Isso mesmo deverá estar implícito nas declarações de Durão Barroso, o presidente da Comissão Europeia, que afirmou não esperar nenhum “milagre” da reunião[1], tanto mais que os interesses em confronto são diversificados e deles dificilmente resultará algo de verdadeiramente tangível.
Assim, enquanto a UE, pela voz de Nicolas Sarkozy, se deverá apresentar como defensora do aumento dos poderes e da intervenção do FMI (na sequência da própria proposta de do director-geral daquela agência), os EUA deverão colocar a ênfase na importância do funcionamento do mercado livre e os países emergentes se mostram particularmente preocupados em ver aumentado o seu peso e representação no FMI e no Banco Mundial, tudo se deverá resumir a um diálogo de surdos e à marcação de nova reunião para depois da tomada de posse do novo presidente americano[2].
As recentes declarações de George W Bush, que não marcará presença na reunião mas não se coibiu de vir a público (talvez pela última vez) em defesa da livre concorrência[3], contribuem tão pouco para o sucesso do encontro quanto sobejamente conhecida divisão entre os europeus. É que se Sarkozy deverá alinhar pelas pretensões de Strauss-Khan (o director-geral do FMI), já o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown, parece mais orientado para a necessidade de concertação de políticas monetárias e fiscais (com o velho princípio da livre concorrência ainda e sempre em vista) enquanto a alemã Angela Merkel desembarcará em Washington muito mais preocupada com as notícias da recessão na Alemanha que com os trabalhos de uma cimeira condenada ao impasse e onde a preocupação principal do BRIC[4] será a de preservarem os fluxos de crédito indispensáveis à manutenção das respectivas economias.
É óbvio que outro dos temas que deverá ser abordado será o do aumento das disponibilidades a atribuir ao FMI; sendo certo que a China e os países produtores de petróleo, principalmente os do Golfo Pérsico, dispõe desses excedentes mas dificilmente os disponibilizaram sem uma profunda revisão do seu papel (e influência) no seio de organizações como o FMI e o Banco Mundial. Mesmo sabendo que os países ocidentais estarão dispostos a abdicar da regra que reserva as direcções a europeus e americanos, também aqui deverá perdurar o impasse pois a exigências dos “doadores” deverão ser maiores.
Uma das mais interessantes questões originada pela actual conjuntura financeira mundial é o facto de à extraordinária escassez financeira das economias ocidentais se contraporem os excedentes acumulados por árabes e chineses e que é fruto da desadequada utilização do dólar enquanto moeda reguladora das trocas internacionais.
Esta aparente contradição – as economias emergentes apresentarem em excesso o que falta às economias ocidentais – resultou, fundamentalmente, de durante décadas se estar a usar a moeda nacional de um país como equivalente geral das trocas internacionais ao abrigo dos termos do Acordo de Bretton Woods, que embora de início previsse um mecanismo de conversão do dólar em ouro (o chamado padrão dólar-ouro) se viu rapidamente ultrapassado quando em 1971 os EUA declaram a inconvertibilidade[5] do dólar.
Esta questão, que durante quase quatro décadas foi tratada como um mero pormenor, está agora a revelar-se como uma verdadeira questão de fundo, mas da qual pouca gente fala. Quando em 1944 os americanos impuseram a aplicação do modelo de funcionamento do sistema financeiro mundial que mais lhes convinha, nomeadamente o uso da sua própria moeda como meio de troca para o comércio mundial, tiveram que aceitar a fixação da regra da respectiva convertibilidade em ouro como mecanismo de protecção. Porém, o maciço recurso à emissão de dólares para suportar os esforços da reconstrução europeia (o chamado Plano Marshall) e japonesa no pós-guerra, uma mais que provável tentação para aumentar a influência (e o poder de compra) da sua economia, o esforço financeiro provocado pelas guerras da Coreia e Vietname e o consequente acumular de déficits conduziu a que em 1971, após uma segunda solicitação de conversão pelo governo francês, a administração americana, então liderada por Richard Nixon, tenha declarado a inconvertibilidade do dólar e imposto o curso livre da sua moeda.
O fim da era das taxas de câmbios fixas (apanágio do Acordo de Bretton Woods e um das razões para a aceitação do papel preponderante do dólar) e o agravamento da tendência para uma cada vez maior emissão de dólares que poderia fazer perigar o seu estatuto de moeda internacional terá sido resolvido graças aos acordos estabelecidos em 1971 e 1973 com a OPEP, ao abrigo dos quais esta aceitava cotar o seu crude exclusivamente em dólares. De uma só penada os EUA resolviam dois problemas: a manutenção da hegemonia do dólar, porque a necessidade dessa moeda para assegurar as indispensáveis importações de petróleo obrigava todos os outros países a negociar com eles, e o acesso a energia a preço quase nulo (no limite o custo da impressão de mais dólares).
Mas, como explica a física, a cada acção sucede uma reacção e em pouco tempo os membros da OPEP começaram a apresentar um tal excedente de dólares que originou que os que eram reaplicados nos bancos e nas economias ocidentais se passassem a designar como petrodólares.
Durante mais algum tempo, cerca de três décadas, tudo parecia correr bem e os EUA conseguiram manter artificialmente o valor comercial do dólar; mas, o acumular de petrodólares, as crescentes fragilidades da economia americana e as tensões político-militares no Médio-Oriente originaram movimentos de oposição àquela divisa. Entre os primeiros a manifestar semelhante intenção esteve o Iraque, então governado por Saddam Hussein, o que para muitos observadores foi uma das razões para a invasão e a sua deposição pelos EUA em 2003, facto que não impediu outros países produtores, como o Irão, de ter iniciado nesse mesmo ano a venda de crude contra pagamentos em euros e reafirmado a intenção de iniciar a cotação oficial nessa moeda. Depois do anúncio feito por Putin de que a Rússia se preparava para iniciar a cotação do crude e do gás natural em rublos e da proposta, recusada, apresentada pelo Irão e pela Venezuela para que a OPEP abandonasse o dólar em benefício do euro, a situação de hegemonia da moeda americana está cada vez mais fragilizada.
Quando a tudo isto acresce ainda a agitação na esfera financeira iniciada em 2007 com a crise do “subprime” e continuada em 2008 com o despoletar da bomba dos produtos derivados, ganha ainda maior ênfase a necessidade do estabelecimento de uma nova ordem financeira mundial, mas face às contradições entre americanos e europeus (com os primeiros a insistirem no sacrossanto primado do mercado e os segundos a apostarem num modelo de mercado regulado e controlado), entre estes e os BRIC (que fundamentalmente querem ajustar o seu peso político à crescente importância económica e assegurar a fluidez dos capitais indispensáveis à manutenção das suas taxas de crescimento), não será a cimeira de Washington que originará qualquer novo consenso com o mesmo nome[6], tanto mais que politicamente os EUA (ainda fortes na dominância do seu dólar) estão profundamente fragilizados pela associação da administração dirigida por George W Bush às causas próximas da actual crise e pela sombra do futuro presidente já eleito.
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NOTA: Apesar de só agora "postado" o texto foi escrito antes do encerramento da Cimeira.
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[1] Ver a propósito as notícias do DIÁRIO ECONÓMICO e do DIÁRIO DIGITAL que referem as declarações que prestou ao Suddeutsche Zeitung.
[2] Embora sustentada numa fundamentação um pouco diversa, veja-se esta notícia do DIÁRIO ECONÓMICO, que também ela confirma a mesma ideia.
[3] As este propósito não deixa de não ser curioso apreciar (e cotejar) o conteúdo das notícias difundidas pela BBC NEWS e pelo DIÁRIO DIGITAL, que até pelos títulos (G20 will seek ways out of crisis e «Não perturbem o capitalismo», adverte George W. Bush) expressam bem as profundas divisões que grassam entre os participantes na cimeira.
[4] Designação utilizada para referir os principais países emergentes (Brasil, Rússia, Índia e China).
[5] O princípio da convertibilidade prevê que uma moeda seja convertida pelo emitente no respectivo valor em ouro; este mecanismo implica que o banco emissor disponha de reservas daquele metal precioso em quantidade suficiente para resgatar as notas que lhe sejam apresentadas para o efeito.
[6] Referência ao chamado Consenso de Washington, conjunto de medidas formulado em 1989 pelos especialistas do FMI, Banco Mundial e Tesouro dos EUA, que viria a constituir a bíblia usada pelo FMI para fomentar as economias dos países em vias de desenvolvimento. Nos termos do “receituário” destacam-se as políticas orientadas para a redução dos gastos públicos e dos impostos, subida das taxas de juro, privatizações, liberalização e desregulamentação dos mercados, precisamente as que hoje são normalmente apontadas como as principais responsáveis pela crise.
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