domingo, 10 de dezembro de 2006

CURIOSIDADES DO RELATÓRIO BAKER

Os EUA voltam a oferecer-nos um dos grandes acontecimentos da semana. Desta vez tratou-se da apresentação oficial do relatório do Grupo de Estudos para o Iraque, comissão bipartidária, também conhecida por “Comissão Baker” por um dos seus presidentes ser o republicano e ex-secretário de estado James Baker.
Já em anteriores ocasiões, como a propósito da redefinição de fronteiras no Médio Oriente e sobre a oportunidade de uma política de diálogo, me referi a esta comissão e às possíveis conclusões que o seu trabalho apresentaria. Tal como então previ o relatório não defende nem a retirada nem o reforço da presença norte-americana no Iraque; em poucas palavras poderá ser este o resumo do extenso documento:
- a situação no Iraque é grave e está a deteriorar-se;
- se a situação se continuar a deteriorar o governo iraquiano poderá entrar em colapso e provocar uma catástrofe humanitária;
- os EUA devem abrir uma via diplomática para construir um consenso que conduza à estabilidade do Iraque e da região, nele incluindo os países vizinhos;
para alcançar os seus objectivos no Médio Oriente, os EUA terão de abordar e resolver a questão israelo-árabe;
- o empenhamento americano na questão israelo-árabe deve incluir conversações directas entre Israel, o Líbano, os Palestinianos (que reconheçam o direito à existência de Israel) e a Síria;
- os EUA devem reforçar o apoio político, económico e militar ao Afeganistão, incluindo meios que ficarem disponíveis com a retirada do Iraque;
- a principal missão dos EUA no Iraque deve ser o apoio ao exército iraquiano;
o governo iraquiano precisa de mostrar, ao seu povo e ao americano, que merece o lugar que ocupa;
- até ao primeiro trimestre de 2008, em função da evolução da situação no terreno, as forças americanas dispensáveis para a protecção deverão ser retiradas do Iraque;
- os EUA não devem assumir o compromisso de conservar um grande número de tropas no Iraque;
que no essencial aponta para a necessidade de substituir a abordagem militar pela diplomática como forma de permitir uma retirada digna para os americanos.
Para quem queira ler mais além, fica a ideia de que aos subscritores do documento terá faltado a coragem para escrever o que muitos dizem há muito sobre a política externa norte-americana. Sempre dentro do conceito do “politicamente correcto”, James Baker, Lee Hamilton e a equipa de conselheiros especiais prestou-se a um papel de “advogado do diabo”muito macio; tão macio que nunca questiona a razão principal para o “atoleiro” em que se transformou o Iraque: O QUE FOMOS NÓS LÁ FAZER?
Ressalvada esta questão, não deixa de não ser paradigmático o facto de entre as razões para o desenvolvimento da violência o relatório mencionar, por esta ordem «…a insurgência sunita, a violência xiita e os esquadrões da morte, a Al-Qaeda e a criminalidade generalizada». Contrariamente à administração Bush que depois de desmascarada a tese das armas de destruição em massa de que Saddam Hussein disporia, passou a usar e abusar do chavão do combate ao terrorismo e à Al-Qaeda para fundamentar a invasão do Iraque, o relatório da “comissão Baker” atribui à convulsão política e religiosa originada com o derrube do regime de Saddam a principal fonte da instabilidade actual no Iraque.
Igualmente curiosa é a proposta do relatório de que ao governo iraquiano seja exigida maior quota-parte de acção no combate contra os “rebeldes”; em declarações posteriores até já se começou a falar em aplicar sanções ao governo de Al Maliki caso este não obtenha resultados naquele combate.
Ou a vergonha é algo que deixou de existir para os lados de Washington ou as dificuldades americanas no Iraque devem ser bem maiores do que podemos imaginar para se ter chegado ao cúmulo do cinismo que é a de propor castigar o governo e o povo iraquiano por uma situação de que os EUA são os principais responsáveis; ou não foram eles que invadiram o país e derrubaram o regime de Saddam?
Ganham assim maior importância e novos contornos as recentes sondagens realizadas no Iraque que dão conta da insatisfação das populações perante o actual estado do país e do facto de os tempos de Saddam serem lembrados com saudade.
Ás primeiras reacções de George W Bush ao conteúdo do relatório, que foram no sentido de lhe atribuir alguma importância e a garantia de uma “leitura atenta”, começam a suceder-se outras, como a da recusa em quaisquer conversações com a Síria e o Irão e mais recentemente as declarações da secretária de estado Condoleezza Rice que mantém e reafirma as teses essenciais que conduziram à invasão do Iraque. Perante isto até a posição aparentemente moderada e conciliadora do novo secretário de estado da defesa, Bob Gates, soa a falso.
Neste contexto quem, de boa fé, poderá esperar alguma alteração significativa na política externa americana?
Mesmo que a nova distribuição de poder nos EUA, com os republicanos na Casa Branca e os democratas na Câmara de Representantes e no Congresso, possa vir a introduzir alguma moderação nos dois últimos anos de mandato de George W Bush, dificilmente isso se traduzirá em significativa alteração no cenário de conflito que se vive no Médio Oriente. Mesmo que se admita como mais remota a hipótese da crise nuclear iraniana se concluir por um ataque norte-americano (atenção que o reactor Osíris iraquiano foi bombardeado pela aviação israelita e então essa acção só ocorreu com o conhecimento prévio e o beneplácito americano, algo que se pode voltar a repetir) isso pouco contribuirá para a pacificação de uma região onde os interesses (e os milhões de dólares) investidos falam mais alto.
Enquanto nos EUA se continuam a esgrimir relatórios e trocas de declarações entre políticos, enquanto na Europa cada estado vai anunciando boas intenções e apelando, consoante os seus próprios interesses no Médio Oriente (ou simplesmente em agradar aos americanos), no Iraque e na Palestina continua-se a morrer sem que se vislumbre utilidade, ou apenas um fim à vista, para tudo isto.
Dos locais onde as grandes decisões são tomadas e onde os efeitos das mortes são avaliados em dólares ou na subida das cotações do “crude” e dos índices bolsistas, apenas se pode esperar que tudo continue como até aqui. Tanto mais que os lucros não têm parado de crescer…

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