domingo, 13 de novembro de 2005

COMO DEVIA SER O ENSINO

Num artigo de opinião hoje inserto no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Maria do Carmo Vieira dá-nos uma visão sobre o ensino. Pela relevância do texto, quer no seu conteúdo quer na proposta de uma “certa” forma de ensinar, com a devida referência (e reverência) à autora, atrevo-me a aqui o reproduzir…

«Guerra não é acontecimento normal
Maria do Carmo Vieira

A anteceder o estudo de Fernando Pessoa, em que integro os seus poemas de reflexão crítica sobre a guerra, quer do ortónimo, quer de heterónimos, convidei os meus alunos do ensino secundário recorrente nocturno a analisar uma frase de Albert Einstein, que eles conheciam como físico, mas não como activista dos direitos humanos - o mundo é um lugar demasiado perigoso para viver -, não por causa dos que fazem o mal, mas devido àqueles que estão ao lado deles e consentem tais actos.

A sua leitura e análise implicou, quase de imediato, trazer a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Iraque de novo à sala de aula, o que, devo confessar, foi muito gratificante, pois em tempo de branqueamentos e de aniquilação da disciplina de História urge estimular a capacidade reflexiva sobre acontecimentos que muitos pretendem silenciar ou continuamente adulterar com novas mentiras. Foi assim que nos ocupámos na procura de argumentos que apoiassem a frase de Einstein e na aula seguinte houve quem trouxesse frases tristemente célebres de Bush, como "Para defendermos a nossa grande nação, exportaremos a morte e a violência para os quatro cantos da Terra" ou "A liberdade a que estamos vinculados não é o dom da América ao mundo, é o dom de Deus à Humanidade".

No decurso da discussão, envolvemos frases de Fernando Pessoa, a propósito do comportamento de Hitler, com textos de Primo Levi e Anne Frank, mas a realidade mais proximamente vivida - a guerra do Iraque - foi, no entanto, a que se prolongou, por efeito de uma frase de Susan Sontag sobre o facto de a guerra se tornar um acontecimento normal. Quem poderá esquecer, com efeito, a guerra do Iraque em directo na televisão, a testemunhar a indiferença ante o terror e o sofrimento dos iraquianos, sobre quem caíam centenas e centenas de bombas? A Administração Bush, também neste caso, terá pensado que, intérprete e mandatária de um deus, amigo e protector exclusivo dos EUA, limpava o mundo de um país integrado no "Eixo do Mal", como reagiu mais tarde ao furacão Katrina, ante concidadãos seus, na mesma completa indiferença pelo seu sofrimento, ao confessar através das palavras de um congressista republicano da Luisiana "Finalmente, os bairros de Nova Orleães foram limpos. Aquilo que nós não soubemos levar a cabo, encarregou-se Deus de o fazer." Estranha divindade que massacra, que tortura e profana o Bem que é costume associar a um qualquer Deus.

Em sintonia com o nosso trabalho surgiu, em boa hora, o dramaturgo Harold Pinter e a notícia de que lhe tinha sido atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Foi assim que acrescentámos frases suas ao debate, testemunhando inequivocamente a ideia expressa por Einstein, que debatêramos, em quatro aulas "Os crimes dos EUA por todo o mundo têm sido sistemáticos, constantes, clínicos, desumanos e muito bem documentados, mas ninguém fala deles" e "O facto é que o sr. Bush e o seu gang sabem o que estão a fazer e Blair, a não ser que seja o idiota iludido que frequentemente parece ser, também sabe o que eles estão a fazer. Bush e companhia estão determinados, muito simplesmente, a controlar o mundo e os recursos do mundo. E estão-se nas tintas para o número de pessoas que matam pelo caminho".

Dramaturgo desconhecido dos alunos, Harold Pinter poderá não ser lido por eles de imediato, mas não será esquecido, porque a sua postura interventiva na vida transformar-se-á num estímulo à não aceitação e à não resignação, sempre que os nossos direitos humanos estiverem ameaçados. E que não pretendam vir explicar-nos os acontecimentos que vivemos, como na guerra do Iraque, porque sabemos pensar, ainda que haja sempre quem persista em demonstrar que nós, os coitados, cansados das dificuldades da vida, ansiamos por uma ajuda "pedagógica" que engoliremos com satisfação, porque vinda de pais salvadores (também a ressurgir agora), que mais não querem que o nosso bem, sem a nossa intervenção. Felizmente, são ainda muitos os que não aceitam que uma potência teoricamente defensora da liberdade actue na ostentação da sua supremacia sobre o mundo, deixando a descoberto a sua nula preocupação em pensar o Bem (nele se incluindo também o ecológico) para o universo. Intolerável, com efeito, que se insista em impor a mentira, a ignorância, a crueldade, a injustiça, em substituição de valores intemporais, património humanista que herdámos e que teimaremos em respeitar e cumprir no nosso quotidiano, em gestos de solidariedade, curiosidade, responsabilidade, honra na palavra dada e respeito por todos os outros.

Aproveitando leituras que fizéramos anteriormente, aquando do estudo de Camões, um aluno lembrou uma frase expressiva d'O Livro de Eclesiastes, na tradução do humanista português Damião de Goes, dando-a assim a conhecer a colegas que pela primeira vez se integravam na nossa turma "Melhor é a sapiência que as armas da guerra."

Estavam lançados alguns dados que beneficiariam a leitura e análise de poemas pessoanos a propósito de um aspecto da condição humana, especificamente a relação do Homem com a guerra. E, porque mestre é alguém que pode influenciar "beneficamente" a nossa alma, iniciámos o estudo com Alberto Caeiro, o heterónimo que se identificou como Guardador de Rebanhos e a quem Fernando Pessoa designou como "mestre". É com os seus versos que terminamos "A guerra, como tudo humano, quer alterar,/Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito/E alterar depressa./ /Mas a guerra inflige a morte./E a morte é o desprezo do Universo por nós./Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa./Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar." Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.»

… na expectativa que dele todos colhamos ensinamentos e melhoremos o nível de exigência sobre um sistema de ensino, que por ser de massas não deve ser de menor qualidade.

Sem comentários: