Li atentamente, como há muito tenho hábito, o artigo de opinião que Maria José Nogueira Pinto assinou na passada sexta-feira (uma especial Sexta-Feira Santa como assinala o calendário religioso) no DIÁRIO DE NOTÍCIAS.
O tema era, evidentemente, relacionado com a data e consistindo numa reflexão pessoal sobre o dogma católico da morte e ressurreição de Cristo, que a autora levou mais longe que o simples repositório de factos/lendas que diversas igrejas ao longo dos séculos elevaram à figura de dogmas. Dando-nos uma visão pessoal do acontecimento torna impraticável a crítica fria ou mordaz, mas sobreleva a sua vertente de fé (que para muitos infelizmente é mera crendice) e interioridade, matéria sobre a qual cada um deve ser livre de interpretar como entender.
Sucede porém que é precisamente neste particular da liberdade individual da cultura religiosa que ao longo de séculos todas as igrejas (e em especial as monoteístas) têm usado e abusado do princípio da imposição da interpretação mais conveniente. Felizmente o processo de desenvolvimento do Homo Sapiens e das sociedades que tem criado, tem permitido que outras interpretações, interrogações e formulações vão surgindo.
O desenvolvimento da investigação e do pensamento científico (alicerçado em factos comprovados e/ou comprováveis experimentalmente) contribuiu para novas formulações e a construção de diferentes hipóteses explicativas da vida no nosso planeta e da forma de pensar e entender fenómenos naturais e “sobrenaturais”. Hoje ninguém legitimamente se pode espantar e apelidar de sacrílegos (face aos actuais padrões religiosos) os povos que desconhecendo o meio que os rodeava, veneraram fenómenos naturais como o fogo (a própria religião católica ainda representa manifestações da divindade dessa forma – a sarça ardente que “falou” a Moisés e o Espírito Santo que “desceu” sobre os apóstolos), pelo que deve ser igualmente legítima a formulação de novas hipóteses de explicação, sobre factos ancestralmente dados como adquiridos, à luz de novas descobertas ou de novas processos interpretativos.
No momento em que uma vez mais os cristãos comemoram a morte e ressurreição do fundador da sua religião e em que recentemente a imprensa fez eco da tradução de um papiro, datado de há 1700, anos que apresenta um visão diferente da oficialmente aceite e divulgada pela Igreja Católica sobre os factos então ocorridos – de acordo com o texto citado, Judas, o apóstolo que segundo a tradição terá traído Jesus aos seus adversários, mais não terá feito que agir segundo instruções do seu mestre – faz ainda mais sentido reflectirmos sobre outras formulação que ao longo do século XX historiadores e investigadores dos fenómenos bíblicos foram apresentando.
E se autores como Lynn Picknett e Clive Prince têm razão quando formularam a hipótese da existência de descendência de Jesus e Madalena no livro «O SEGREDO DOS TEMPLÁRIOS”?
E se Jesus não morreu na crucificação, como Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln defendem no seu «O SANGUE DE CRISTO E O SANTO GRAAL» e tudo não passou de uma bem urdida encenação para cumprir os requisitos das antigas profecias judaicas?
Esta hipótese, por absurda que pareça, ajuda a explicar situações pouco claras nas narrativas constantes nos evangelhos incluídos no Novo Testamento (aqueles que a hierarquia da igreja católica entendeu aceitáveis), nos evangelhos ditos gnósticos, como os de Nag Hammadi, ou no mais recentemente descoberto. Assim, torna-se compreensível a deslocação de Jesus para Jerusalém, local onde o risco de confronto com a ortodoxia judaica era maior, mas onde poderia contar com o apoio de alguns seguidores mais poderosos (José de Arimateia e Maria Madalena) e utilizar a seu favor os jogos de poder numa época particularmente conturbada.
E se, como pretendem Lynn Pickett e Clive Prince, os descendentes (ou a própria família) de Jesus terminaram os seus dias no Sul de França? Local onde terão originado uma outra forma primitiva de culto cristão que séculos mais tarde terá estado na origem do catarismo. Esta hipótese ganha contornos de franca probabilidade se recordarmos que este movimento que defendia o regresso à simplicidade e pureza da forma de vida de Cristo foi alvo no século XIII de uma cruzada ordenada pelo papa Inocêncio III e que apenas seria completamente debelado anos mais tarde pela acção de uma força papal especial – a Inquisição.
Visto à luz de todas estas interrogações e formulações alternativas, o agora traduzido Evangelho de Judas, vem adicionar novas peças a este intricado puzzle, tanto mais que a desmontagem e remontagem das peças conhecidas vai esbarrar em três tipos de posições: 1) os que genuinamente formulam dúvidas sobre o rearranjo agora proposto, onde Jesus perde a sua característica divina, ganhando em contrapartida uma nova dimensão humana e política (provável descendente de uma linhagem real e opositor ao ocupante romano da palestina) e possível iniciador de uma linhagem que originaria a futura família real merovíngia; 2) os que liminarmente rejeitam qualquer reinterpretação dos factos bíblicos, por persistirem (ou não se atreverem a contestar) nos conceitos feitos dogmas ao longo de séculos; 3) os que, por nunca terem duvidado da origem humana de Jesus, julgam exequível boa parte da estrutura narrativa mas demasiado rebuscada (e já agora muito proveitosa aos defensores da origem divina do poder real) a hipótese da linhagem dos antigos reis merovíngios remontar a Jesus.
Para concluir diga-se que outros investigadores, partindo de algumas destas premissas caminharam em sentidos distintos para elaborarem teses não menos relevantes. Centrando estas na figura feminina de Maria Madalena e na importância da mulher na cultura religiosa, Margaret Starbird, no livro «A MULHER DO VASO DE ALABASTRO» deixa uma inquietante reflexão sobre a desvalorização do feminino na igreja primitiva e da sua perpetuação no tempo.
No seu conjunto estas, e outras teses, devem ser lidas e entendidas como trabalhos muito válidos para a compreensão de um passado que continua hoje a ser forte condicionador do nosso presente e não devemos permitir que continue a ser limitador do futuro.
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