quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

OUTRA OPERAÇÃO MILITAR INÚTIL

Quando em meados do mês li a notícia da atribuição do Prémio Nobel da Paz ao ex-presidente finlandês Martti Ahtisaari e o apelo que este então fez para que a comunidade internacional atribuísse a máxima prioridade à questão do Médio Oriente, tornou mais evidente a pergunta: porque é que nunca se recorreu a alguém com a experiência de Ahtisaari para ajudar a resolver o conflito israelo-palestiniano?

Embora ainda pudessem parecer longe as hipóteses de ocorrência de novo conflito naquela região, o já evidente fracasso do Roteiro para a Paz e da Cimeira de Annapolis[1] pouco mais podiam pressagiar que mais tempos conturbados.

Não que os esforços das partes envolvidas – com particular destaque para os EUA e a UE – fossem de molde a tranquilizar toda a gente, nem que a situação no terreno tivesse registado alguma significativa melhoria para as martirizadas populações palestinianas (e em especial para os cerca de milhão e meio de habitantes da exígua Faixa de Gaza sujeitos a um bloqueio económico e militar que se arrasta desde Junho de 2007), mas a conturbada situação internacional e a aparente acalmia nas críticas e condenações do regime iraniano poderia levar a crer que algum entendimento estaria a ocorrer, não fora a conjugação de dois outros factores nada negligenciáveis: a complicação da situação da política interna israelita e a manifesta degradação das condições de vida na Faixa de Gaza.

Os cruéis efeitos do bloqueio que Israel vem impondo àquele território palestiniano, a constante degradação das condições de vida das populações palestinianas condenadas a expiarem o crime de terem eleito democraticamente um governo que as potências ocidentais classificam de terrorista, e alguma perca de popularidade da liderança do Hamas, poderão explicar as razões pelas quais aquele movimento decidiu não renovar a trégua que fora acordada há cerca de seis meses e arriscar um recrudescer do conflito do qual espera obter ganhos à semelhança do ocorrido com o Hezbollah aquando da última invasão israelita do Líbano.

A esta arriscada estratégia do Hamas correspondeu o lado israelita com uma outra ditada não pelos princípios do diálogo e da concertação (aliás em perfeita consonância com o bloqueio que insistem em impor à Faixa de Gaza) mas principalmente por razões de natureza interna. Avizinhando-se um complicado processo eleitoral no próximo mês de Fevereiro, o governo de coligação liderado pelo partido Kadima optou por uma resposta belicista na expectativa de vir a colher benefícios eleitorais.

Como muito bem recorda Osamah Khalil num artigo de opinião, intitulado «The dogs of war» publicado da página ELECTRONIC INTIFADA, esta não é a primeira vez que em Israel se recorre ao uso da força contra os palestinianos como via para influenciar resultados eleitorais[2], nem esta acção pode ser classificada como resposta ao aumento do número de Qassams[3] lançados da Faixa de Gaza contra as povoações judaicas mais próximas (Sderot e Netivot), pois a ideia de fomentar um novo confronto na região deverá remontar ao atentado perpetrado em Fevereiro deste ano contra Imad Mughniyah (comandante militar do Hezbollah, morto num atentado em Damasco).

Cinco dias decorridos desde o início dos “raids” aéreos israelitas sobre a Faixa de Gaza, cerca de quatro centenas de mortos e quase dois milhares de feridos palestinianos (muitos dos quais acabarão por engrossar a estatísticas das baixas fatais dadas a precaríssimas condições médicas e sanitárias no enclave) e depois do aumento dos disparos de Qassams[4], surgiu uma primeira proposta de tréguas formalizada pelo Quarteto para a Paz (EUA, UE, Rússia e ONU) mas que Israel não parece disposto a aceitar. Este impasse pode ainda estar a ser influenciado por uma expectativa de melhoria das condições climatéricas que favoreçam a utilização de forças terrestres.

Enquanto isto analistas e comentadores vão dando à estampa as mais variadas observações, sendo de destacar do lado israelita comentários como o de B. Michael, publicado no YEDIOTH AHRONOTH[5] sob o título «Déjà vu in Gaza» no qual chama a atenção para três pontos: “não há muita glória nem bravura em voar sobre uma gigantesca prisão e disparar sobre a população com helicópteros e aviões de caça”, “quase metade das baixas são graduados de uma escola de polícia sem nenhuma ligação com os mísseis Qassam” e “de um lado e do outro apenas ódio, desgosto, dor e sentimentos de vingança resultarão desta operação. Talvez alguém venha também a ganhar alguns lugares no Knesset”, vão no sentido de desmistificar os principais argumentos que fundamentaram a operação CAST LEAD e que Ron Ben-Yishai expõe no artigo «Shock treatmente in Gaza», publicado no mesmo jornal.

Em idêntica linha crítica à acção militar, Gideon Levy comentou no HAARETZ[6], sob o título «The neighborhood bully strikes again» a tendência israelita para o uso excessivo da força: “Mais uma vez, mesmo existindo justificação, a violenta resposta de Israel excedeu toda a proporção e ultrapassou todos os limites da humanidade, da moralidade, das leis internacionais e da temperança”, que nem os jornalistas mais próximos do poder já tentam negar[7] quando comparam a actual acção militar ao modelo “shock and awe” tão caro aos neoconservadores americanos.

A avaliar pelas notícias mais recentes, Israel recusa a proposta de cessar-fogo do Quarteto para a Paz e continua a reforçar o seu dispositivo militar terrestre (blindados e infantaria mecanizada) na expectativa do lançamento da segunda fase da operação, enquanto os líderes mundiais vão tornando públicos os seus espúrios apelos ao fim das hostilidades, ou, cúmulo da hipocrisia, seguem estritamente a posição norte-americana de condenação do lado palestiniano[8] e de apoio a Israel.

Mesmo sem querer defender as acções violentas do lado palestiniano, alguém poderá afirmar em consciência que a única forma para lhes pôr termo é o recurso a um dos mais sofisticados e bem treinados exércitos mundiais?

É evidente que a divisão que grassa entre os palestinianos tem sido explorada, quando não fomentada, por israelitas e pelos seus indefectíveis aliados americanos, e que esta muito tem contribuído para a degradação das condições de vida nos territórios palestinianos, mas é igualmente verdade que Israel tem persistido no tempo com a uma política de puro segregacionismo, recusando até aos seus cidadãos de ascendência árabe alguns elementares direitos de representação e de crítica, de que esta notícia do jornal suíço LE TEMPS, que dá conta da expulsão durante uma sessão do Knesset de dez parlamentares árabes por contestarem a acção militar contra a Faixa de Gaza, é um perfeito exemplo.

Perante todos estes cenários que esperar como futuro para a região? Ainda continuará a haver quem acredite na viabilidade da solução «dois povos - dois estados» quando um deles não apresenta as mínimas condições de existência, pois além de ver o seu território cada vez mais reduzido e fraccionado ainda lhe é oferecido como vizinho um estado que persiste em ver como inimigos todos os que o rodeiam?

Afinal talvez tenha havido algo de positivo em ninguém ter pensado em recorrer à mediação do mais recente Nobel da Paz, sempre se lhe poupou a mancha de um quase garantido insucesso.
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[1] Sobre o conflito israelo-palestiniano ver os “posts”: «CONTRIBUTOS E OBSTÁCULOS PARA A PAZ – I» e «CONTRIBUTOS E OBSTÁCULOS PARA A PAZ – II»; sobre a mais recente iniciativa de paz norte-americana para a Palestina ver: «NO FINAL DA FESTA CAIU A MÁSCARA».
[2] A anterior ocorreu em 2000, quando na sequência do fracasso de negociações em Camp David o então primeiro-ministro, o trabalhista Ehud Barak (actual ministro da defesa na coligação que Ehud Olmert formou), lançou mão desse expediente para tentar contrariar o ascendente eleitoral do então o líder do Likud, Ariel Sharon.
[3] Designação de um sistema de míssil balístico de muito curto alcance (pouco mais de uma dezena de quilómetros) e de reduzida eficácia dada a reduzida precisão, desenvolvido pelo Hamas. Notícias mais recentes referem o uso de mísseis do tipo Grad, de origem russa mas actualmente produzidos em vários países, que em versões mais modernas podem alcançar os 40 km.
[4] Segundo esta notícia do LE MONDE, só num dia foram lançados cerca de uma centena de “rockets” e apenas após o início da acção militar é que se verificou a primeira baixa israelita.
[5] Tabloide de grande difusão em Israel, de pendor sensacionalista e pouco propenso à publicação de sofisticadas análises, cujo nome significa literalmente “Últimas Notícias”
[6] «A TERRA» é o mais antigo jornal israelita; considerado de linha editorial liberal é reputado principalmente pelas suas análises políticas e pela influência que se lhe atribui entre os círculos políticos, governativos e económicos.
[7] A título de exemplo ver a notícia «IAF strike on Gaza is Israel’s version of ’shock and awe’» do HAARETZ
[8] Um exemplo desta posição da administração Bush pode ser lido nesta notícia da TSF.

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