no primado da liberdade de imprensa recomendou o recurso aos tribunais, solução tanto mais estranha quanto se sabe que a lógica diplomática é radicalmente distinta daquela.

Os muitos comentaristas que têm vindo a público defender a publicação das caricaturas, que opõem ao conceito islâmico de respeito pelo seu profeta o princípio ocidental da liberdade de imprensa, embora dignos de respeito e alguma concordância merecem o reparo de confundirem a lógica de funcionamento das sociedades onde há séculos se registou uma efectiva separação entre a esfera política e a religiosa e daquelas onde esta separação não existe. Mesmo não querendo pôr em causa o princípio da liberdade de expressão (e aqui reside outro sofisma latente porquanto todos conhecemos várias situações em que outros interesses se sobrepuseram a esse princípio), não é razão para que o governo dinamarquês tenha tratado a questão no seu início de forma tão displicente (quase arrogante) e pouco diplomática.

O avolumar da crise (mesmo sabendo-se concertada e destinada a servir outros interesses que não os da esfera religiosa) e a ânsia de notoriedade e lucro de outras publicações conduziram a que as famigeradas caricaturas tenham conhecido sucessivas publicações por outros jornais (a última ocorreu há uns dias quando o semanário humorista francês «Charlie-Hebdo» alcançou uma tiragem muito superior à normal), opção que longe de contribuir para afirmar a liberdade de imprensa está a contribuir para inflamar a situação enquanto assistimos a uma dualidade de critérios entre os governos ocidentais.

Enquanto os mais envolvidos na instabilidade no médio-oriente (EUA e Grã-Bretanha) optam por uma estratégia de condenação da publicação (numa atitude de hipócrita tentativa de capitalização de simpatias islâmicas) outros optam por discursos ambíguos onde nem se defendem os princípios nem se condenam as atitudes. Mais recentemente o alto responsável da União Europeia para a política externa, o espanhol Xavier Solana, procurou acalmar os ânimos num encontro com Ekmeleddin Ihsanoglu, secretário-geral da Organização da Conferência Islâmica (OCI), tendo obtido da parte deste, como resposta, que a Europa precisa de adoptar medidas legislativas contra a islamofobia. Hoje mesmo a questão foi debatida no Parlamento Europeu, que se pronunciou pela defesa da liberdade de expressão e condenou a violência que tem envolvido os protestos, enquanto em Itália, Roberto Calderoli o ministro do governo de Silvio Berlusconi (membro da Liga do Norte, partido que integra a coligação governamental e que é conhecido pelas suas tomadas de posição xenófobas), mandou fazer "t-shirts" com reproduções das polémicas caricaturas sobre Maomé as quais se propõe usar e distribuir como forma de protesto contra o modo subserviente como na Europa tem lidado com a situação.

De uma forma ou outra, todos acabam por prestar um mau serviço aos valores ocidentais, que afirmam defender quando se revelam incapazes de marcar uma posição de defesa das liberdades ocidentais, enfeudados que estão à prática de desrespeito das liberdades dos outros.

Saber distinguir entre liberdades e direitos passa por ser uma das vantagens da civilização ocidental, embora esteja em crer que os interesses económicos e militares que ditam as políticas que os países ocidentais vêm aplicando no Médio-Oriente há muito esqueceram as liberdades (incluindo as dos seus próprios povos) para fazerem valer os seus [mais que duvidosos] direitos sobre os mais fracos.

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