Não é apenas no campo das relações internacionais que os EUA mantêm uma prática ambígua e criticável. Para além da há muito praticada política de dois pesos e duas medidas relativamente aos seus parceiros internacionais (em função da distribuição entre amigos e não amigos), também no domínio interno se notam o mesmo tipo de sinais.
Já ontem aqui abordei uma das pontas (na vertente externa) deste problema a propósito da questão nuclear iraniana e hoje proponho-me continuar, agora na vertente interna, área onde começo por recordar antigas práticas, como a seguida até aos anos 60 do século passado relativamente à comunidade negra norte-americana (não completamente resolvida até aos dias de hoje, como se pode constatar após a destruição de New Orleans no Verão passado) e onde actualmente campeia uma vasta polémica em torno das escutas telefónicas praticadas sem mandato judicial pelos serviços de segurança interna (NSA – Agência de Segurança Nacional).
Problema originado pela luta contra o terrorismo, decretada após o 11 de Setembro de 2001, que começa, até no panorama interno norte-americano, a assumir contornos de quase paranóia. É histórico o facto das administrações americanas, pelo menos as politicamente mais instáveis, recorrerem ao empolamento de um “inimigo” externo como forma de manutenção e consolidação do seu poder interno, porém o que agora se está a passar ultrapassa tudo o que se conhecia.
Segundo recente revelações de um agente da NSA a administração americana está a proceder a algo que se assemelha mais à mítica figura do “Big Brother”, criado por George Orwell, que tudo ouve e tudo vê do que a procedimentos de segurança. Aquele organismo está a utilizar programas que analisam comunicações segundo chaves ou palavras pré-seleccionadas e sempre que uma é localizada todos os contactos feitos para ou a partir dessa fonte de comunicação passam a ser analisadas em pormenor. Em termos práticos se qualquer pessoa contar ao telefone uma simples anedota mencionando o nome de Bin Laden, aquele número e todos os que com ele alguma vez se relacionarem passam a estar sob vigilância directa.
Pode-se argumentar, como o faz a administração de George Bush, que tal acontece para protecção dos cidadãos; mas até onde vai o conceito de protecção? Sem controlo judicial quem garante a segurança das conversações gravadas? Quem assegura que estas não possam ser utilizadas para fins diversos da mera detecção de actividades criminosas?
São questões deste tipo, directamente relacionadas com os direitos e as liberdades individuais que começam a fazer-se ouvir sobre esta prática indiscriminada e descontrolada. Mesmo os americanos que apoiaram a aplicação de legislação particularmente restritiva no capítulo dos direitos e liberdades, como é o caso do “Patriot Act” aprovado pouco depois do ataque ao World Trade Center, começam a questionar-se sobre os limites entre a necessidade de protecção e o abuso de poder de que este tipo de práticas se reveste.
A questão da legalidade das escutas telefónicas também tem tido o seu relevo em Portugal bem como críticas ao seu sistema, mais pelo facto daquelas nem sempre apresentarem o devido acompanhamento judicial e por algumas delas (as mais mediáticas ou politicamente mais “interessantes”) acabarem por ser publicamente divulgadas. Esta é uma questão obviamente grave mas que não assume (pelo menos até agora nada tem surgido que o faça pressupor) foros idênticos ao que se passa nos EUA, uma vez que mesmo envolvendo um número desproporcionado de vigiados (o Procurador Geral da República já admitiu que deverão ser cerca de oito mil as pessoas sob escuta) e já tendo provocado alguma agitação nos círculos políticos (questão da divulgação de escutas a Ferro Rodrigues ex-líder do PS) ainda se encontra longe de um processo de vigilância electrónica permanente e global.
O caso americano revela à saciedade até onde pode ir a prepotência de um poder teoricamente eleito para servir e proteger a população de um estado. Há muito que sucessivos governos americanos vêm revelando a mais elementar falta de pudor ético e moral, nomeadamente quando persistem em não reconhecer o Tribunal Penal Internacional (que o mesmo é dizer que o país que maior número de tropas dispõe nos quatro cantos do mundo não permite que os que as compõem possam ser sujeitos a julgamentos de acusações sobre crimes de guerra ou outras violações dos direitos humanos), enquanto continuam a criticar e a invadir estados sob o argumento de que estes violam os direitos humanos.
A dualidade de critérios, até no cumprimento de regras internacionais comummente aceites por quase todas as nações, como é o caso da Convenção de Genebra, é particularmente manifesta no tratamento dos prisioneiros resultantes da invasão do Afeganistão, relativamente aos quais a administração americana defende o princípio de que não se tratam de prisioneiros de guerra mas sim de terroristas, pelo que não tem permitido a intervenção de organismos humanitários como a Cruz Vermelha nas prisões especiais (como é o caso da de Guantanamo) onde são mantidos sem julgamento há mais de quatro anos, não lhes permite o acesso a advogados de nacionalidade diferente da americana e utiliza, para interrogatórios, instalações em países onde é permitida a prática da tortura.
Sobre esta última questão o Congresso norte-americano aprovou recentemente legislação que, contrariamente à até agora em vigor, proíbe expressamente tal prática a cidadãos americanos em qualquer parte do mundo. Infelizmente iremos assistir a novo malabarismo – para a obtenção das chamadas informações vitais os serviços americanos vão seguramente passar a “entregar” os seus presos a algozes estrangeiros (não abrangidos pelas novas limitações), torneando assim a letra da lei e garantindo que o fluxo de”informação” não seja interrompido.
No combate ao terrorismo, como em muitas outras situações, os EUA persistem na utilização da razão da força em vez da força da razão, não sendo por isso de estranhar que cada vez mais se apelide a sua actuação de poder imperial.
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