domingo, 14 de janeiro de 2007

EM FRENTE COM O DIÁLOGO DA BALA

Foi finalmente revelado na passada quinta-feira o plano Bush para acabar com a guerra no Iraque.

Poderia tratar-se do tema de mais um programa de humor, mas infelizmente não! Ao que tudo indica George W Bush pretende mesmo resolver o “problema iraquiano” com o envio de mais 21.500 soldados. Trata-se de um plano que encaixa perfeitamente no esquema mental daqueles bebedores inveterados que recomendam o tratamento de uma ressaca com a mesma dose de bebida que a originou.

Num momento em que o reconhecimento do erro que foi a invasão do Iraque (publicamente assumido por George W Bush no discurso de apresentação da nova estratégia) exigiria que até as mais brutais asneiras fossem enfrentadas de forma pragmática e realista, sucede o contrário; com este plano a administração americana não só insiste no seu total irrealismo como peca ainda por uma total ausência de pragmatismo.

Se esta tivesse ouvido os seus especialistas e conselheiros militares e de segurança, ao invés dos inflamados discursos dos neoconservadores e das suas teorias do caos construtivo, a opção pelo combate ao terrorismo – admitindo que tudo, mas rigorosamente tudo, o que aconteceu em 11 de Setembro de 2001, foi obra da Al-Qaeda – teria passado:

- por desencadear acções militares orientadas para a destruição dos campos de formação e doutrinamento da Al-Qaeda;

- por desencadear acções policiais para a detecção e o desmantelamento das redes de operacionais;

- pelo desenvolvimento de estratégias visando a eliminação das suas fontes e redes de financiamento;

- pela acção diplomática no sentido de eliminar ou reduzir os apoios disponibilizados por países e governos que a terminologia neoconservadora designa por estados-párias.

Estas acções teriam registado, mais ou menos, o apoio da generalidade da comunidade internacional e deveriam ter-se já hoje traduzido numa significativa melhoria das condições de segurança global. O seu sucesso seria tanto maior quanto as medidas mais duras e repressivas fossem acompanhadas de outras de carácter económico visando a melhoria das condições de vida das populações entre as quais os grupos mais radicais encontram terreno fértil para expandir os seus ideais.

Ao invés disto, após o ataque ao Afeganistão – acção militar que se saldou por uma quase total ausência de resultados práticos, na medida em que a substituição do regime fundamentalista dos taliban por um regime fantoche onde pontifica o ocidentalizado Karzai, mas o poder continua a ser exercido pelos “senhores da guerra” locais e a estrutura de comando da Al-Qaeda terá permanecido intacta – a administração Bush optou por se lançar numa injustificada campanha militar contra o Iraque de Saddam Hussein, numa estratégia que desde a primeira hora mereceu grandes reservas por parte da estrutura militar norte-americana e que para a generalidade da população mundial se assemelhava mais a uma vingança pessoal (o pai Bush, nos tempos que passou pela Casa Branca, pareceu incapaz de eliminar Saddam Hussein) que a qualquer outra coisa.

Desde as primeiros ameaças de invasão do Iraque que algumas vozes, mais ou menos esclarecidas, no próprio interior dos EUA foram manifestando as suas dúvidas sobre a utilidade de semelhante estratégia como política de combate eficaz ao terrorismo. Submetidas pelo peso das estruturas internas ou submissas aos ditames das hierarquias instituídas (no caso das cadeias intermédias de comando no Pentágono) demitindo-se em sinal de protesto (como fizeram alguns dos conselheiros mais assertivos, caso de Richard Clarke que foi membro e líder do Departamento de Segurança Interna sob as administrações de George Bush, Bill Clinton e George W Bush), ou incapazes de resistirem às campanhas de difamação orquestradas pelos neoconservadores, as vozes de oposição foram sendo silenciadas e a ideia de invadir o Iraque foi-se assumindo como o leitmotiv da guerra contra o terrorismo.

Cumprido o desiderato de depor Saddam Hussein mas absolutamente incapazes de compreenderem a dinâmica de oposição interna à sua presença naquele território, os EUA foram-se atolando numa guerrilha entre facções políticas, religiosas e nacionalistas da qual continuam sem entender a essência (nem fazer qualquer esforço nesse sentido) nem sequer aplicar uma estratégia militar de sucesso. Refira-se a propósito que nos primeiros planos elaborados pelos estrategas do Pentágono se referia a necessidade de utilizar uma força de invasão militar da ordem do meio milhão de soldados, mas que as pressões políticas e o permanente receio de um elevado número de baixas acabaram por conduzir ao lançamento do assalto com apenas ¼ das forças julgadas necessárias.

Sem a possibilidade de contarem no Iraque com o auxílio de forças aliadas internas (no caso do Afeganistão a maior parte dos combates de infantaria foram assegurados pelas forças da Aliança do Norte, grupo que se opunha aos taliban, limitando-se as forças americanas às acções das forças especiais), graças à política e às acções militares levadas a cabo por Saddam e pela Turquia contra os curdos, os generais americanos no terreno foram apelando à desistência das tropas e dos comandantes iraquianos até terem alcançado Bagdad. Tomada a capital e dissolvido o governo de Saddam e do partido Baas, uma das primeiras medidas tomadas foi a da dissolução do exército iraquiano e a da expurgação de todos os militantes daquele partido do aparelho de estado. Este vazio total e o “assalto” aos lugares de poder que com o beneplácito do ocupante foi realizado pela maioria xiita, empurrou a minoria sunita (base tradicional de apoio de Saddam e do Baas) para uma resistência que pouco a pouco se foi fortalecendo.

Outro exemplo da enorme falta de capacidade para lidar com a situação foi a execução de Saddam Hussein, a qual ocorreu no final de 2006 após um rápido julgamento por um tribunal iraquiano que desde a primeira hora foi internacionalmente reconhecido como muito pouco justo e isento e durante o qual aconteceu um pouco de tudo (desde a substituição de um juiz julgado demasiado brando até à morte de vários advogados de defesa) a que se seguiu a recusa em tempo recorde de um apelo apresentado pela defesa; Saddam foi executado em muito menos tempo que o que demora a escrevê-lo e transformado de ditador sanguinário em mártir árabe.

Num Iraque a ferro e fogo, onde a administração Bush pouco ou nada tem feito para acalmar a luta pelo poder, iremos assistir a um reforço do contingente americano, numa fase da vida política norte-americana onde as dificuldades do presidente perante um Congresso hostil (dominado pelo partido Democrata após as eleições de Outubro passado) deverão crescer à medida que se aproxima o fim do seu mandato.

Contrariando a opinião pública americana, que cada vez menos se mostra favorável ao prolongamento da guerra no Iraque, a opinião de inúmeros políticos e analistas, a do Congresso e a da própria comissão que nomeou para estudar soluções para a situação (a Comissão Baker) sobre cujo relatório já aqui me pronunciei, George W Bush persiste na ideia de alcançar uma vitória militar no Iraque.

Esta teimosia poderia ser benigna caso estivesse em disputa um qualquer torneio desportivo local, mas aquilo com que a equipa presidencial americana está a jogar directamente é com a vida de milhões de cidadãos árabes em especial e com a de todos nós em última instância.

Com a persistência na aplicação de estratégias desajustadas (pelo menos a julgar pelos objectivos anunciados) e com a teimosia própria dos alienados George W Bush não ficará para história apenas como o presidente que não foi eleito mas também como aquele que contribuiu em muito para legar às gerações futuras um Mundo mais instável, perigoso e muito menos seguro que o que recebeu do seu antecessor. Como se não bastasse a estratégia ruinosa de querer implantar modelos de democracia ocidental pela força das armas, em regiões do globo que tradicionalmente se regem por outros valores, ainda insiste em englobar problemáticas tão diversas quanto o conflito israelo-palestiniano, a radicalização do islamismo e o controlo e o acesso às fontes de hidrocarbonetos numa única problemática – a da guerra ao terrorismo.

Incapazes de reconhecerem as diferenças entre as várias correntes do islamismo, enredados numa política de apoio declarado e faccioso às manobras que os partidos da direita israelita têm vindo a realizar para alimentar o ódio e a divisão entre palestinianos e israelitas e entre os palestinianos, os membros desta administração americana têm vindo a alimentar crescente oposição até em sectores onde até há pouco tempo a sua influência era notável.

Reduzindo a cada vez menos o capital de confiança de que dispunham junto de muitos dos governos árabes mais moderados (muitos dos quais são alvo de críticas e atentados por organizações extremistas) os EUA correm um risco crescente de verem resumida a sua influência ao seu enorme poderio militar. O mesmo autismo e cegueira política têm sido aplicados relativamente ao conjunto dos países que constituem os seus tradicionais aliados na cena internacional, não sendo por isso de estranhar a deterioração das relações EUA-UE (por muitos esforços que deste lado do oceano se façam para escamotear esta realidade), nem o agravar de tensões com a Rússia e a China.

Englobando no mesmo conjunto problemáticas tão diversas como a luta contra a Al-Qaeda, a “democratização” do Iraque e a transformação da Coreia do Norte (e possivelmente do Irão) em potência nuclear, a actual administração americana com a sua atávica incapacidade de compreender os “outros” e uma insaciável sede pelo controlo mundial do petróleo, poderá estar a conduzir-nos a todos para aquilo que julgámos resolvido com a queda do Muro de Berlim – um conflito de dimensão global.

Sem comentários: