quarta-feira, 13 de maio de 2009

LIÇÕES DA GRANDE DEPRESSÃO

Desde que Vítor Bento defendeu[1] a aplicação de uma política de redução de salários[2] – justificando-a com a ideia de que o problema da crise nacional é diferente da crise global, pois aquela é anterior e fruto de um desequilíbrio entre a procura e a capacidade produtiva – tanto bastou para que se avolumassem as vozes em torno do que começa a tornar-se uma espécie de novo mantra dos ideólogos neoliberais nacionais – a crise resolver-se-á mediante a aplicação de uma política de redução dos salários.

Depois do fenomenal descrédito em que caiu o dogma da infalibilidade do mercado (e da mão invisível que tudo regularia) eis que os seus grandes defensores começam a ressurgir dos recônditos onde se acoitaram algum tempo, como é o caso de César das Neves que agora regressa com umas pretensas «Lições da Grande Depressão», que mais não são que uma despudorada tentativa de afastar o ónus da resolução da crise do lado da oferta.

Chamo-lhes pretensas lições pois o seu autor prefere recordar da Grande Depressão o que define como o “grande mistério” da época – como é que se explica que «…perante uma queda tão acelerada de preços e eliminação maciça de empregos, as remunerações tenham demorado tanto a ser reduzidas»[3] – a lembrar que aquela, como a actual e a generalidade das outras, teve início num simples processo de especulação que se avolumou até à implosão. Beatificamente vai louvando as autoridades que «[a]pesar das críticas infantis de tantos acerca dos "milhões para a banca" [...] estão conscientes da necessidade urgente de sustentar as instituições financeiras que, por muito irresponsáveis que fossem na euforia anterior, continuam a ser pilares fundamentais da sociedade» mas, qual fero diácono, prontamente zurze os trabalhadores que não têm o emprego em risco como principais responsáveis pela manutenção dos elevados salários que são praticados no país, lançando para as profundezas do seu silêncio (e, esperará ele, para o conhecimento geral) o facto, hoje mesmo noticiado pelo DN, de que «Portugal é 7º a contar do fim nos salários da OCDE».

Defendo o mesmo tipo de solução, embora partindo do que se me afigura como uma perspectiva correcta sobre a realidade económica portuguesa – Portugal vive uma situação de crise económica bem anterior ao eclodir da crise internacional e que esta se deverá a um desajustamento entre a procura interna e a oferta –, Vítor Bento explica o desequilíbrio pelo excesso de procura face à capacidade produtiva interna, que originou o aumento das importações e do endividamento externo (4,7% do PIB em 2008 contra 1,6% em 2004), o que o leva a concluir que o «…crescimento da procura interna teve assim que recorrer ao aumento daquela dívida (8% do PIB por ano, em média), criando um círculo vicioso de empobrecimento»; não obstante afirmar um pouco mais adiante que «[s]eria de esperar que, com a procura persistentemente acima da oferta ao longo dos últimos 10 anos, o potencial produtivo do país se tivesse expandido. Não foi o caso [...] porque se investiu mal, baixando a produtividade. De facto, registando a mais baixa eficiência no espaço comunitário, esse investimento fez diminuir a produtividade do capital em 11.5%, entre 1999 e 2007. Por isso e apesar de a produtividade do trabalho ter aumentado 7.8% (muito pouco!), a produtividade total dos factores manteve-se praticamente estagnada (+0.5%), pelo que o (mau) investimento foi o principal responsável pelo empobrecimento relativo em que temos vivido», ainda assim defende a necessidade de «…aumentar a competitividade da economia, reduzindo os custos de produção das empresas e incentivando os investimentos que aumentem a produtividade e a capacidade de oferta»[4].

Perante este quadro a proposta lógica de actuação deveria passar pela mudança do paradigma dos investimentos públicos de fachada (entre os quais os tais não reprodutivos a que Vítor Bento se refere) e pela aplicação de políticas orientadas para o apoio ao consumo interno e aos sectores económicos orientados para esta procura[5], mas, pelo contrário, quer Vítor Bento quer César das Neves advogam uma política de redução dos custos da empresas (leia-se redução de salários) como via para a recuperação da depauperada economia nacional.

Quer um quer outro não adiantam qualquer explicação para a manifesta incongruência que consiste em apoiar as empresas e os empresários que por falta de iniciativa, de visão ou de capacidade financeira não escolheram os sectores de actividade mais adequados para o crescimento do produto nacional, nem produzem uma única reflexão sobre o absurdo que constitui o actual sistema financeiro, absorvedor de crescentes recursos públicos mas manifestamente incapaz de transmitir esses mesmos recursos para a área produtiva enquanto continua a lucrar com as crescentes margens de intermediação.

Na mesma linha de apreciação se pode inserir a opinião de João Ferreira do Amaral, que num artigo sobre o assunto[6] manifesta-se contra a redução dos salários, não pelo muito de inconsequente (salvo no inevitável aumento dos resultados das empresas) que terá sobre o conjunto do tecido económico uma ainda maior redução da procura, mas sim porque «…a descida dos salários poderia agravar ou criar novos desequilíbrios. Com efeito, dado o grande endividamento das famílias e das empresas, uma redução dos salários nominais iria provocar uma redução geral de preços que levaria as dívidas, em termos reais, a subirem e consequentemente a pôr em causa a solvência de muitas famílias e empresas» e «…iria originar também uma redução das receitas da Segurança Social, o que, ou faria surgir um saldo negativo no sistema, ou obrigaria a uma redução nominal das pensões de reforma».

Tudo isto me leva a concluir que em matéria de “lições” sobre a crise e sobre as formas de melhor a ultrapassar, continua por surgir entre a elite que nos dirige (e entre os que a aconselha[7]) quem de forma objectiva e sem subterfúgios aponte uma via de clara ruptura com os modelos de pensamento clássico e liberal; alguém que sem pejo aponte a premente necessidade de reorientar as políticas económicas para a melhoria das condições de vida das populações, a necessidade de novas regras no campo financeiro que proporcionem o retorno do dinheiro à esfera da circulação real da economia mediante o regresso da emissão de moeda à esfera pública e coloquem um travão eficaz às práticas de pura especulação financeira.
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[1] Ver o artigo «Dieta de sal» que o ECONÓMICO publicou.
[2] Oportunamente comentada no “post” «CANTOS NOVOS, RUMOS VELHOS».
[3] Citado do já referido artigo «Lições da Grande Depressão».
[4] Ver o já referido artigo «Dieta de sal».
[5] De acordo com esta notícia do DN, durante a sua passagem pelas Conferências do Estoril, Joseph Stiglitz defendeu que não será fácil que as exportações possam assegurar o papel de motor de recuperação das economias.
[6] O artigo referido chama-se «A redução dos salários» e foi hoje publicado pelo ECONÓMICO.
[7] Importa não esquecer que César das Neves e João Ferreira do Amaral foram conselheiros de dois dos primeiros-ministros que durante as últimas décadas mais tempo governaram o país, respectivamente Cavaco Silva e Mário Soares.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

HUGO PRATT VOLTOU

A leitura de um suplemento do “Corriere della Sera” de 30 de Abril[1], que trazia uma notícia sobre a recente publicação de um trabalho inédito de Hugo Pratt – nem mais nem menos que a uma adaptação de Sandokan, a imortal personagem criada por Emílio Salgari[2] – que me despertou a atenção e pouco tardou a que iniciasse a sua procura pelas livrarias.

Esta obra, com capa de Patrizia Zanotti (habitual colorista das obras de Pratt) e de que aqui deixo uma reprodução

foi iniciada na década de 70, permanece inacabada, junta o traço de Pratt à adaptação do texto da responsabilidade de Mino Milani e apresenta além da inegável qualidade do traço de Pratt características que a tornam particularmente importantes, como sejam a evidente proximidade com Corto Maltese (ambos são marinheiros e em comum revelam ainda um forte sentido de luta pela justiça e liberdade) e uma claríssima distinção da figura criada em Hollywood para Sandokan, pois Pratt não esquece nem mistifica a origem do seu “herói” malaio (e não indiano).

Julgada definitivamente perdida e reencontrada há cerca de um ano por Alfredo Castelli (uma das maiores autoridades mundiais em questões de Banda Desenhada, autor prolixo de guiões e criador de figuras como Martin Mystère, o detective do impossível), nunca terá sido acabada pela conjugação de múltiplas vicissitudes, das quais se poderão destacar duas: o facto de Pratt dedicar cada vez mais tempo ao crescentemente famoso Corto Maltese e às mudanças ocorridas no “Corrieri dei Picolli” (publicação destinada às camadas mais jovens) que ditaram a mudança de nome para “CorrierBoy” e a saída da sua redacção dos seus principais responsáveis e amigos de Pratt.

Saúda-se agora o regresso de Hugo Pratt[3], no seu melhor estilo – a preto e branco – e fazendo recordar outras obras literárias que também adaptou para Banda Desenhada, como “A Ilha do Tesouro”, de Robert Louis Stevenson[4] e as lendárias aventuras de Simbad, o Marinheiro, incluídas na colectânea de contos persas “As Mil e Uma Noites”.

Completo ou não, qualquer trabalho de Pratt deve merecer sempre a melhor atenção e o esforço para o adquirir.
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[1] Refira-se que o JN e o PUBLICO difundiram idêntica notícia.
[2] Emilio Salgari (1862-1911) escritor italiano, autor de vários livros mas cuja notoriedade resultou principalmente da criação da figura de Sandokan, que o tornou mundialmente famoso como autor de literatura de aventuras. As figuras de Sandokan, um pirata empenhado na luta contra a ocupação inglesa e holandesa, e de Yannez têm sido companhia e estímulo para muitas gerações de jovens.
[3] Para já apenas em Itália, pois a edição francesa não deverá ocorrer antes do Outono e de outras nem se fala.
[4] Robert Louis Stevenson (1850-1894), natural da Escócia, engenheiro de formação, notabilizou-se como escritor, sendo “ A Ilha do Tesouro” e “O Médico e o Monstro” as suas obras de referência.

domingo, 10 de maio de 2009

PRECISARÁ A DEMOCRACIA OCIDENTAL DE SER REINVENTADA?

Esta é uma pergunta que de forma directa ou sub-reptícia encontramos de quando em vez em muitos artigos de opinião.

A sua actualidade será tanto maior quanto até um ou outro político de quando em vez a coloca, facto que encaro sempre com enormes reticências, pois por princípio aqueles poderão ser os menos beneficiados pelo debate.

Ainda que possa ser injusto incluir todos os políticos numa mesma classificação (cada vez menos abonatória), o facto é que os exemplos que diariamente surgem favorecem este tipo de generalização.

Quando parecem cada vez mais distantes os tempos em que víamos surgirem líderes com um mínimo de carisma e de convicções (mesmo que passíveis de crítica ou de frontal desacordo) e os que hoje disputam o poder se resumem a figuras de segundo ou terceiro plano e, pior, desprovidas da mais básica das qualidades – a honestidade intelectual e a disposição de oferecerem o seu melhor em benefício do colectivo – e exclusivamente preocupados com as vantagens que a eleição lhes possa render, é natural que os cidadãos se mostrem cada vez menos receptivos a legitimarem esta situação com a sua participação em processos eleitorais.

Na ausência de verdadeiros líderes, os “aprendizes de feiticeiro” sobrevivem alienando tudo e todos em seu redor e felizes por poucos os confrontarem com a sua real dimensão política e humana. Tranquilizando os apaniguados com algumas migalhas criteriosamente distribuídas, silenciando outros com maiores benesses ou prebendas, vão mantendo a aparência de dignidade daquilo que chamam poder.

Este fenómeno de corrosão da vida política está longe de ser um exclusivo nacional; para o comprovar basta um rápido recordar das patéticas figuras (melhor seria chamar-lhes figurões) que conduziram o mundo a situações de conflito perfeitamente escusadas e que introduziram na cena internacional um crescendo de tensão. Os Bushs e os Blairs, acolitados por uns quantos Aznares ou Barrosos, representam, infelizmente, o que de pior surgiu nos horizontes políticos ocidentais nestas últimas décadas e de pouco nos pode alegrar a existência de Mugabes ou de Zardaris noutras latitudes...

Mesmo os que substituíram aqueles encontram-se muito longe de os fazerem esquecer e a prova foi o resultado da recente reunião do G20 que deixou bem clara a incapacidade dos Obamas, dos Browns ou dos Sarkozys em produzirem mais que um monte de promessas e uma mão-cheia de nada.

No geral bem podemos dizer que quanto a maus políticos temos tido uma enorme colheita e mesmo os que acreditam que tantos frutos estragados não podem ser um mero acaso (haverá na sombra quem manobre para esse efeito), não poderão negar que parte da responsabilidade pelo seu aparecimento cabe a todos, os que votaram neles ou noutros e os que não votaram.

Começa a ser quase lugar comum, como escreveu Adriano Moreira[1], «[q]ue a abstenção cresça, pela inquietante falta de confiança que os eleitores manifestam em relação ao desempenho de todos os ramos da soberania, não se trata de uma condição específica de qualquer dos Estados, é antes uma circunstância comum que parece alargar a sua presença por todos os canais do globalismo» e que, acrescento eu, pouco ou nada parece preocupar os políticos[2], dando até a imagem que é essa a intenção.

Recentes acontecimentos, como o regresso dos confrontos entre manifestantes e polícia que ocorreram durante as manifestações do 1º de Maio na Alemanha, Grécia e Turquia, a grande afluência às manifestações em França[3], são evidentes sinais de uma crescente tensão social e até alguns mais marginais, como o “ataque” à família real holandesa (na véspera do 1º de Maio) e os incidentes em Lisboa com o cabeça de lista do PS às eleições europeias, devem ser inseridos num contexto tão específico e tão actual quanto o é a crise económica e social que atravessamos, mas não podem de modo algum ser desvalorizados e ainda menos tratados como anormalidades.

O sentimento de frustração e de revolta das populações tenderá a continuar a crescer, pelo menos enquanto os governantes persistirem em discursos demasiado cor-de-rosa e desligados da realidade, mas para bem geral é indispensável que aqueles sentimentos não venham a ser capitalizados pelos discursos demagógicos e populistas nem se transformem num aumento da abstenção nos próximos actos eleitorais, pois este «…é seguramente um erro de resposta que os eleitores cometem, desatentos à evidência de que tal manifestação de desagrado apenas reforça a tendência para que os governos sejam uma expressão de minorias»[4].

O aviso, para mais vindo de quem vem, deve ser levado bem a sério, mas convenhamos que quase tudo nos processos eleitorais das modernas democracias contribui mais para esse efeito que para o inverso e é por isso que, mais uma vez, chamo especial atenção para a urgência de modificar as regras de classificação dos votos para que os votos em branco possam e devam ser contabilizados como votos validamente expressos. Esta proposta e outras como a introdução de mecanismos facilitadores da formação de listas de cidadãos, embora de pequena envergadura, poderão fazer alguma diferença na hora de convocar os cidadãos às urnas e, quiçá, conferir alguma legitimidade acrescida àqueles que serão eleitos.
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[1] A citação é retirada de uma das suas mais recentes crónicas semanais no DN, intitulada: «AS URGÊNCIAS».
[2] Apesar dos constantes apelos ao voto que Vital Moreira, o cabeça de lista o PS às eleições europeias, tem proferido e que são referidos em notícias da TSF e da TVI, mantenho até prova em contrário que a abstenção beneficia os políticos, pois reduz consideravelmente o número de votos necessários à sua eleição.
[3] O NOUVEL OBSERVATEUR noticiou uma quintuplicação dos números de 2008 na notícia «Cinq fois plus de monde que pour le 1er mai 2008».
[4] Ver nota 1.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

POR UM 1º DE MAIO RENOVADO

Comemorar o 1º de Maio nos tempos actuais pode-se considerar quase um anacronismo, não fossem os registos históricos (e a memória de um ou outro dos mais velhos) e seria quase impossível explicar aos mais novos as razões para semelhante efeméride.

O absurdo não resulta apenas do facto de há muito o trabalho ter deixado de constar entre as actividades que enobrecem o Homem, substituído pelo expediente fácil e o enriquecimento sem causa, mas também das lamentáveis políticas que foram minando os recursos e uma justa melhoria da qualidade de vida aos que continuam a praticar a honesta tarefa de ganhar o sustento diário graças ao seu esforço pessoal. E não uso esta figura de estilo senão para tornar ainda mais evidente o que distingue os que usam as suas capacidades (sejam elas de natureza física, intelectual ou de empreendorismo) para produzirem riqueza, dos que usam meros expedientes ou influências para a obtenção de ganhos.

Quando há décadas se assiste à paulatina degradação do poder de compra dos assalariados e se viu florescer eminentes impérios industriais e comerciais apoiados na protecção dos governos que o que deviam era terem assegurado uma melhor redistribuição da riqueza que se dizia existir, quem pode, de boa fé e cara descoberta, afirmar que se assinala hoje uma data relevante?

Que novos embustes nos esperam nos discursos (e nas práticas) daqueles que, eleitos para representarem e defenderem os interesses de um Estado, hoje se farão ouvir para louvar o Dia do Trabalhador?

Que novas benesses distribuirão entre os mais favorecidos enquanto anunciam novas medidas de protecção aos que mais estão a sofrer com uma crise económica para qual pouco ou nada contribuíram?

Iremos conhecer de pronto a resposta a esta dúvida! Mas... e as que diariamente formulamos sobre as crescentes incertezas quanto ao nosso futuro próximo? Continuaremos a assistir à sistemática corrosão da sociedade por aqueles que tudo lucram e nada partilham ou lograremos, ao invés, pôr um travão a este estado de coisas!

Para isso não poderemos continuar a confiar no sistema político-económico que permitiu o alcandorar no poder de um grupo de arrivistas, vazio de outros interesses que não a sua autopreservação.

Com a aproximação de um ciclo eleitoral alargado e quando atravessamos uma profunda crise económica que está a pôr a nu o que aquele grupo representa de mais desprezível, se nada fizermos, estaremos a desperdiçar uma excelente oportunidade para alterar um rumo que manifestamente não nos serve.

É indispensável aproveitarmos a oportunidade que a evidente falência do modelo de desenvolvimento económico neoliberal nos proporciona e exigirmos dos políticos que pretendam representar-nos programas e compromissos claros, ideias concretas e devidamente fundamentadas e não tolerarmos mais os discursos pomposos e plenos de promessas mas vazios de métodos e os discursantes que dizem agora o contrário do que já disseram. Cansados de logros e demais estratagemas devemos mostrar aos que nos têm conduzido até ao precipício que apenas lhes resta saltar... mas sozinhos, porque o nosso rumo é outro bem diverso.

Perdida a hipótese de voltarmos hoje a ter um 1º de Maio como o de 1974, quando milhares e milhares de portugueses desfilaram pelas ruas do país chorando a alegria e cantando a revolta, esta é a oportunidade para exigirmos àqueles que elegermos um compromisso e um rumo diferentes. Um compromisso de seriedade e de vontade de trabalharem em prol da maioria e um rumo que decididamente nos oriente numa via de crescimento e de respeito entre todos, na qual os ganhos desproporcionados de uns quantos não sejam os prejuízos da vasta maioria condenada a sobreviver nas infames margens da opulência dos primeiros.

sábado, 25 de abril de 2009

A VISÃO SEM O 25 DE ABRIL

Apesar de ainda só terem passado 35 anos desde o 25 de Abril de 1974 e de pouco mais que uma geração ter sido “formada” sob ares diversos dos da ditadura do Estado Novo e de muitos (novos e velhos) hoje parecerem ter esquecido os custos sofridos por tantos para que o 25 de Abril pudesse ter acontecido, ainda vai havendo quem persista em tentar manter vivas essas memórias.

Por isso destaco hoje o último número da revista VISÃO, que nos oferece uma interessante perspectiva do que seria hoje esse número se ainda houvesse censura…
A revista abre com uma a informação que se trata de um número "censurado" e inclui a explicação dos diferentes carimbos aplicados a cada notícia; seguindo as regras do regime de censura as diferentes notícias e artigos encontram-se, ou não, devidamente riscadas pelo famigerado lápis azul consoante o vocabulário empregue ou o assunto abordado.

Número a não perder e a guardar (para mais tarde recordar) para não permitir que os mais novos alguma vez ignorem o que poderiam estar a viver.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A CANTIGA (AINDA) É UMA ARMA

Haverá melhor data para trazer aqui uma das mais recentes polémicas em torno de uma canção que aquela que ficará para sempre ligada a uma canção – GRÂNDOLA, VILA MORENA – e ao seu autor e intérprete – Zeca Afonso.

Mesmo que um dos autores da canção agora polémica (Kalu, autor da música e um dos músicos do grupo Xutos e Pontapés) afirme que «[c]ada um enfia a carapuça que quiser, isto é para todos os engenheiros. (...) Diverti-me imenso a cantar aquilo e aquilo era o que eu queria mesmo dizer na música»[1] e Zé Pedro (outro dos músicos da banda) tenha afirmado em entrevista à SIC[2] que nunca foi objectivo do grupo usar a canção como manifesto contra o governo, o certo é que a ideia parece ter pegado e Sócrates corre o sério risco de ter que enfrentar um adversário de enorme peso.

É que contra argumentos como os que integram a canção:

e para mais ao ritmo que os “Xutos” lhe imprimem, a luta vai ser duríssima.

O futuro próximo dirá se uma simples canção poderá ou não alcançar aquilo que manifestamente os sucessivos líderes da oposição (Marques Mendes, Luís Filipe Menezes e Manuela Ferreira Leite) nunca conseguiram e assim provar que já nos idos de 1975 José Mário Branco tinha inteira razão quando cantava que:

e que este SEM EIRA NEM BEIRA venha a enfileirar entre as muitas canções que marcaram épocas de luta, como, VAMPIROS, VEJAM BEM e TRAGAM MAIS CINCO, de Zeca Afonso, a TROVA DO VENTO QUE PASSA, letra de Manuel Alegre cantada por Adriano Correia de Oliveira e LIVRE, letra de Manuel de Oliveira cantada por Manuel Freire.
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[1] As declarações do músico foram recolhidas aqui.
[2] A entrevista pode ser lida aqui.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

AS ÚTEIS PROJECÇÕES DO FMI

Nas últimas semanas têm abundado as notícias sobre as previsões económicas (sejam elas oriundas de organismos mais ou menos oficiais, nacionais ou estrangeiros) e esta também não vai falhar a regra, tanto mais que assistimos à publicação pelo FMI do WORLD ECONOMIC OUTLOOK e que como seria de esperar apresenta o ponto de vista de um organismo que há décadas prima pelo “rigor” do seu trabalho.

Uma rápida visita à sua página na Internet oferece-nos esta súmula do seu trabalho e das suas previsões:

as quais deverão ter sido recebidas com enorme alegria lá pelas terras do Tio Sam, ou não se desse o caso de os EUA (e o vizinho Canadá) apresentarem melhores perspectivas que as dos restantes países ocidentais, mesmo quando todas as previsões foram revistas em baixa relativamente a Janeiro deste ano.

Aqueles números até poderão vir a revelar-se acertados, mas olhando para o historial e para o papel que o FMI tem desempenhado na disseminação da globalização e na fragilização de muitas das economias que aceitaram a aplicação (ou a isso forçadas) do Consenso de Washington, dificilmente se poderão aceitar estas previsões sem fundadas dúvidas, tanto mais que uma observação um pouco mais atenta dos mesmos revela o seguinte padrão:

  1. em 2009, excepção feita às economias emergentes dos continentes africano e asiático, todas as restantes registam crescimentos negativos nas respectivas economias;
  2. os EUA e o conjunto das economias avançadas terão, em 2010, um crescimento zero;
  3. para 2010 a perspectiva é de que apenas as economias europeias, com a excepção da França (será reflexo do facto do presidente do FMI ser o francês Dominique Strauss-Khan e aquele ser um dos territórios da UEE onde a contestação popular aos reflexos da crise económica e à inépcia dos governantes é das mais activas?) continuarão a ter crescimentos negativos, quando tudo o resto revela já sinais de retoma;

que parece demasiado favorável aos interesses norte-americanos.

Concretamente para o caso português e para a UE (tal como as apresentou o
JORNAL DE NEGÓCIOS), são as seguintes as previsões:

que confirmam que o início da retoma não deverá ocorrer antes de 2011 e que já começaram a ser usadas pela oposição e pelo Governo para trocarem críticas e outros jogos florais, pois quanto a propostas bem fundamentadas e orientadas para o cerne da questão, continuamos a esperar…

E se Portugal até nem aparece muito afastado dos valores médios previstos para a Zona Euro, importa não esquecer que a posição da economia portuguesa se situa na cauda daquele grupo, pelo que o aparente bom desempenho não significa qualquer convergência com os padrões médios do grupo e que tão alardeada vantagem do equilíbrio orçamental – argumento de que o governo de José Sócrates usa e abusa para contradizer as críticas – apenas serve para esconder o facto das dificuldades da economia nacional ultrapassarem a mera conjuntura recessiva mundial, pois remontam a questões de natureza estrutural, como sejam o atraso na modernização do tecido produtivo nacional e a ausência de um modelo coerente de desenvolvimento nacional.

terça-feira, 21 de abril de 2009

RECADOS E ALARVIDADES

Por esta altura não haverá já quem não tenha escrito um eloquente comentário ou uma verrinosa crítica em qualquer jornal (ou sítio da Internet) a propósito dos discursos de Cavaco Silva e de José Sócrates do passado fim-de-semana.

Em termos práticos, o Presidente da República teceu algumas críticas, que muita gente entende válidas, enquanto o Primeiro-ministro lembrou que o “homem do leme” agora é ele… Por outras palavras, Cavaco Silva parece estar a ficar cada vez mais preocupado com o “desaparecimento” político dos seus correligionários (agora capitaneados por Manuela Ferreira Leite) e com os preocupantes sinais do fortalecimento do PCP e do BE. Que ninguém duvide que a principal preocupação em Belém é o fortalecimento de comunistas e bloquistas, muito mais que uma vitória do PS (por mais esmagadora que esta possa ser) e um ainda provável desaire do PSD.

Com o seu discurso Cavaco Silva terá lançado às urtigas a”cooperação institucional” (que no princípio deste ano substituiu a tão propalada “cooperação estratégica”) para dar início a uma nova fase nas relações entre Belém e São Bento, ou tudo isto não passa de mais uma farsa para iludir os mais incautos, na qual Cavaco quer surgir como o bastião da direita e Sócrates procura “convencer” alguma esquerda que é capaz de lhe fazer frente?

Cotejando as fontes disponíveis (os “sites” da Presidência da República e do Fórum Novas Fronteiras e algumas referências da imprensa[1]) não ficam dúvidas sobre o teor de uma e outra intervenção; a do Presidente da República – incluída no discurso proferido na Sessão de Abertura do 4º Congresso da Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE) – pautou-se por uma crítica às estratégias escolhidas para o combate à crise e pela referência à necessidade de uma gestão criteriosa e rigorosa dos fundos disponíveis, enquanto a do Primeiro-ministro foi integrada numa iniciativa partidária (a apresentação da lista do PS concorrente às eleições europeias e quedou-se por uma referência – “o que o país não precisa é da política do recado, do remoque, do pessimismo, do bota-abaixismo, da crítica fácil” – em oposição às qualidades do seu candidato.

Até a simples escolha das oportunidades para a intervenção me parece bem elucidativa dos fins das respectivas mensagens. Aos empresários cristãos o Presidente da República foi recordar que são precisos valores éticos nos negócios (que diabo, não deveriam ser estes os que menos necessitariam de tal remoque?) e que os verdadeiros empresários são os que não procuram a protecção do Estado (ao ouvir isto a sala deveria ter ficado vazia); já o Primeiro-ministro (na oportunidade na pele de líder partidário) respondeu à crítica de governar para os números e para as estatísticas, da forma que lhe cada vez mais habitual: apodando os críticos de derrotistas e bota-abaixistas…

Ideias, conceitos… não se ouviram de um lado ou do outro! Cavaco continua a falar do passado como se nunca tivesse ocupado o lugar de Primeiro-ministro e como se o seu consulado de dez anos (1985-1995) não tivesse correspondido ao período em que maiores volumes e fundos estruturais foram desperdiçados em obras de fachada ou obras públicas que mais tarde vieram a ser entregues à gestão privada (a tal de superior qualidade, rigor e objectividade); até quando se refere a questões de âmbito menos político – por exemplo, quando afirma que «…na génese da crise financeira e económica que o mundo enfrenta, muito pesaram a violação de normas éticas e a adopção de comportamentos de risco cujo impacto sobre o sistema financeiro e o bem-estar das populações não foi devidamente ponderado» – fá-lo de forma que até parece que nem ele nem nenhuma das duas famílias políticas que têm governado este país nos últimos trinta anos tiveram alguma vez qualquer coisa ver com isso.

Isto não é apenas inconsciência, é a justa imagem do valor e da índole dos políticos que nos têm governado…
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[1] A página na Internet da Presidência da República disponibiliza o discurso aqui, enquanto a página do Fórum Novas Fronteiras apresenta um resumo da réplica do Primeiro-ministro sob o título «PS escolhe os melhores candidatos para a Europa»; entre as notícias de imprensa que fizeram eco do sucedido saliento esta do PUBLICO: «Cavaco duro como nunca para Governo e empresários».

sábado, 18 de abril de 2009

TENTANDO VER ALÉM DA PIRATARIA

Em Abril de 2008, já a propósito do recrudescimento do fenómeno da pirataria nas costas somalis, escrevi[1], citando Jacques Attali, sobre o fenómeno colocando-o num plano muito superior ao do mero banditismo. Um ano volvido e sem aparente melhoria da situação, proponho-me agora abordar a forma como a comunidade internacional pretende lidar com o problema.

Talvez consequência do constante assalto às rotas comerciais que frequentam aquelas águas costeiras, o ocidente decidiu enviar alguns vasos de guerra para a região com o objectivo de proteger o comércio mundial.

Porém, a questão é muito mais vasta que a aparentada pelos simples actos de pirataria e deve ser analisada numa dupla perspectiva: a da instabilidade e insegurança que se vive na Somália (e um pouco por todo o Corno de África) e a da extrema pobreza que grassa na região (seja ela, ou não, consequência do clima de guerra civil que se arrasta), para a qual os habitantes não vislumbram a mínima alternativa.

A Somália (e o conjunto do Corno de África) é apenas mais um exemplo do que pode resultar quando as populações são reduzidas a situações extremas de falta de recursos e de ausência de perspectivas de futuro.

Isso mesmo foi deixado bem claro por Roger Middleton[2], um membro “think-tank” Chatham House, que recentemente publicou o artigo «PIRACY SYMPTOM OF BIGGER PROBLEM» na BBC NEWS, quando diz que a «...crónica instabilidade da maior parte dos países (do Corno de África) e as ameaças diárias à vida humana levam a que os riscos associados à pirataria sejam avaliados como inferiores aos diariamente incorridos».

Bem podem as potências ocidentais alardear o seu vasto poderio naval e recorrer mesmo ao uso dessa força desproporcionada, que dificilmente resolverão o problema da segurança.

O uso da força poderá até originar a reacção inversa à desejada – a redução da disponibilidade para a prática dos assaltos – e, em caso algum contribuirá para a melhoria das condições de vida das populações, único factor que poderá com sucesso reduzir o número de disponíveis para os actos de pirataria.
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[1] Refiro-me em concreto ao “post” ” «PIRATAS A BORDO», texto no qual procurei abordar a questão numa perspectiva mais vasta que a da mera “pirataria”. Do mesmo modo, voltei alguns meses depois ao tema, no “post” «PIRATAS SOMALIS E NÃO SÓ...», abordando-o na perspectiva das relações norte-sul e na exploração que as nações mais desenvolvidas têm feito ao continente africano, nomeadamente através da prática da exportação das actividades mais poluentes para aquele continente.
[2] Roger Middleton além professor de História de Economia Política, na Universidade de Bristol, é especialista em questões políticas do Corno de África, nas relações África-UEE e em questões de paz e segurança e um dos consultores e investigadores que colaboram no Africa Programme do Chatham House.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO

Após a leitura do artigo «ESBOÇO PARA UM RETRATO DE MORDOMO», de Baptista-Bastos, iniciei a redacção de um comentário sobre a importância das marionetas na vida dos povos.

Excelentes e actuais exemplos é coisa que não falta; aliás há décadas que observadores e analistas vêem a chamar a atenção para a constante e inexorável degradação da qualidade dos políticos que nos governam, sem que isso pareça ter tido qualquer reflexo prático.

Quando a norma, nacional e internacional, passou a ser o cinzentismo ideológico (para não falar num completo vazio de ideias) não é de estranhar que campeiem, até pelos principais areópagos da política, inefáveis figurões[1] como Durão Barroso ou Silvio Berlusconi, que a par dos retirados George W Bush e Tony Blair, apenas poderão ter encontrado justificação enquanto títeres manobrados por inconfessáveis interesses – tão inconfessáveis que nem das luzes da ribalta se deverão aproximar -, como esperar que a nível nacional pontifiquem melhores figuras que os Sócrates, os Cavacos, as Manuelas, os Santanas e os Portas?

Dificilmente se poderá esperar grandes feitos de figuras de reduzida competência política e duvidosa qualidade ética e políticas adequadas à condução dos povos no sentido da melhoria das respectivas condições de vida, tanto mais que as posições de destaque de que gozam (ou gozaram) são meramente circunstanciais e sobejamente peadas pelas eminências pardas que a elas os conduziram.

Como poderemos então esperar desta geração de líderes alguma capacidade para conduzirem o confronto aos conturbados tempos que correm? Pior, como salienta Mário Soares no artigo «CRISE, JUSTIÇA, DEMOCRACIA», a sua incapacidade política é cada vez mais evidente na recusa de uma estratégia – a abertura e o diálogo entre as estruturas políticas e sociais – que dinamize as forças necessárias para encontrar soluções para a crise económica.

O vazio de ideias revela-se na inconsistência e no mimetismo das estratégias gizadas para o combate à crise e no autismo com que recusam ouvir as vozes que em seu redor apresentam soluções alternativas e o medo atávico de perder as benesses do poder não pode ser o fio condutor de decisões, como os grandes investimentos públicos em obras de duvidosa ou nula necessidade, que irão acarretar pesados encargos futuros e de reduzido efeito estrutural na superação da crise.

O ciclo eleitoral que se aproxima poderia ser uma excelente oportunidade para que as populações fizessem ouvir a sua voz (e as suas razões) e que por acréscimo de convicção se afastassem os mais dramáticos cenários de descontentamento e de revolta que se generaliza na sociedade, mas a avaliar pelas candidaturas que já chegaram ao domínio público tudo isto não deverá passar de mera ficção.
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[1] A lista de meritórios candidatos a citação é vasta, tão vasta, que as personagens referidas não alcançam sequer a dimensão de ponta visível do iceberg.

sábado, 11 de abril de 2009

G20 OU O G2 DE OBAMA

Confrontados com o tremendo “flop” que foi, do ponto de vista económico e do combate à crise mundial, a reunião de Londres, resta-nos tentar perceber o que de positivo possa ter resultado.

Mesmo que para a generalidade dos líderes mundiais presentes a reunião se tenha saldado por um grande sucesso e que jornais e televisões não tenham desperdiçado a oportunidade para louvar os líderes dos respectivos países, para a opinião pública mundial o que realmente pode ter ocorrido de positivo ter-se-á limitado aos encontros bilaterais entre Barack Obama e os líderes chinês, Hu Jintao, e russo, Dmitri Medvedev e mesmo isso limitado a questões de natureza geo-estratégica.

Enquanto a informação sobre as agendas das duas reuniões e as respectivas conclusões ainda permanecer envolta em algum sigilo, todas as especulações são possíveis, mas quase certo é que ambas se tenham centrado longe do tema de fundo da cimeira. Junto de chineses e russos Obama deverá, sobretudo, ter-se preocupado com outras questões[1]; neste capítulo, a gravíssima crise económica que os EUA atravessam terá funcionado como óbvia mola impulsionadora da súbita preocupação de Washington com a necessidade de redução dos arsenais nucleares – não fora a evidente necessidade de reduzir o orçamento militar e de certo que ninguém no Pentágono apoiaria a ideia (mesmo assim, vamos lá ver…) – o que fez aumentar ainda mais a importância do apoio chinês na condução de uma política de contenção e de negociação com a Coreia do Norte[2] e do entendimento com Moscovo sobre questões como o programa nuclear iraniano e o futuro da NATO.

Se há matérias em que o interesse dos três grandes – EUA, China e Rússia – é tendencialmente conflituante é precisamente o do futuro papel da NATO.

Quando aquela aliança militar celebra o seu sexagésimo aniversário e não parecem existir mais razões para a sua manutenção, mesmo os sinais de vitalidade que poderão ser encontrados no recente regresso da França àquele organismo têm que ser analisados com as devidas cautelas, quanto mais os preocupantes relatórios que continuam a chegar de Kabul.

Pese embora toda a boa vontade e capacidade de diálogo de que a nova administração norte-americana possa fazer uso, a situação numa região que continua a representar um importante ponto estratégico mundial parece não parar de se agravar, tornando cada vez mais evidente o recrudescimento da influência e da acção dos “talibans”, mas também a fragilidade, inconsistência e incoerência da liderança do pró-ocidental Hamid Karzai.

A eficácia da ideia norte-americana de reforçar a presença militar da NATO naquele território, apoiada de forma mais ou menos rápida pelos seus aliados, ficará para ser comprovada no terreno; num terreno que, recorde-se já assistiu ao fracasso de duas grandes potências militares (a Inglaterra que suportou de forma mais ou menos contínua um estado de guerra desde meados do século XVIII até ao final da I Guerra Mundial e a União Soviética que, na sequência da substituição de Mohamad Taraki por Hafizullah Amin, invadiu e ocupou o território entre 1979 e 1988) e que agora se vê novamente assediado por uma potência estrangeira que se apresenta longe do seu auge.

Talvez este sentimento de fragilidade (os analistas políticos referir-se-lhe-ão como um manifesto sentido de pragmatismo) que grassa na elite norte-americana esteja na génese dos apelos ao diálogo e ao desarmamento que Barack Obama inclui no seu discurso em Praga e na postura muito “soft” que apresentou a seguir na Turquia, onde fez questão de salientar que os EUA não estão em guerra com o Islão e que vêem com muito bons olhos a possível adesão daquele país à UE.

Certo é que do lado europeu ambos os discursos terão sido recebidos com sentimentos mistos. Se às populações terá sido agradável ouvir falar em desarmamento e em reduções de arsenais nucleares, no que tal comporta de desanuviamento de tensões e de reduções de gastos, já a governos como o francês (e o inglês)[3] a ideia de desnuclearização é pouco atractiva na medida em que isso poderá acarretar maiores entraves à sua própria estratégia político-militar. Também no que respeita ao afirmado apoio americano à pretensão turca de integração na UEE, o mesmo apenas pode ser apreciado da Europa como uma óbvia ingerência e um dupla manobra de fomentar a divisão europeia e agradar aos países árabes mais moderados.
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[1] Isto não significa que questões mais específicas de natureza económica e financeira – como a premente necessidade de fundos oriundos da China e a dúvida que fontes norte-americanas não param de alimentar quanto à situação de pré-falência das economias das pequenas repúblicas fronteiras à Rússia e que resultaram da implosão da União Soviética – não possam ter sido abordadas nos contactos com Hu Jintao e Medvedev; porém e avaliar por reacções ao lançamento do míssil/satélite norte coreano, como a japonesa que apesar do anúncio da intenção de proceder ao abate do projéctil não terá feito qualquer tentativa nesse sentido, não podem ficar dúvidas que a “resposta” americana e ocidental foi concertada com chineses e russos.
[2] No dia 5 de Abril, quatro dias depois daqueles encontros, a Coreia do Norte procedeu ao que classificou de lançamento de um satélite, mas que na realidade não terá passado de um simples ensaio de um míssil balístico intercontinental do tipo Taepodong-2. Embora seja possível a confusão entre os dois tipos de engenhos (um lançador espacial e um míssil balístico), tudo não terá passado de uma mera manobra de diversão uma vez que, ao abrigo dos convénios em vigor, a comunidade internacional não se poderia opor ao lançamento de um satélite de comunicações. De qualquer das formas o verdadeiro objectivo do gesto de Pyongyang terá sido o de pressionar os EUA a subir a parada das contrapartidas, nomeadamente no capítulo económico, para o abandono do seu programa nuclear.
[3] Para documentar a posição francesa veja-se a notícia «Is Sarkozy’s relationship with Obama as friendly as it looks?», publicada na página do DIGITAL JOURNAL; a posição inglesa, que sugiro, não parte de nenhuma notícia concreta mas de mera suposição a partir da posição francesa e da óbvia necessidade da Grã-Bretanha necessitar de uma posição político-militar sempre que queira contrariar o chamado eixo Paris-Berlim.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A PROPÓSITO DE «O ECONOMISTA DO MOMENTO»

Talvez esteja profundamente errado, mas é bem possível que o resultado da Cimeira do G20 – que para uns constitui um sucesso incomparável e para outros nem tanto – tenha tido uma enorme influência no artigo de opinião que o Prof. César das Neves assina na edição de hoje do DIÁRIO DE NOTÍCIAS.

Quando toda a gente parece concordar que terá sido encontrada a solução para a saída da crise, o próprio autor salienta que «[p]ara lá de debates de pormenor, a grande maioria dos economistas tem estado de acordo quanto à estratégia a seguir», fácil se torna entender porque é que aquela reunião de alto nível foi tão parca de polémicas e ainda mais de anúncios sobre as profundas alterações no modelo de funcionamento dos mercados e do sector financeiro, que alguns especialistas indicam como indispensáveis.

Será que tudo se deve, como pretende César das Neves, à síntese há muito realizada entre keynesianos e monetaristas (que conveniente para um convicto monetarista não se ver confrontado com a necessidade de explicar como uma saudável teoria nos conduziu a esta situação comatosa) ou, pelo contrário, estes estão apenas a tentar bloquear a evidência que é o fracasso das duas teorias?

É que apesar das grandes diferenças entre as duas escolas defensoras do primado do mercado – os keynesianos reconhecem a necessidade da intervenção e regulação do Estado enquanto os monetaristas vêem em qualquer intervenção deste o primeiro de todos os males – ambas se revelam profundamente comprometidas na manutenção do “status quo” económico-financeiro e totalmente avessas às mudanças que poderiam contribuir efectivamente para a minoração dos efeitos da actual crise.

A tão aplaudida decisão do G20 de reforçar a capacidade financeira do FMI – ou seja, de um dos principais organismos responsáveis pela difusão do chamado Consenso de Washington[1] e pelo modelo de globalização financeira[2] – para que este apoie as economias em maiores dificuldades e os respectivo sectores financeiros não é mais que a generalização à escala global das políticas que as administrações Bush e Obama têm vindo a aplicar e que em pouca palavras se resume a injectar fundos públicos nas empresas financeiras na expectativa que estas ultrapassem a crise de confiança que geraram e que os mecanismos de financiamento bancário normalizem e as economias voltem a crescer baseadas num modelo de permanente endividamento bancário. Uma simples análise dos acontecimentos nas últimas décadas deveria desaconselhar a repetição do erro e originar o lançamento de uma nova política orientada para a utilização do crédito enquanto bem público e para a redução do monopólio da criação de moeda que o sector financeiro detém em exclusivo.

O problema não está na pretensão de que o desenvolvimento económico capitalista se faça sem avanços e recuos (alternância entre períodos de crescimento e outros de crise), mas sim na pretensão que o progresso da Humanidade seja um processo em que a generalidade obtenha benefícios e não, como se verifica actualmente, em que uma minoria de privilegiados se apropria de uma riqueza que a todos pertence. Por isso mesmo a escolha do economista do momento não se poderá resumir às correntes de pensamento (keynesianos e monetaristas), mais ou menos dominantes no hemisfério ocidental, por mais que estas persistam em reivindicar a sua eficácia na luta contra a pobreza, nem reduzir o contributo de Karl Marx para a ciência económica ao atributo de génio, como o fez César das Neves; a própria ideia de uma escolha é por si só redutora – como se o progresso da Humanidade alguma vez tivesse resultado de um golpe de génio – quando a gravidade da situação urge a necessidade de novas abordagens e quiçá de paradigmas bem diversos.

Recomendar, como faz César das Neves, o uso dos instrumentos de inovação financeira – “subprime”, titularização, dispersão do risco, etc. – que reputa de «...mais eficazes na luta contra a miséria que o microcrédito, ele mesmo uma inovação financeira...» mas com as «...cautelas que desta vez se esqueceram», parece-me ultrapassar a mera convicção ideológica e revestir já a forma de um dogma, tanto mais útil quanto possa desviar as atenções de soluções verdadeiramente alternativas como sejam: o retorno do poder de criação de moeda à esfera pública e a aplicação de regulamentação rigorosa sobre os mercados financeiros (eliminando os “offshores” e limitando a montantes realistas os mercados de produtos derivados).

Como o Prof. César das Neves tanto gosta de repetir, “não há almoços grátis”, mas também não deveria acontecer que fossem sempre os escorraçados da mesa a ter que pagar...
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[1] Sobre o Consenso de Washington e outras questões abordadas neste “post”, ver outros anteriormente publicados: POLÍTICA FISCAL OU POLÍTICA DA AVESTRUZO PÂNICO DA NORMALIDADEA CIMEIRA DE WASHINGTON.
[2] O outro é o Banco Mundial.

domingo, 5 de abril de 2009

O QUE (NÃO) MUDOU COM A REUNIÃO DO G20

Conhecidas as conclusões da última reunião do G20 e a piedosa intenção manifestada pelos líderes das maiores economias mundiais de[1]:

  • lançar um pacote de 1,1 biliões de dólares para recuperar a economia;
  • aprovar mais regulação para o sector financeiro;
  • limitar os salários dos executivos;
  • promover o comércio internacional e combater o proteccionismo;
  • divulgar uma lista negra de Paraísos Fiscais;
  • agendar uma nova reunião do G20;

de pronto fica no ar a questão de saber o que de concreto poderemos esperar daquela cimeira e se após ela terão, ou não acabado todos os problemas.

O essencial do debate deverá ter-se centrado, como o anteviu o humorista Chappatte,

na discussão entre a necessidade de mais Estado ou de muito mais Estado, com as conclusões a enunciarem mais um compromisso.

Se lembrarmos que de concreto e enquanto acção de intervenção imediata, apenas foi aprovado o reforço de capital ao FMI, para que este organismo veja aumentada a sua capacidade de intervenção, mas que foi em grande parte graças à actuação do FMI e do Banco Mundial, nomeadamente na aplicação dogmática dos conceitos do Consenso de Washington, que se reuniram as condições para o eclodir da crise, e que as restantes medidas não passam de boas intenções proteladas para depois da crise, poder-se-à continuara a anunciar o sucesso da cimeira?

Mesmo que se aceite como boa a afirmação atribuída a Barack Obama (e citada pelo EXPRESSO) de que a «cimeira foi ponto de viragem’» importa entender em que é que ela marca alguma ruptura com o passado. Além do “pacote financeiro” (que podemos perfeitamente classificar como mais do mesmo) que outras importantes novidades trouxe a reunião de Londres?

Com as respectivas economias afundadas numa crise profunda, os jornais ingleses e americanos preferiram dar relevo aos poucos resultados e ao papel conciliador que Barack Obama terá desempenhado no processo, algo perfeitamente natural dada a gravíssima situação da economia norte-americana mas de grande relevo face ao perfil jactante e sobranceiro do seu predecessor, ainda que, revelando um sentido mais pragmático da crise, os correspondentes do LE MONDE prefiram falar em «quatro orientações para tentar salvar a economia mundial», ainda que o editorial classifique a reunião como um «G20 fundador» e rejubile com o nascimento de «...um novo mundo [...] um mundo menos anglo-saxónico e menos liberal. Vinte anos depois d aqueda do Muro de Berlim, dez anos depois do fracasso da Conferência de Seattle para a liberalização do comércio, parece desenhar-se um novo equilíbrio, quer no plano político quer no plano económico, agora ligados como nunca».

Além do já referido reforço de capital para o FMI – um pacote de 1,1 biliões de dólares a gerir por aquele fundo até 2010 – os líderes das grandes economias devem ter recordado os conselhos atempadamente prodigalizados pelos grandes banqueiros (que o mesmo Chappatte não hesitou em apresentar numa manifestação à entrada da reunião) e, pudicamente, ficaram-se por umas referências a umas medidas para depois da crise.

Esta medida deverá ainda ser reforçada por um apoio ao comércio internacional, no montante de 250 mil milhões de dólares, e pela promoção de políticas anti-proteccionistas, mesmo quando no dia-a-dia continuam a surgir notícias que contrariam aquele princípio.

Referidas as medidas concretas e de aplicação imediata, apenas falta mencionar o conjunto de intenções que deverão alvo de novas reuniões e negociações, tais como o tal reforço da regulação do sistema financeiro, a limitação dos rendimentos dos executivos e a publicação de uma lista negra de “offshores”, face á quais não será de estranhar que aumente o descontentamento e a contestação pública.

Esta contestação será tanto mais heterogénea quanto ficaram por abordar (e ainda mais por resolver) questões tão importantes quanto o futuro da regulamentação e o respectivo modelo e supervisão, o papel futuro do dólar – continuará esta moeda a poder ser aceite como termo geral de troca internacional e de meio de reserva financeira, como até agora tem sido – e a necessidade de mudanças nos mecanismos de fixação das taxas de câmbio.

Por estranho que possa parecer, em meu entender os principais pontos positivos da reunião de Londres não tiveram qualquer relação com a crise económica nem com a forma como as grandes economias pensam combatê-la, mas sim nos encontros bilaterais que Obama manteve com líderes como o chinês Hu Jintao ou o russo Medvdev. Mas isso será para outra análise...
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[1] Tal como são enunciadas pelo ECONÓMICO.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

PARA ONDE FOI O DINHEIRO

Ao ler a última crónica de Baptista-Bastos, no JORNAL DE NEGÓCIOS, não resisti a aqui alinhavar um breve ensaio de resposta a uma das perguntas que muitos farão de si para si – “para onde foi parar o dinheiro?” – quando, como aquele jornalista, vasculham jornais e demais literatura em busca de informação e respostas sobre a crise.

É óbvio que muitos dos que escrevem sobre o assunto integram um de dois grupos de analistas: os que estão mais preocupados em apresentar justificações ou em escamotear realidades e os que entendem que a grande questão é encontrar a “chave” para a saída, e por isso, nem uns nem outros, nunca poderão responder àquela questão. É matéria que se lhes afigura irrelevante ou que entendem que os desviará da magna tarefa de salvarem a economia...

Porém, a resposta é, dentro da enorme complexidade do problema, de uma relativa simplicidade e de uma enorme utilidade para se entender a forma de combater o desastre.

O aparente paradoxo que constitui o súbito desaparecimento da enorme riqueza que se dizia existir é facilmente explicado pelo facto de parte muito significativa desse dinheiro (riqueza ou valor, como lhe queiram chamar) nunca ter existido.

Absurdo? Passe de mágica? Nada disso, o que sucede é que os milhões de biliões de dólares[1] que se dizia existirem e que eram regularmente noticiados nas capitalizações bolsistas alcançadas pelos activos financeiros nas principais praças mundiais, nos lucros dos bancos e das grandes empresas, apenas existiam numa versão contabilística, ou seja, eram puro resultado do ciclo de especulação desenfreada que foi despoletado pela conjugação de factores como as baixas taxas de juros e a expansão do crédito bancário, a desregulamentação dos mercados financeiros e uma insaciável necessidade de crescimentos que justificassem os elevados rendimentos dos gestores daquelas empresas.

Com uma parte significativa do crescimento económico sustentado em crédito bancário e sabendo que a “moeda” assim criada é automaticamente destruída quando se procede à liquidação da linha de crédito[2] que a originou, começará a ganhar forma a razão pela qual disse atrás que aquele dinheiro nunca existiu, sem que isso signifique que não tenha havido quem obtivesse ganhos a partir daquele valor praticamente inexistente.

Curiosamente, ou não, enquanto preparava este “post” o jornal britânico GUARDIAN publicou um interessante artigo da jornalista Aida Edemariam, intitulado «The incredible shrinking economy» no qual esta cita alguns especialistas e as suas apreciações sobre a situação da economia mundial mas deixa por responder a questão fundamental – porque é que as economias estão a “encolher”? – porque a maioria dos seus interlocutores, sendo parte integrante do meio financeiro, nunca coloca o dedo na ferida. Isso mesmo se constata quando a páginas tantas a jornalista questiona se não seria simplesmente melhor deitar aquele valor imaginário num qualquer caixote do lixo imaginário e um dos seus interlocutores, Thomas Kirchmaier professor convidado da prestigiada London School of Economics, lhe responde: «[s]omos uma sociedade de capital intensivo e isso torna-nos mais produtivos e mais ricos. Acabar com tal tipo de sociedade significaria regressarmos à Idade da Pedra. Assistimos a momentos na História em que houve Estados que tentaram renegociar as suas dívidas e recomeçar de novo. A Alemanha, após a I Guerra Mundial, foi um desses exemplos e actualmente o Zimbabwe, mas nenhum se pode considerar um caso de sucesso».

Embora a própria jornalista, em comentário à margem àquelas declarações, recorde que vivemos numa sociedade dependente do crédito, ninguém arrisca o passo final e aponta o dedo a um sistema que assegura o seu próprio enriquecimento à custa do empobrecimento geral.
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[1] Refiro o dólar por facilidade e por representar (ainda) a moeda mais usual na contabilização das trocas internacionais, mas o raciocínio aplica-se a toda e qualquer moeda.
[2] Importa aqui acrescentar que aquela destruição não incide apenas sobre o capital emprestado mas também sobre os juros pagos, pelo que o crédito não só aumenta do valor do credor (banco) mas constitui um importante mecanismo de empobrecimento do devedor e de regular redução da liquidez no mercado.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

QUE ESPERAR DA CIMEIRA DO G20

Será expectável que a cimeira que hoje iniciada venha a merecer um lugar de destaque no Grande Livro da História?

Entre os que isso deseja encontra-se certamente Gordon Brown (o primeiro-ministro britânico e o homem que mais terá investido numa iniciativa cujo sucesso poderá representar importantes apoios internos e alimentar esperanças numa próxima vitória eleitoral) e talvez Barack Obama, o presidente da economia geradora desta crise e a que até agora mais tem sido afectada por ela.

Sucede porém que os principais actores daquela encenação se encontram profundamente divididos, seja por via dos seus interesses pessoais seja pelo dogmatismo que inevitavelmente estará associado a matérias tão delicadas. Isto mesmo escreveu Timothy Garton Ash[1] num artigo (The G20 summit in London will be missing one great power. Europe) publicado no GUARDIAN onde disseca as razões pelas quais entende que a Europa já perdeu a grande oportunidade de ombrear com as EUA e China na definição do modelo pós-crise, e que resume na falta de concertação e de união entre os europeus (com especial e natural destaque para a Alemanha, França e Reino Unido) que parecem mais interessados em resolver os seus problemas internos que os problemas globais da crise.

Assim enquanto americanos e ingleses querem ver reconhecido, aumentado e generalizado o princípio do recurso aos planos de apoio às empresas, seja por via dos estímulos económicos, da redução fiscal ou do aumento da despesa pública, a França e a Alemanha (sustentados na relativa estabilidade do euro e no pragmatismo que aconselha prudência nos aumentos dos gastos) preferem soluções que passem pela revisão da regulamentação dos mercados financeiros[2] e os restantes parceiros, os chamados países emergentes com a China à cabeça, (preocupados com a tendência de decrescimento das suas exportações e de estagnação do crescimento das suas economias) querem ver estabilizados os mercados internacionais para que as trocas comerciais continuem a realizar-se.

De acordo com vários órgãos de informação[3] até já existirá um documento previamente acordado para ser ratificado no final da cimeira e que prevê um conjunto de duas dúzias de pontos dos quais se destacam:

  1. intenção de montar um sistema de detecção das bolhas especulativas ;
  2. criação de ferramentas que possibilitam o esvaziamento das bolhas antes que se tornem demasiado grandes;
  3. aumentar o capital dos bancos, logo que termine a crise, para reduzir os riscos de falência e de intervenção pública;
  4. o desejo de que o sector bancário melhore os mecanismos de gestão do risco e assuma a necessidade de alterar as práticas remuneratórias por forma a que os gestores abandonem as estratégias de maior risco;

e que se deixam entender uma atenção especial no capítulo da regulamentação e do controlo bancário, não passam de meras recomendações e não assumem qualquer efeito normativo.

Entre discursos carregados de ideias e grandes intenções em que os principais intervenientes se têm desdobrado nos últimos dias, os chamados grandes líderes mundiais vão reunir-se para mais uma sessão da qual pouco mais sairão que novos discursos, doutos princípios e sãs intenções, mas poucos ou nenhuns resultados práticos.

Além das já evidentes divisões, caso o debate se aprofunde efectivamente, outras rapidamente surgirão, pois ninguém duvide que as intenções dos políticos americanos e europeus estão longe, muito longe, das verdadeiras questões técnicas que poderão permitir a estabilização dos sistemas financeiro e económico mundiais. Embora por razões ligeiramente diferentes também os líderes dos BRIC estarão mais preocupados em assegurar condições mínimas para o crescimento das respectivas economias e com pouca ou nenhuma vontade (à semelhança dos seus congéneres ocidentais) de afrontar a alta finança mundial[4].

É que em última análise poucos (ou nenhuns) políticos quererão enfrentar os banqueiros que se alcandoraram ao estatuto de “donos do mundo” e dos quais dependem para o financiamento das respectivas economias, quando não das próprias campanhas eleitorais que os conduziram ao “poder”.

Quando se quiser construir qualquer coisa de estruturado e de semelhante (no impacto prático) ao que foi a Cimeira de Bretton Woods para as economias do pós-guerra, terá que se entregar o trabalho aos especialistas e limitar a intervenção dos políticos à cerimónia protocolar de assinatura dos convénios.

Pese embora a evidência de sinais[5] que deveriam pressionar os líderes mundiais a actuarem no sentido de uma clara mudança do paradigma económico-social vigente, receio bem que até lá ainda seja necessário assistirmos ao aprofundar da crise, com o cortejo de desemprego, miséria e inevitável agitação social, para que as elites que se têm perpetuado no poder se vejam compelidas a fazer algo mais que participar em “espectáculos” mais ou menos mediáticos como o que iremos assistir a partir de Londres.
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[1]Professor de Estudos Europeus na Universidade de Oxford, director do centro de estudos europeus do St. Antony’s College é ainda autor de várias obras sobre a moderna história europeia, a mais conhecida das quais será «FREE WORLD» (com edição portuguesa da Aletheia Editores) e colunista regular em publicações como a New York Review of Books, o New York Times, o Washington Post, o Wall Street Journal e o Guardian
[2] Como deixou bem claro a ministra da economia e finanças francesa num artigo de opinião, ontem publicado pelo JORNAL DE NEGÓCIOS e muito oportunamente intitulado «Novas regras para o sistema financeiro».
[3] Um dos primeiros a fazer referência a tal acordo foi o LE MONDE, num artigo intitulado «Les pays du G20 vont mettre au pas le monde de la finance».
[4] Exemplo disto mesmo é esta notícia da BBC que dá conta de uma reunião de um grupo de banqueiros com o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, durante a qual terão alertado aquele governante para a necessidade de «não serem impostas medidas de curto prazo que perturbem a recuperação económica nem os objectivos de reformas a médio prazo»; por outras palavras, nada que os banqueiros considerem prejudicial sob pena destes desestabilizarem ainda mais a situação.
[5] Entre alguns alertas de personalidades e organizações nacionais e estrangeira, destaque-se um Relatório da ONU sobre a situação na Região Ásia-Pacífico (que pode ser lido aqui) que aponta para os riscos resultantes dos aumentos da energia e dos bens alimentares.