É evidente que este conceito de difusão global da crise deverá sempre ser entendido com as devidas cautelas, na medida em que economias pouco desenvolvidas ou menos expostas aos efeitos do comércio internacional não deverão registar efeitos tão acentuados, nem tão graves, quanto as restantes. É devido a estes vários graus de interligação das economias que os especialistas observam atentamente todas as informações que chegam de economias como a da China, pois o seu abrandamento ou uma eventual entrada em recessão serão sinais mais que evidentes que a crise chegou para ficar durante algum tempo.
O papel da China na actual economia internacional e a sua importância enquanto motor de desenvolvimento, sendo um dos principais países produtores de bens de consumo, não carece de grande explicação e uma vez que a crise iniciada na esfera financeira está a alastrar para a chamada economia real, é cada vez mais observado com especial atenção, até porque este país devido aos excedentes monetários resultantes da sua superavitária balança de pagamentos é igualmente um dos grandes investidores (tomadores) de dívida pública norte-americana.
Mas, curiosamente chegaram notícias interessantes do Líbano – um pequeno país no Médio Oriente que não sendo produtor de petróleo, vivendo uma situação política conturbada e tendo sido recentemente alvo de uma guerra (a invasão israelita ocorrida no Verão de 2006) – apresenta um sistema financeiro com uma invejável saúde e vitalidade[1].
Quem o noticiou foi a insuspeita BBC (o artigo original pode ser lido aqui) através de uma peça da sua correspondente em Beirute que não hesita em iniciar o texto dizendo: «O Mundo pode estar em desagregação, mas Beirute floresce. O país mais conhecido pelas guerras, a agitação e a instabilidade não se limita a sobreviver à crise financeira global, parece estar a crescer graças a ela. Nas caves do Banco Central do Líbano os cofres encontram-se cheios. O dinheiro aflui como nunca, os bancos libaneses anunciam volumes de depósitos recordes e os banqueiros dizem que este é o melhor ano na história financeira do Líbano».
Será isto tanto mais espantoso quando um pouco por todo o lado banqueiros e industriais se queixam amargamente das dificuldades que atravessam, imploram o auxílio dos respectivos governos (os mesmos que ainda há poucos meses eram regularmente acusados de tentativas de interferência e acção nefasta sobre a livre iniciativa) e países (como é o caso do Islândia[2]) dotados de economias particularmente florescentes e bem inseridas nos delicados mecanismos do livre comércio internacional, de governos estáveis e isentos de agitações políticas e sociais, se confrontam com a necessidade de recurso ao auxílio de instituições como o FMI?
A resposta pode ser encontrada no corpo da própria notícia e fornecida em primeira-mão pelo governador do Banco Central, Riad Salameh[3], que garante que a origem do segredo reside no simples facto daquele organismo ter imposto regras conservadoras e severas aos bancos comerciais do país. Começando na imposição da constituição de um volume de reservas obrigatórias da ordem dos 30% dos recursos (isto é os bancos comerciais são obrigados a manter um volume de reservas superiores ao normalmente praticado no resto do mundo), interditando as aplicações em produtos financeiros especulativos ou de alto risco e obrigando os bancos mais frágeis a fundir-se com os mais fortes, quando a crise financeira estalou em Wall Street, Beirute estava preparada para acolher os fundos que nela procuraram refúgio.
Outro exemplo citado na notícia e que deveria ser de leitura obrigatória em todos os conselhos de administração dos bancos é a elevada margem de segurança exigida para a contratação de créditos e uma criteriosa avaliação das garantias associadas a cada operação. Um empresário imobiliário local é citado dizendo: «Isto pode não ser muito bom para os negócios, mas elimina a especulação e mantém os preços controlados».
Se estes critérios prudenciais fossem de utilização genérica no sistema financeiro mundial, em lugar das conhecidas práticas que privilegiam os lucros e dão cobertura às mais desenfreadas loucuras financeiras, mesmo que tivesse ocorrido a crise do “subprime” – algo muito duvidoso porque os clientes de maior risco teriam que dispor de um mínimo de 40% do valor das casas que quisessem comprar – nunca a banca no geral teria sido tão duramente atingida pelo descalabro de algum operador menos escrupuloso (ou mais ganancioso) e a escassez de liquidez que esta ditou não se teria disseminado pelo resto da economia com os efeitos que estamos a começar a conhecer.
Este exemplo, mais que demonstrar a justeza das posições dos que defendem a necessidade de um novo modelo de orientação para o sector financeiro mundial, revela à saciedade que os erros que foram cometidos por “génios” como Alan Greenspan e outros, não só podiam ter sido evitados como essa opção por um sistema financeiro menos orientado para a especulação e o lucro desmedido não teria tido nenhum efeito catastrófico na economia dos respectivos países.
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[1] Nada de demasiado espantoso atendendo ao facto de antes da Guerra Civil Libanesa (1975-1990) o país ter atravessado um período de relativa calma e prosperidade, já então devido em boa parte à actividade bancária que levou a que o país fosse conhecido como a “Suíça do Médio Oriente”.
[2] Ver a propósito o “post” «O PARADIGMA ISLANDÊS».
[3] Riad Salameh, antigo aluno da Universidade Americana de Beirute e governador do Banco central há cerca de quinze anos, foi galardoado em 2006 com o prémio do Melhor Governador do Banco Central, atribuído pela revista Euromoney devido ao seu trabalho durante a crise originada pela invasão israelita nesse ano.
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