Apesar da respectiva campanha apenas agora ter começado, muito tem sido escrito e dito a propósito da questão. Há dias escrevia Maria José Nogueira Pinto no DIÁRIO DE NOTÍCIAS que a «...questão do aborto não é preta nem branca», esquecendo talvez que a questão a referendar não é sobre o aborto mas sobre a possível alteração do quadro legal português que persiste em criminalizar aquela prática.
A pergunta que formalmente surgirá nos boletins de voto:
Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?
pode ser alvo de várias interpretações e não tem faltado quem venha a público contribuir para a confusão. Nu e cru, estou em crer que ninguém responderá ser favorável à prática do aborto, pelo menos enquanto método contraceptivo (papel que muitas vezes lhe é atribuído pelos indefectíveis do NÃO), como ninguém concordará com a aplicação da pena de prisão que o nosso código penal fixa para aquele crime.
O cerne da questão, que muitos persistem em escamotear, prende-se precisamente com a condenação cível em que incorrem as portuguesas que tenham a infelicidade de serem denunciadas por um qualquer cidadão mais zeloso da moral e dos bons costumes...
Àquelas cidadãs de pouco ou nada servirão argumentos como o de que não existem mulheres efectivamente confinadas às quatro paredes de uma prisão pela prática de aborto, pelo menos enquanto isso resultar apenas do bom senso dos juízes que as julgarem.
Que sociedade pode funcionar alicerçada num quadro penal que prevendo sanções, espera que os magistrados encarregues da sua aplicação demonstrem a benevolência adequada às suas expectativas?
Se ao que parece existe um consenso generalizado contra a penalização do aborto, porquê insistir na ideia de que a sua prática, enquanto acto legal, deve continuar a ser negada?
Talvez na ausência de melhores argumentos (e porque no fundo acabarão por também comungar do sentimento generalizado contra a penalização do acto), os indefectíveis do NÃO persistem no argumento do primado da defesa da vida – considerando que o embrião será desde logo uma forma autónoma de vida, algo que a avaliar pela opinião do Conselho Inglês de Bioética que propõe que aos nados com menos de 22 semanas de gestação não sejam aplicados cuidados médicos devido à reduzida taxa de sucesso (cerca de 1%), carece comprovação científica – em detrimento da vontade da mulher.
Aqui – a questão do livre arbítrio – parece radicar o busílis da questão.
Enquanto os defensores do SIM entendem o primado da vontade da mulher, os do NÃO parecem mais apostados na defesa do “elo mais fraco”, como se o recurso ao aborto seja algo que qualquer mulher encare com leviandade ou, pior, como se as mulheres não dispusessem de capacidades para decidir sobre algo tão pessoal e íntimo como a interrupção de uma gravidez.
Talvez o que mais afaste os defensores do NÃO seja o velho slogan do “direito sobre o seu próprio corpo” que muitos dos seus opositores reclamam (slogan profundamente feminista, logo aterrorizante para os conceitos mais conservadores) e lançam como um grito de liberdade. Se a estes temores adicionarmos o peso que a Igreja católica ainda hoje mantém na sociedade portuguesa, estará encontrada a resposta para o “fervor” que muitos dos opositores à despenalização do aborto exibem.
Longe de querer negar seja a quem for o direito à sua opinião (o tal livre arbítrio) e à defesa dos seus princípios (sejam eles de natureza ética, moral ou religiosa), não posso deixar de esperar uma radicalização em torno da discussão do tema do referendo. Os primeiros sinais já se começaram a tornar evidentes desde que os opositores à despenalização se organizaram em movimentos que tomaram por “leit motiv” a defesa da vida, como se da vitória do SIM resultasse um quadro social segundo o qual TODAS AS MULHERES FOSSEM OBRIGADAS A ABORTAR.
Perante esta evidente deturpação da realidade (o mais correcto seria designá-la por abjecta manipulação) e pelo quase inevitável desfilar de imagens (quem não recebeu já inúmeros mails onde abundam fotografias de “fetos maravilhas” e de indescritíveis resultados de abortos?) o período da campanha voltará a não cumprir o seu objectivo principal – esclarecer e informar os eleitores sobre o teor da questão em referendo – deixando-lhes a liberdade de avaliar e escolher em consciência a resposta que entendem como melhor.
A confirmarem-se as minhas piores expectativas corre-se o risco de na noite de 11 de Fevereiro voltarmos a obter um resultado inconclusivo.
E não terá sido isto o que pretenderam aqueles que lançaram esta iniciativa?
Porque é que, tratando-se a questão em escrutínio de um mero problema de natureza jurídica, não procedeu a Assembleia da República à alteração legal?
Porque é que os deputados, sempre tão ciosos na defesa do importante papel legislador, optaram agora (ou, ainda pior, deixaram que alguém optasse por eles) por remeter aos eleitores o ónus da decisão?
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