quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O MITO DE SÍSIFO[1]

Após a provação do grande plano de salvação da banca norte-americana (o cada vez mais célebre Plano Paulson) não têm parado de se fazer ouvir vozes de outros sectores económicos e até públicos, reclamando a intervenção (leia-se um cheque gordo) federal.

Um dos sectores que mais se tem destacado nos EUA neste clamor é o sector automóvel cujos três grandes (GM, Ford e Chrysler) se queixam de fortes quebras nas vendas e da acumulação de fortes prejuízos.

O que os grandes construtores escamoteiam é o facto dos prejuízos remontarem a períodos anteriores à crise e à consequente retracção na procura interna, pois os produtos que fabricam há décadas que deixaram de ser competitivos nos mercados internacionais. Excepções feitas a um ou outro modelo, a indústria automóvel norte-americana, insistindo na produção de modelos energicamente ineficientes e tecnologicamente pouco desenvolvidos, há mais de trinta anos que não consegue concorrer com os competidores europeus e japoneses (a que agora há que acrescentar os coreanos e indianos).

A confirmar-se que parte[2] do plano de 100 mil milhões de dólares para relançamento da economia norte-americana, proposto pela maioria Democrata do Congresso[3], será aplicado naquele sector, estaremos perante mais um manifesto atropelo às tão propaladas e defendidas regras da livre concorrência, tão caras aos políticos americanos (quando lhes convém) e a mais um manifesto prémio à incompetência., na linha daqueles que vimos serem distribuídos pelo sector financeiro norte-americano.

Nestas matérias os governos europeus, depois dos precedentes apoios a alguns bancos em maiores dificuldades, (incluindo o português com o gravíssimo precedente da nacionalização do BPN na sequência da mais que óbvia gestão fraudulenta) não poderão contestar o que se afigura como um óbvio subsídio à indústria automóvel americana e um total desvirtuamento das condições de concorrência num sector onde a indústria europeia (e asiática) dispõe de óbvias vantagens, embora também já registe os primeiros efeitos da retracção da procura.

Num mais que óbvio aproveitamento da onda, também as grandes indústrias europeias pedem apoio aos Estados, embora os centrem em medidas de natureza orçamental (aumento dos investimentos públicos e descida dos impostos), creditícia (facilidades de acesso ao crédito e menores taxas de juro) e no aumento da liberalização do comércio.

Enquanto se aguarda o anúncio de plano comunitário (o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, já adiantou a ideia de um “estímulo fiscal” a ser coordenado entre os 27 estados-membros) a situação do sector automóvel na UE também não se apresenta muito animador.

Demasiado habituado a períodos de grande crescimento da procura, o sector automóvel europeu terá apostado em estratégias de “marketing” agressivo visando a conquista de novos compradores, a par com uma política de rápida obsolescência dos seus produtos (provocada pela constante substituição de modelos sem que estes apresentem evidentes melhorias) mas confrontados agora com a redução da procura começaram já por lançar mão da estratégia da redução dos dias de trabalho, enquanto pressionam os diferentes governos europeus a copiar a iniciativa americana.

Tal como no resto da Europa, também em Portugal se sucedem os anúncios da interrupção da produção[4] nas várias unidades estrangeiras instaladas no país (e, por arrastamento, nos sectores que operam a montante daquelas unidades), como são o caso da Autoeuropa, que produz viaturas para a Volkswagen e a Seat, da Renault e da fábrica de pneus da Continental Mabor.

Em resposta à decisão americana, Jean-Claude Juncker, o presidente do Eurogrupo, defendeu numa entrevista ao jornal alemão Bild (que o DIÁRIO ECONÓMICO refere aqui) que se "...o governo norte-americano salva a Ford, a General Motors e a Chrysler da falência, nós não podemos permanecer como simples espectadores e deixar os construtores europeus sozinhos".
A questão ultrapassa em muito o simples problema da concorrência, pois nenhum político, seja qual for a sua nacionalidade, fica indiferente perante o facto das indústrias automóvel e de componentes empregarem na Europa mais de 12 milhões de trabalhadores e dos efeitos catastróficos que poderá ter uma muito provável política de despedimentos.

Embora delicada, a situação na Europa não é nada que se compare com a inicialmente descrita nos EUA[5].

É que neste país, a história recente demonstra-o, o sector da indústria automóvel há muito que deixou de ser viável por falta de uma política de investimento na pesquisa e desenvolvimento de modelos energicamente mais eficientes e a sua sobrevivência tem sido assegurada pelas medidas protectoras que Washington vai criando por forma a proteger-lhes o mercado doméstico.

Agora, sustentados no apoio dos políticos cujas campanhas têm financiado generosamente, os CEO da GM, da Ford e da Chrysler entendem o contrário e, pior, transformando os contribuintes em Sísifo pretendem obrigá-los a carregar montanha acima a sua incompetência.

Qualquer que seja o desfecho deste “romance” esta imagem será incontornável e nem a “cosmética” que a Câmara de Representantes agora veio propor[6] ou outras[7] mudarão aquela realidade.
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[1] Na mitologia grega, Sísifo, filho do rei Éolo, da Tessália, e Enarete, era considerado o mais astuto de todos os mortais; foi o fundador e primeiro rei de Ephyra, depois chamada Corinto, que governou durante vários anos. Mestre da malícia e dos truques, entrou para a tradição como um dos maiores ofensores dos deuses, pelo que após a sua morte foi por estes condenado a rolar uma grande pedra de mármore até o cume de uma montanha, mas sempre que estava quase a alcançar o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a chamar-se "Trabalho de Sísifo". (adaptado de Wikipédia)
[2] A atestar por esta notícia da BBC, o valor deverá ser da ordem dos 25 mil milhões de dólares.
[3] Ver esta notícia do DIÁRIO ECONÓMICO.
[4] Veja-se, por exemplo, esta do JORNAL DE NEGÓCIOS.
[5] Salvo o caso da alemã Opel, marca subsidiária da americana General Motors e naturalmente afectada pela calamitosa situação financeira da casa-mãe, que segundo o DIÁRIO ECONÓMICO precisará de cerca de mil milhões de euros, os restantes fabricantes europeus ainda não registam problemas semelhantes.
[6] Segundo esta notícia do DIÁRIO ECONÒMICO a porta-voz da maioria Democrata, Nancy Pelosi, já fez saber que a aprovação do plano de socorro implicará a necessidade de adopção de reformas por parte do sector automóvel norte-americano.
[7] A título de exemplo veja-se este artigo do FINANTIAL TIMES onde o autor defende a necessidade da fusão entre a GM e a Chrysler como parte de um programa de recuperação do sector.

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