Num artigo de opinião no DIÁRIO DE NOTÍCIAS Sarsfield Cabral aborda o 25 de Novembro de 1975 e as memórias associadas à data.
Para o autor comemoram-se hoje, e apenas hoje, os 30 anos de democracia em Portugal. O curto período que mediou entre Abril e Novembro foi para ele o da anarquia. Talvez porque supremo defensor da ordem e da segurança, tempos como aqueles trazem-lhe memórias de lutas e agitações pouco dignas da calma e seriedade indispensáveis à governação de um Estado moderno.
Longe de mim duvidar de quem de uma forma tão directa traz para o debate valores tão importantes como a ordem e segurança, porém não posso deixar de me interrogar sobre as verdadeiras virtualidades de tais valores.
Terão servido para a dinamização da economia nacional, sendo como é sempre referida a sua importância para a atracção e fixação decapitais estrangeiros, e para a criação de maior bem-estar e qualidade de vida?
Terão servido para a estabilidade política e a definição correcta e atempada das grandes linhas orientadoras de todo um povo?
Terão servido para a criação de um sistema de justiça célere e equitativo?
Terão servido para a criação de sistemas de saúde e assistência orientados para a contrariar a regressão demográfica e a maximização do bem-estar das gerações mais idosas?
Seria bom se a resposta a todas estas questões fosse positiva e menos mau se pelo menos uma delas tivesse sido alcançada. Mas não, pelo contrário, os elevados valores que segundo Sarsfield Cabral não existiram entre Abril e Novembro de 1975 e que homens como Ramalho Eanes e Mário Soares nos terão trazido, revelam hoje o efeito perverso de continuarmos a apresentar:
- um tecido produtivo totalmente desajustado, incapaz de produzir artigos com a qualidade suficiente para concorrerem nos mercados interno e externo, dominado por empresários defensores acérrimos do liberalismo económico mas sempre ávidos e dependentes dos subsídios do Estado que acusam de despesista e ingerente nos seus interesses privados;
- uma qualidade de vida cada vez mais degradada (atenção que este indicador não se mede apenas pelo número de automóveis e de telemóveis, mas também pelo número de horas que regularmente dedicamos ao lazer e pelo consumo de bens de natureza cultural);
- um sistema político em que os seus actores primam pela mediocridade (quando não é técnica é pelo menos de valores) e que até esta data nunca conseguiu produzir mais que uma sucessão de governos onde os participantes rodam ao sabor do folclore político;
- um sistema de justiça lento, muito pouco claro e onde crescentemente se põe em dúvida a integridade e isenção dos seus agentes;
- um sistema de saúde e de assistência, que há semelhança de tudo o mais, foi desenvolvido numa perspectiva minimalista;
pelo que não me parece nada estranha a ausência de comemorações. A havê-las estar-se-ia a comemorar o quê?
O país perdido por entre múltiplas oportunidades ou apenas o sentido de oportunismo de uns quantos em prejuízo dos outros?
É óbvio que nada me garante que sem o 25 de Novembro estaríamos melhor. Mas é igualmente óbvio, para mim, que contrariamente ao que escreve Sarsfield Cabral não foi a ordem e a segurança que evitou a instalação da lei da selva.
Se o que nos trouxeram os abnegados defensores de tão elevados valores foi o que está à nossa vista, receio bem que estaríamos melhor numa sociedade que tivesse amadurecido os comportamentos exagerados mediante um processo de debate de ideias e da formação de gerações de jovens interessados na “coisa pública” ao invés daqueles seres quase amorfos que o nosso sistema de educação (quase tão escolástico como o medieval) vem produzindo.
Para terminar e em jeito de súmula, apetece-me glosar o último parágrafo do artigo que esteve na origem desta reflexão, com o devido respeito pelos anarquistas e por Sarsfield Cabral, diria que: tempo de anarquia, é como chamam hoje os instalados no poder ao período antes do 25 de Novembro. Como se pudesse haver anarquia com um mínimo de ordem e segurança. Com este Estado, impera a lei da selva que sempre favorece os predadores. Eis uma lição que não pode ser esquecida.
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