Anos volvidos sobre o escândalo das eleições presidenciais americanas de 2001, que perante a incapacidade de apuramento de um vencedor foi deixado ao arbítrio de um tribunal a escolha do presidente (por acaso o tribunal era constituído por juízes escolhidos pelo pai do candidato nomeado), eis que numa democracia ocidental se volta a registar uma situação em que ninguém quer assumir a derrota. Estou, obviamente, a referir-me às eleições italianas que ontem deviam ter apurado a coligação que formaria o governo do próximo quinquénio, porém, 24 horas decorridas, a coligação derrotada recusa-se a assumir o resultado e o seu cabeça de lista e primeiro-ministro em exercício, Silvio Berlusconi, apresenta-se perante as câmaras da televisão dizendo que com o resultado anunciado a Itália é ingovernável.
Para entendermos melhor todo este imbróglio vejamos como decorreu o acto eleitoral e o período do apuramento dos resultados, sem esquecer a particularidade do parlamento italiano ser composto por duas câmaras: a de deputados e de senadores. Perante um processo eleitoral muito participado (a taxa de abstenção foi de 16,4%) e fortemente disputado, perfeito reflexo de uma sociedade dividida entre duas grandes coligações, a Casa das Liberdades do primeiro-ministro Silvio Berlusconi e a União de Esquerda do ex-primeiro-ministro e ex-presidente da Comissão Europeia Romano Prodi, a incerteza no resultado final arrastou-se noite dentro e só ficaria cabalmente resolvido ao final da manhã de hoje. Durante todo este tempo foram-se alternando os “vencedores” em função dos resultados das projecções, facto que conduziu à formulação de cenários alternativos. Assim quando ao princípio do dia era dada como segura a vitória da União de Esquerda na câmara de deputados e da Casa das Liberdades no senado (155 lugares contra 154), começou a formular-se a hipótese de realização de novo acto eleitoral face à situação de ingovernabilidade resultante de maiorias diferentes nas duas câmaras. Porém, a contagem dos votos dos emigrantes acabou por alterar este cenário dando à União de Esquerda também uma maioria no senado (158 lugares contra 156).
Estes resultados não espelham o facto da coligação vencedora ter registado apenas mais 0,1% dos votos expressos pelos cerca de 47 milhões de eleitores, fruto do peculiar sistema eleitoral italiano que após as alterações introduzidas há cerca de seis meses pelo governo de Berlusconi atribui uma maioria automática de deputados (340 em 630 possíveis) ao partido mais votado, mas sim uma profunda distinção entre duas poderosas coligações, que apresentaram ao eleitorado dois cabeças de lista completamente distintos: um Berlusconi truculento e senhorial contra um Prodi ponderado e credível e com objectivos igualmente diferentes. Enquanto Prodi procurou alcançar uma vitória que permitisse o lançamento de uma política europeísta e orientada para o crescimento da economia, Berlusconi estaria seguramente mais interessado numa vitória que o protegesse dos inquéritos judiciais de que tem sido alvo (viu-se envolvido em nove casos de fraude fiscal, contabilidade falsa e corrupção de magistrados, tendo sido absolvido em todos eles fruto de prescrições ou de uma polémica despenalização do crime de falsificação de contas que o próprio fez aprovar em 2002).
Assim, o discurso de Berlusconi que poderia ter feito sentido no período em que pairava a dúvida sobre a forte probabilidade da vitória da sua coligação na câmara alta, ganha foros de autentico escândalo e revela à saciedade a natureza e o carácter do homem que dirigiu a Itália nos últimos 5 anos, que nem mesmo o apelo à recontagem dos votos nulos (cerca de meio milhão) consegue escamotear.
O triste espectáculo da falta de humildade e de dignidade de Berlusconi relegou para segundo plano o resultado das eleições em Itália e a questão da manutenção ou alteração da política interna naquele país. O que deveria ter sido a notícia do dia, mesmo com o aproximar da eleição presidencial italiana, daqui a cerca de um mês, que adiará a entrada em funções do novo governo (e presume-se) de uma nova política, acabou esquecido perante a actuação da coligação derrotada, ficando ainda para apurar as consequências da manutenção em funções de um governo chefiado por um Silvio Berlusconi que persiste em não admitir a derrota, apegando-se a um poder que, tudo o indica, lhe foi recusado nas urnas.
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