domingo, 23 de maio de 2010

ENREDADOS

A avaliar pelas notícias que dão conta de que as economias mais desenvolvidas continuam mergulhadas em grandes dificuldades, como sejam a persistência das altas taxas de desemprego, a dificuldade sentida no crescimento do ritmo e da dimensão das trocas internacionais, o fraco crescimento do investimento e os baixos níveis de confiança de empresários e trabalhadores, a que se acrescenta o sobe e desce diário das bolsas de valores, alimentadas, é certo, por aquelas notícias mas principalmente pela imensa desinformação e contra informação com que diariamente jornais, rádios e televisões nos bombardeiam, as decisões dos dirigentes políticos traduzem cada vez mais a sua própria incapacidade para lidarem com a situação.

Veja-se o que sucedeu com o anúncio dos grandes dirigentes europeus (Merkel e Sarkozy) de que a UE iria apoiar financeiramente uma Grécia colocada à beira do colapso; após uns primeiros sinais de normalização das taxas de juro e de câmbio do euro, eis que tudo voltou à situação anterior, fenómeno rapidamente explicado pelos analistas pelo facto dos “mercados” não acreditarem que as medidas tomadas seriam suficientes para resolver o problema grego e ainda menos os da UE e da sua moeda.

Empurrados (ou não) pela pressão dos “mercados”, os dirigentes europeus decidiram que o prioritário era eliminar rapidamente a situação deficitária das respectivas contas públicas e assim assistimos à profusão de medidas visando esse objectivo; variando ora entre as orientadas para a redução da despesa ou para o aumento das receitas, ora combinando as duas. O pior é que neste capítulo, como em tantos outros, voltámos a assistir à mais completa desorganização e descoordenação entre os Estados-membros; por exemplo, enquanto o governo da nossa vizinha Espanha decidiu optar por privilegiar a redução da despesa (anunciando um corte de 5% nos salários da função pública e de 15% para os cargos políticos) em Portugal a opção foi a habitual subida dos impostos (aumento de 1 e 1,5% do IRS e de 1% do IVA, medida tão espantosa quanto ainda há pouco tempo o IVA fora reduzido devido à prejudicial diferença que registava para a economia fronteiriça) acompanhada de uma tímida (e que seguramente será prontamente esquecida) referência à necessidade de conter a despesa, declaração que não passa das habituais intenções de reforço da regra de equilíbrio orçamental nos serviços e fundos autónomos e da redução e cativação das dotações relativas a consumos intermédios (convenientemente defendida pelo líder da oposição e que, se e quando atingir o Governo irá prontamente esquecer)[1].

Os exemplos referidos, a par com o discurso de Angela Merkel (prontamente scundado por Sarkozy) defendendo a intenção de virem a ser fixados, constitucionalmente, valores máximos para o endividamento público dos estados-membros, são bem o espelho da desorganização e da total falta de capacidade de avaliação dos problemas, de definição de objectivos claros e de elaboração das estratégias adequadas para os combater.


Não raras são as análises elaboradas por políticos e especialistas que apontam de forma correcta e adequada os problemas mas que invariavelmente falham rotundamente nas soluções propostas e isto acontece por uma de duas razões principais: pura subordinação aos modelos neoliberais que conduziram as economias ao colapso actual ou, pior, mera incapacidade para entenderem a realidade além do que lhes terão ensinado nos bancos das escolas.


De uma forma ou outra continuamos dependentes daqueles que nos conduziram ao ponto do precipício onde nos encontramos e continuamos a ouvir os pretensos “condutores” a afirmar que a solução é mais do mesmo – no caso concreto das dificuldades financeiras dos países da Zona Euro, originadas no desequilíbrio das contas nacionais de cada um dos estados-membros que foram fortemente agravadas pelas práticas predatórias do sector financeiro que esses mesmos estados salvaram no auge da crise de liquidez a custo do aumento do endividamento público – e que tudo será feito para que o sector financeiro mantenha intactas as suas prerrogativas, os seus ganhos e a maximização dos futuros.


Perante o óbvio descalabro de um modelo económico onde a grande percentagem do crescimento registado se fica a dever a meras manobras especulativas (de que a permanente volatilidade das bolsas de valores é apenas a ponta visível) dificilmente alguém de bom senso poderá aceitar que a solução não passe pela substancial redução (ou até a pura e simples eliminação) dos mecanismos e das facilidades que o possibilitaram. À cabeça destas conta-se o facto dos estados terem abdicado da função de criação de moeda em favor dos bancos (num processo de ruinosa privatização de um bem público e indispensável à realização e à condução da política monetária), de se ter liberalizado o funcionamento os mercados financeiros, ao ponto destes quase não serem sujeitos ao escrutínio público (aqui não se trata apenas de questões ligadas ao sigilo das operações mas de questões ligadas à manipulação das cotações e dos mercado e inclusive à prática de operações de “short selling
[2]) e à criação dos “offshores” ou paraísos fiscais, que mascarados de importante centros de negócios e factores e dinamização económica constituem na realidade verdadeiros centros de operações criminosas que vão desde a lavagem de dinheiros de negócios ilícitos (resultado de subornos e outras “comissões” de intermediação, vendas de armas e de narcotráfico) até à mais despudorada fuga fiscal.


E não se creia que isto é mera figura de estilo ou exagero para atingir o efeito pretendido, pois se o cristianíssimo banco do Vaticano
[3], sedeado no paraíso fiscal que é aquele estado pontifício, não se coibiu de contribuir nos anos 80 do século passado para a falência do Banco Ambrosiano[4], voltou mais recentemente, fruto da operação “Mãos Limpas”[5], a ver-se envolvido na acusação da lavagem dos subornos no caso Enimont[6].
Ainda recentemente, na edição de 13 de Maio da revista
VISÃO, numa entrevista ao jornalista italiano Curzio Maltese, autor do livro «La Questua»[7] onde expõe o trabalho de investigação que efectuou sobre os custos da Igreja Católica para os italianos (trabalho inicialmente publicado no jornal La Repubblica), este afirmou relativamente ao IOR: «É um banco obscuro, ligado a episódios terríveis da vida italiana, relacionados com a Máfia, as bancarrotas, enfim… Nunca foi investigado. Quando o arcebispo Marcinkus foi acusado de provocar o crack do Banco Ambrosiano, o passaporte do Vaticano impediu a sua prisão. É como se essa entidade financeira estivasse nas ilhas Caimão…». A mesma linha de secretismo é igualmente mencionada na Introdução que Gianluigi Nuzzi (outro jornalista de investigação italiano) escreveu para o seu livro «Vaticano S.A.» [8], que: «…por detrás das paredes do Vaticano é o silêncio que impera sempre que as operações dos banqueiros do papa, arcebispos ou purpurados, fazendo uso do dinheiro dos fiéis, se tornam arrojadas, ou até ilegais. O IOR continua a ser um dos lugares mais inacessíveis e é a custo que o Vaticano admite a sua existência. Nas páginas oficiais da Santa Sé não se fala nisso, nem sequer é feita qualquer referência. É como se as finanças do Vaticano não existissem».


Conhecida esta realidade e se esta é a prática e a ética de um banco da Igreja imagine-se o que sucederá noutros… enquanto os políticos mundiais, enredando-nos numa teia de ineficácia, corrupção e compadrios, persistem em nos querer fazer crer que será com débeis e tímidas medidas (como as pomposamente anunciadas pela administração Obama[9] ou a pretensão da chanceler alemã de vir a controlar os mercados de capitais[10], que não serão mais que elos da estratégia de parecer mudar um pouco para que tudo continue na mesma) que o problema se resolverá.
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[1] Não esqueçamos que historicamente os maiores défices públicos têm-se registado durante a vigência de governos do PSD e que na actual conjuntura política nacional será da maior utilidade que este partido capitalize o maior número possível de descontentes por forma a garantir que seja esta formação política a assegurar a constituição do próximo governo e assim se mantenha a tão conveniente alternância entre PS e PSD. No fundo tudo não passará de mais uma manobra de bastidores para assegurar que no próximo ciclo eleitoral tudo possa parecer mudar sem que nada de essencial verdadeiramente mude.
[2] O “short selling” ou venda a descoberto, consiste na venda de títulos de crédito (acções, obrigações ou outros) sem que o vendedor os detenha efectivamente na sua carteira. Na prática este constitui uma forma de possível manipulação dos mercados, pois o vendedor a descoberto pode despoletar um processo de desvalorização dos títulos que irá comprar mais tarde a um preço inferior àquele pelo qual os vendeu.
[3] Também conhecido pela designação de Istituto per le Opere di Religione (ou pela sigla IOR) é um banco privado fundado pelo Papa Pio XII em 1942 e tem sede na cidade do Vaticano. Embora na nomenclatura do Vaticano se refute a ideia de que aquele instituto é o Banco do Vaticano, é sob designação (e função) que tem ficado conhecido.
[4] O Banco Ambrosiano, fundado nos finais do século XIX com a assumida finalidade de ser um banco católico, foi um dos principais bancos privados italianos. A sua ruína começou quando o seu principal responsável, Roberto Calvi, foi envolvido no escândalo da loja maçónica P2 (Propaganda-2) e foram descobertas profundas ligações com o Banco do Vaticano e com operações ilegais. Deste escândalo resultaria o afastamento do todo-poderoso arcebispo Paul Marcinkus, o chefe do Banco do Vaticano.
[5] “Mãos Limpas” (Mani pulite em italiano) foi um processo de investigação judicial de envergadura nacional, realizado nos anos 90 do século passado, que teve como objectivo acabar com a corrupção política. A operação resultou no fim da chamada Primeira República e na extinção de muitos dos partidos então existentes ao expor as relações entre políticos e industriais e a existência de enraizado sistema de subornos. Além de algumas condenações em tribunal resultaram ainda o suicídio de algumas das figuras envolvidas.
[6] A Enimont foi uma empresa resultante da fusão de interesses de dois dos gigantes industriais italianos, a empresa pública ENI (petrolífera) e a MONTEDISON (grupo industrial, química, e financeiro), mas que teve uma curta duração face às lutas internas pelo controlo da maioria do seu capital e que por via dos muitos subornos pagos a partidos políticos, durante todo o processo da constituição e da dissolução, arrastou consigo o prestígio da Primeira República Italiana.
[7] Desconheço a existência de tradução para a obra de Curzio Maltese, mas a versão original de «La Questua» pode ser facilmente encomendado na Internet.
[8] A obra de Gianluigi Nuzzi, «Vaticano S.A.» tem tradução recentemente editada pela Editorial Presença.
[9] A título de exemplo veja-se esta notícia do PUBLICO.
[10] Veja-se a notícia do DIÁRIO DIGITAL que refere o apelo de Angela Merkel nesse sentido.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

MOÇÃO DE CENSURA

Ainda mal tinha começado a semana e já se podia dizer sem margens para dúvidas qual iria ser o assunto dominante.

Na actual conjuntura nem mesmo o anúncio de mais uma alocução presidencial poderia retirar a primazia à moção de censura ao Governo que o PCP anunciou que iria apresentar. Não pela dúvida no resultado, mas principalmente pelo “ruído” que a mesma iria provocar e pela curiosidade de ver quem, qual casca de banana, nela iria escorregar.
Apresentada pelos proponentes como indispensável e «…expressão clara de rejeição de um caminho de estagnação económica, retrocesso social e de liquidação da soberania nacional [e] da necessidade de ruptura e mudança…»[1] em poucas horas ficou claro o que nunca foi duvidoso desde o início. O Governo, pela voz do próprio José Sócrates não resistiu a classificar a iniciativa parlamentar do PCP de “lamentável” e “irresponsável” como se nada mais pudesse ser feito além daquilo que o seu governo já fez.

Mais curiosa (mas nem por isso menos ridícula) foi a rápida posição do PSD, cujo líder parlamentar veio prontamente informar que o seu partido se absteria na votação alegando que «…apesar de o Governo “merecer censura”, o país “não se pode dar ao luxo” de ter uma “crise política” na actual conjuntura de crise económica e financeira»
[2], como se o real problema do PSD não fosse o facto de não querer ver-se na contingência de ter que substituir o PS no governo, por continuar sem encontrar solução para o dilema com que se debate há um par de anos – a sua incapacidade de realizar as políticas que o PS está a realizar.

O CDS, fazendo fé nesta notícia da Rádio Renascença, começou por anunciar, beatificamente, que iria estudar o texto da moção antes de decidir (seguramente para melhor ponderar se deveria votar contra ou abster-se), mas rapidamente decidiu pela abstenção, como informou aqui a TSF, até para que Portas não fique atrás de Passos Coelho.

A decisão também já anunciada pelo Bloco de votar favoravelmente a moção do PCP, atira definitivamente o governo de Sócrates e as políticas que tem vindo a aplicar para o lugar certo – o da direita.

Infelizmente o texto da moção de censura (
que pode ser lido aqui) que é razoavelmente específico nas origens e nas razões para o actual estado das economias é vago ou mesmo omisso quando se trata de avançar com ideias ou medidas concretas, porque nem em Portugal nem em qualquer outro país bastará mudar este (ou outro qualquer) governo para resolver ou apenas melhorar aquela situação.

Por mais correcto, justo ou lógico que seja apontar a necessidade de melhorar as políticas fiscais e redistributivas e denunciar a verdadeira atrocidade que consiste em atirar os ónus da situação sobre quem trabalha (tanto mais que a continuar o ritmo de crescimento da taxa de desemprego não tardará que seja necessário novo agravamento fiscal sobre os “felizardos” que ainda não tenham sido despedidos) o PCP (e a esquerda em geral) continua sem lograr apresentar de forma clara uma alternativa – por exemplo, a efectiva transformação do crédito numa utilidade pública e uma profunda redução da capacidade do sistema financeiro gerar a sua própria moeda.

Como tenho vindo a referir em múltiplas ocasiões, apenas a redução do peso do sector financeiro, a aplicação de regras rigorosas sobre a actividade bancária (incluindo a extinção de iníquos benefícios como os dos “offshores”) e a recentragem dos modelos de desenvolvimento económico na esfera efectivamente produtiva da economia é que poderão contribuir para a resolução de problemas como o do desemprego e do crescimento económico.
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[1] Citação retirada desta notícia do PUBLICO.
[2] Citação retirada desta notícia do PUBLICO.

domingo, 16 de maio de 2010

INEVITÁVEL E FÁCIL DE PREVER

Foi com estas palavras que o ainda governador do Banco de Portugal se referiu à recente decisão do governo de José Sócrates de aumentar os impostos e que o ECONÓMICO usou como título desta notícia.
Não faço esta referência por estranhar as medidas decididas pelo governo nem conteúdo das declarações de Vítor Constâncio, mas tão somente para introduzir outra declaração referida naquela notícia, nomeadamente a afirmação de «as medidas anunciadas [...] são importantes para assegurar o financiamento de Portugal nos mercados».

A afirmação de Constâncio insere-se naquela que pode ser hoje considerada como um “mantra
[1] das modernas sociedades ocidentais – a omnipresença e omnipotência dos “mercados” – que sem igual rege o dia-a-dia dos pobres e tristes mortais, como nós.

O problema é que a falta de isenção e de rigor técnico dos jornalistas e dos economistas, a quem aqueles dão voz, resulta no avolumar da ideia que para combater o défice excessivo não existirá outra alternativa ao agravamento fiscal. Sobre a redução da despesa pública pouco ou nada é dito ou escrito em concreto, salvo para a necessidade de redução da componente dos gastos com salários, bem como sobre a imperiosa necessidade de aplicação de critérios de rigor e boa gestão sobre os efectivos e sobre as despesas correntes da maioria dos ministérios, secretarias, repartições e demais instituições públicas (como sejam os tão populares institutos e fundações que ultimamente se têm multiplicado como cogumelos), autarquias e restantes organismos locais.

É óbvio que nunca esperaria de uma alta individualidade (e para mais dum governador dum Banco Central recentemente eleito para o BCE) qualquer afirmação que pusesse em dúvida quer os seus prodigiosamente elevados conhecimentos económicos e financeiros quer o seu apego à defesa das regras do jogo financeiro mundial, mas talvez não fosse necessário fazer tábua rasa da realidade em que vivemos e produzir afirmações como a de que «…as empresas portuguesas são as mais endividadas da União Europeia, mas que as famílias não têm problemas de liquidez», apenas, e tão só, para justificar as opções governativas de privilegiar o aumento dos impostos indirectos.

Talvez Constâncio, já em plena fase de mudança para Frankfurt, tenha esquecido as conclusões apresentadas pelo “seu” Banco de Portugal em Maio de 2009 quando assegurava que o «
Endividamento das famílias portuguesas é o segundo mais elevado da Europa», que este representava já 135% do rendimento disponível, quando em Maio do ano anterior fora noticiado que o «Endividamento das famílias portuguesas sobe para 129% do rendimento disponível», e que a tendência era para o seu aumento ou a opinião que em Maio de 2009 defendeu perante a Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças de que «cortar salários agravaria recessão em Portugal».

A velocidade e a facilidade com que políticos e pretensos técnicos mudam de opinião, justificadas agora de forma oportunista pela situação conjuntural, só consegue ter comparação com a desfaçatez como mentem sobre a realidade. A crise que atravessamos não começou agora, nem os seus mais de dois anos de duração permitem que alguém minimamente sério a rotule de fenómeno conjuntural, pelo que continuara a propor panaceias orientadas para os seus reflexos conjunturais – por mais graves e preocupantes que estes sejam – nunca irá resolver o problema.

Quando se torna cada vez mais evidente que a origem da crise global é muito mais profunda que o que persistem em nos fazer crer, apenas razões de natureza diversa das invocadas podem explicar o atavismo e a ineficácia dos decisores mundiais perante o problema. Na realidade nenhum dirigente político (no poder ou no seu círculo que incluiu aqueles que alimentem esperanças de o alcançar em breve), nacional ou estrangeiro, dispõe da indispensável vontade para enfrentar o problema de fundo: o sistema capitalista mundial atravessa uma fase de mutação sistémica[2] e as suas contradições internas são de tal modo profundas que se revela absolutamente incapaz de formular uma via para ultrapassar a sua actual situação.

Exemplo dos elevados níveis de incerteza que grassam entre as populações e das limitações das elites políticas podem ser observados no dia-a-dia nas reacções (e em especial nas oportunidades em que os eleitores são chamados às urnas, como recentemente aconteceu no Reino Unido e na Alemanha) e no constante ziguezaguear das medidas anunciadas pelos governantes; a facilidade com que os dirigentes desdizem hoje o deram como assegurado na véspera, prometem para amanhã o que ontem disseram que nunca fariam, não é apenas reflexo da respectiva incompetência, mas também sinal claro da sua mais completa capacidade (e da dos seus mentores) para verdadeiramente entenderem a realidade que os rodeia.

Inevitável e fácil de prever é, como venho dizendo há algum tempo, que as medidas até agora tomadas quer a nível interno, quer a nível da UE, quer nos restantes países (com os EUA à cabeça), são totalmente desadequadas para resolver os problemas. Ninguém alguma vez conseguiu, ou conseguirá resolver problema de natureza estrutural com meros paliativos de dimensão conjuntural. Enquanto esta realidade (difícil de “engolir” para todos aqueles que não têm vindo a fazer outra coisa que servir os interesses dos que nos arrastaram para esta situação) não for entendida pela generalidade dos cidadãos e estes não entregarem a condução dos países e das economias a quem tem vindo a postular, de forma fundamentada, a necessidade de novas políticas e de novas práticas, estaremos condenados a assistir pacificamente ao inexorável “afundar do barco”.
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[1] Um “mantra”, na acepção hindu ou budista é um som, sílaba, palavra, frase ou texto, que detenha um poder específico.
[2] Uso a expressão mutação sistémica no sentido em que perante uma crise da amplitude e profundidade da actual apenas grandes mudanças de paradigma (a organização das principais economias mundiais segundo os ditames e as regras da designada economia de mercado é apenas um dos paradigmas em que assenta o Mundo actual) poderão responder de forma eficaz às actuais necessidades. Se observada do ponto vista histórico a génese da economia capitalista representou a resposta à falência e à desagregação do modo de produção feudal, também agora, numa fase de profundas convulsões do sistema capitalista, poderá haver lugar à concepção de um novo modelo de produção que resolva as insuficiências (sobretudo no capítulo da distribuição da riqueza produzida) e as contradições (no plano económico, entre os sectores produtivos e as franjas especulativas do capital) que não têm parado de aumentar.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

NÃO OUVIR, NÃO VER E NÃO FALAR... DO MAL

Este deve ser o moto secreto da Igreja e do seu principal representante, pois este fala, fala e pouco ou nada diz sobre as questões (e não são poucas nem isentas de polémica) em que aquela se encontra cada vez mais envolvida, ou que preocupam, de forma cada vez mais premente, os seus fiéis.

Como se não bastasse o facto da hierarquia da Igreja Católica nunca ter conseguido ultrapassar de forma clara e sem ambiguidades a época em que concentrava todos os poderes e de continuar sem revelar sinais de capacidade (ou vontade) para lidar com a actualidade e com as necessidades e os anseios dos grupos mais progressistas dos seus fiéis, a Igreja que Ratzinger dirige debate-se com um avolumar constante de escândalos aos quais vai reagindo de forma parcimoniosa e quase sempre desastrosa.

A apregoada piedade e amor ao próximo são cada vez mais figuras de estilo quando não pura letra morta, reminiscências de outras eras que muitos dos seus membros deverão questionar interiormente se realmente alguma vez existiram.

Talvez desde os tempos do polémico Pio XII (papado que muitos historiadores apontam como pouco crítico ou mesmo conivente com a hierarquia nazi alemã e que terá até funcionado como meio de encobrimento e de fuga de inúmeros daqueles responsáveis para fora da Europa) que a Igreja Católica não conhecia uma fase de popularidade tão baixa, razão que estará na génese da deslocação a Portugal do actual Papa.

Necessitando de voltar a mostrar ao Mundo banhos de multidão como os que conheceu o seu antecessor (João Paulo II foi sem qualquer resquício de dúvida um actor de mão cheia que poderia bem ter ombreado com muitas das estrelas de Hollywood) que melhor escolha poderia ter sido feita senão a de uma visita a um santuário localizado num país maioritariamente católico (que ainda não logrou libertar-se das peias impostas por uma Concordata subscrita nos tempos de um regime totalitário) e cujos poderes estabelecidos não enjeitariam a oportunidade de aparecer na “fotografia”, nem se atreveriam a provocar-lhe o menor embaraço. Num dos países mais atrasados da Europa (tanto do ponto de vista cultural como do económico) a presença de público era garantida e a bonomia dos governantes (para não falar de pura subserviência) fica cabalmente demonstrada no pronto encerramento da capital do país para que o “ilustre visitante” se possa deslocar em segurança.

Sobre a completa falência dos valores éticos e morais de muitos dos seus membros, mais proeminentes, sobre a perpetuação da exibição de uma opulência ainda mais escandalosa em tempos de crise e sobre os custos que a visita do Papa teólogo acarretarão[1] para um orçamento de Estado que se apresta a ser engordado à custa de aumentos de impostos e da criação de impostos extraordinários sobre os que trabalham, quase não se ouve uma palavra.

Pelos vistos já não é só a Santa Madre Igreja que cultiva a renúncia à realidade (tanto mais quanto esta seja adversa); agora é quase todo um Povo (o português) que aplaude ou assiste passivamente a mais este espectáculo enquanto lhe vazam tranquilamente os bolsos.
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[1] A atestar por notícias da imprensa (REGIÃO DE LEIRIA) só em obras o Município de Leiria deverá gastar um mínimo de meio milhão de euros nas imediações do santuário e as duas missas campais em Lisboa e Porto deverão orçar noutro tanto (segundo esta notícia do CORREIO DA MANHÃ); quanto às despesas na recepção ao “chefe de Estado do Vaticano” não foram divulgados números, da mesma forma que não terão sito feitas grandes contas aos milhões de horas de trabalho “oferecidas” aos funcionários públicos, comprovando à saciedade que afinal sempre existem valores mais altos que a sacrossanta produtividade.

domingo, 9 de maio de 2010

AS ELEIÇÕES INGLESAS

As muito aguardadas eleições inglesas ditaram os resultados esperados… Bom talvez não!

Talvez o líder dos “Tories[1] ainda acalentasse as esperanças de uma maioria parlamentar que as sondagens (e as inúmeras asneiras do inqualificável Tony Blair e do triste Gordon Brown) lhe chegaram a augurar, mas que a realidade (ou a conjugação do bizarro sistema de eleição uninominal e o resultado dos Liberais-Democratas de Nick Clegg) acabou por lhe negar.

A maioria relativa alcançada pelos Conservadores constitui uma raridade numa vida política inglesa programada para gerar maiorias parlamentares, mesmo que contrariando o sentimento (e o sentido de voto) dos eleitores. Pela segunda vez em 36 anos (a última foi em 1974 quando o conservador Edward Heath sofreu uma situação idêntica à que agora vive Gordon Brown) o Parlamento Britânico não apresenta uma maioria estável conservadora ou trabalhista facto que, dada a actual conjuntura económica mundial, poderá até não ser muito estranho, pois já em 1929 (no início da Grande Depressão) ocorreu uma situação idêntica.

A dispersão do eleitorado pode não constituir mais que um sinal da profunda crise que todos atravessamos e a confirmação de que o sistema da alternância bipartidária, tão do agrado e do interesse das elites económicas, começa a ser questionado pelas populações.

A ausência de verdadeiras soluções para os problemas que diariamente afectam as populações, por parte de qualquer da forças em contenda, ficou bem evidente durante a campanha eleitoral inglesa – facto que poderá ter estado na origem do sucesso televisivo de Nick Clegg – fazendo renascer a ideia de que nenhum dos partidos dispõe no seu interior do conhecimento nem das condições para enfrentar a actual conjuntura e até, quiçá, a ideia que substituir os trabalhistas pelos conservadores nada iria mudar na realidade.

A situação económica mundial e a problemática situação das finanças públicas inglesas, cujo défice em 2009 rondou os 12% do PIB (maior que os da generalidade das economias europeias e apenas suplantado pelo grego), constituem mais do que um presente envenenado para quem quer seja o futuro governo e, tudo o indica, proporcionará a já muito gasta situação de vermos dentro de umas semanas os novos governantes a anunciarem que a situação inglesa é muito pior do que alguma vez tinham imaginado (como se nos “corredores” políticos todas as formações não dispusessem já dessa informação) e que novas e maiores medidas de austeridade serão necessárias.

A própria imprensa já se vai fazendo eco de que a «Incerteza deixa os mercados nervosos», notícia que não constituirá mais que um primeiro aviso para o que se seguirá; como chamei a atenção no “post” «O Anel de Fogo» a situação financeira inglesa e da libra é muito mais frágil que a da generalidade dos países do Eurogrupo e do euro.

Aquela fragilidade, conjugada com a conturbada situação política inglesa, irá acelerar o processo especulativo que em pouco tempo poderá mergulhar a economia inglesa numa espiral de problemas que irão muito além das dificuldades de refinanciamento da sua dívida pública, pois a capacidade (e muito provavelmente a própria vontade política da Zona Euro) dos seus parceiros comunitários além de reduzida encontra-se profundamente dividida pela duplicidade que tem caracterizado a actuação inglesa no seio da UE.

Dividida, no plano interno, entre conservadores e trabalhistas; no plano comunitário, entre uma União que nunca a entusiasmou e um proteccionismo envergonhado; no plano internacional, entre os despojos de uma Commomwealth e uma América que sempre a usou como apêndice mas nunca como parceira, a situação da velha Albion[2] e de quem quer que venha a assumir nos tempos próximos o seu governo, é tudo menos invejável e justifica bem que os ingleses se sintam à beira de um ataque de nervos e a necessitarem desesperadamente de uma boa chávena de chá…

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[1] Tradicionalmente a câmara baixa, ou dos Comuns, do Parlamento Britânico era dividida em duas alas, os “Tories” e os “Whigs” consoante as posições dos eleitos se revelassem mais conservadoras e de maior apoio à coroa ou mais liberais. Com a progressiva organização e ascensão das modernas formações políticas a designação foi caindo em desuso, excepto para os Conservadores que ainda hoje são vulgarmente designados por “Tories”.
[2] Albion é uma designação arcaica e alternativa para o território que hoje conhecemos como Grã-Bretanha.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

A ERA DOS VULCÕES

Esta podia bem ser a forma como ficará para a História a turbulência que está a agitar a velha Europa.
Despoletada pelo eclodir da crise orçamental grega (economia da Zona Euro que primeiro sentiu os efeitos conjugados da crise económica global e da acumulação de elevados défices orçamentais), ampliada pela actuação especulativa originada em Wall Street e na City e tendo como objectivo final a moeda europeia, esta agitação resiste aos anúncios quase diários de novas medidas económicas.

É assim que após o anúncio pelo governo grego de medidas ainda mais restritivas e uma primeira aparente reacção positiva das bolsas, tudo voltou ao “normal” e os mesmos analistas e comentadores que aplaudiram as iniciativas governamentais para “salvar” a Banca são aqueles que agora, depois de terem apelado a idêntica atitude face ao “problema grego”, dizem que os problemas estruturais da economia helénica e da Zona Euro permanecem imutáveis. Por outras palavras, os especialistas que nunca revelaram a mínima preocupação com questões estratégicas ou de médio/longo prazo, como a necessidade de reestruturar o funcionamento das economias e dos mercados liberalizados, são aqueles que revelam agora tais preocupações e vêem invocar semelhante tipo de questões.

Se dúvidas houvessem quanto à real natureza da sua actuação e dos seus comentários, estarão respondidas com esta simples analogia.

Mas, como haverá quem continue a preferir acreditar no que ouve dizer do que naquilo que a lógica determina, a resposta definitiva àquela questão está para breve quando aos anunciados “vulcões” islandês, irlandês, grego, português, espanhol se juntarem o inglês e o americano.

Às próximas eleições na Grã-Bretanha e na Alemanha[1] e às quase seguras mudanças nas respectivas cenas políticas deverão seguir-se os anúncios da “descoberta” de novos e preocupantes valores para o endividamento público (com especial destaque para o caso da velha Albion cujo défice anual já ultrapassa os 12% do PIB) e uma mais que provável sucessão de novas quebras na cotação da Libra e do Euro e de subidas nas taxas de juro.


Esta previsão deriva de duas realidades diferentes – a óbvia influência das perspectivas de evolução política nos cenários económicos e nas expectativas dos investidores e da evidência de que a incerteza é o motor principal das transacções bolsistas e a fundamentação básica da especulação a elas associadas – e bem diversas das avaliações macroeconómicas que se possam fazer sobre os dados estatísticos nacionais. É por isso que a agitação especulativa que tem imperado sobre o Euro se mantém independentemente das declarações de técnicos e políticos sobre a situação das economias nacionais ou sobre a situação da moeda europeia.


Ao que tudo indica não será a tibieza da acção política da UE, seja ela originada na presidência da EU (função actualmente desempenhada pela Espanha), na presidência da Comissão Europeia (onde pontifica o “nosso” Durão Barroso) ou no Presidente da UE (lugar ocupado por Van Rompuy), que poderá contribuir para resolver uma crise que vai muito além dos limites (sejam eles de natureza física, sejam de natureza ideológica e funcional) da dimensão europeia e em especial da total ausência de união política.


Como em certa medida começa a ser crescentemente referido por alguns observadores
[2], o problema fundamental da UE não é o da fragilidade das economias de cada um dos seus estados-membros, mas o colossal erro que consistiu em ter lançado um processo de integração monetária sem o mínimo resquício de integração política e de harmonização fiscal.


E porque (lá reza a sabedoria popular) “um azar nunca vem só”, àquele erro há ainda que somar um outro, mais antigo, mais insidioso e de proporções ainda maiores: a entrega do poder de criação de moeda à iniciativa privada. Este facto, aparentemente tão simples, a par com a crescente pauperização das famílias conduziu a que os Estados passassem a financiar-se quase exclusivamente junto do sector financeiro o que ainda mais rapidamente originou que aqueles começassem a contrair novas dívidas para suportar os crescentes encargos.


Assim e na ausência de sinais que minimamente indiciem qualquer mudança de rumo, os problema de que padecem as moedas e as respectivas economias parecem sem solução consistente e duradoura; as medidas pontuais (como as que tardiamente foram tomadas relativamente à Grécia) mais não farão que minimizar momentaneamente as dificuldades, adiar e aumentar os respectivos custos e perpetuar um ciclo de enriquecimento que, depois de ter exaurido as famílias e de ter liquidado grande parte dos sectores económicos se prepara agora para destruir os Estados.
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[1] Em ambos os países se realizarão eleições no próximo fim-de-semana (eleições nacionais no caso inglês e regionais no caso alemão) e as sondagens prevêem resultados desfavoráveis aos partidos ou coligações no poder; os trabalhistas de Gordon Brown deverão ceder a maioria aos conservadores, embora seja difícil de prever a respectiva dimensão e haja mesmo quem preveja a formação de um Parlamento particularmente fraccionado, enquanto a coligação entre os alemães da CDU e do FDP enfrenta a forte probabilidade de perder o governo do estado da Renânia do Norte-Vestefália (o maior do país) para uma coligação liderada pelo SPD (sociais democratas).
[2] Entre estes cite-se o artigo recentemente assinado por Wolfgang Munchau, sob o título «A Europa tem duas opções: integrar-se ou desintegrar-se» publicado no ECONÓMICO.

domingo, 2 de maio de 2010

O ENCONTRO

Parecem restar cada vez menos dúvidas que após a tormenta financeira, despoletada pela crise do “subprime” nos EUA, se seguiu uma profunda crise económica global e que ao que tudo indica esta vem acompanhada de uma cada vez mais provável crise financeira dos Estados.

Invoque-se (ou não) o papel dessa entidade quase mítica que são os “mercados” para explicar ou tentar justificar o que está a acontecer um pouco por todo o lado, a realidade é que todos nós – famílias, empresas, governos... – nos colocámos a jeito
[1].

E a prova de que tudo o que nos está a acontecer a nós se deve – seja pela forma como trabalhamos e gerimos as empresas, seja pela forma como participamos (ou não) na vida política nacional e local –, foi cabalmente transmitida pelo muito badalado encontro entre o primeiro-ministro, José Sócrates, e o líder do maior parido da oposição, Pedro Passos Coelho.

Se dúvidas houvesse que grande parte da responsabilidade pelo crescimento do défice público nacional se deve àqueles dois partidos e que estes tudo farão para que nenhuma das medidas necessárias a uma cabal inversão do modelo monetário e de endividamento em que vivemos, poucas deverão restar depois da encenação a que os líderes do PS e do PSD se prestaram.

Mais, o visível silêncio do Presidente da República – em última instância o principal responsável pelas acrescidas dificuldades políticas com que se debate a governação do país – que para alguns sectores é interpretado como intenção de deixar todo o campo de manobra ao Governo para gerir a situação, não passa de uma mera manobra táctica de quem se aproxima a passos largos da corrida para a renovação do cargo.

Que a crise (seja ela financeira, económica ou apenas de confiança) é um mal geral não pode continuar a servir de argumento para que os responsáveis se eximam ao justo escrutínio e ao pedido de explicações dos cidadãos. Mais que nunca ao Presidente da República e aos partidos com representação parlamentar devem ser exigidas explicações sobre as estratégias que levaram a que no último trimestre de 2009 (e já com o cenário da crise financeira grega bem visível) fosse aceite a constituição de um governo monopartidário e minoritário que visivelmente não dispunha das condições mínimas (nem políticas, nem de credibilidade) para produzir qualquer estratégia digna desse nome direccionada ao combate aos verdadeiros problemas nacionais: a ausência de estratégias de crescimento económico (e consequentemente de combate ao desemprego) e o crescimento insustentável de uma dívida pública que continuava a ser orientada para despesas de reduzida ou nula eficácia económica, como sejam as grandes obras públicas traduzidas na construção de mais auto-estradas, de novos aeroportos e de espúrias vias de alta velocidade.

Enquanto se anunciam novas e mais draconianas medidas de redução do défice (traduzidas maioritariamente na redução de benefícios sociais e do poder de compra das famílias), quando na imprensa se avolumam os comentários dos especialistas predizendo ou preconizando a inevitabilidade de novo aumento da carga fiscal, os políticos que nos conduziram à situação actual mostram-se em público muito preocupados e empenhados na busca de soluções enquanto em privado assobiam para o lado...

Não afirmo isto pelo facto de nada ter transparecido para o público sobre o teor da conversa entre Sócrates e Passos Coelho (ainda pertenço ao grupo dos que entendem perfeitamente que muitas conversas devem permanecer entre os que nelas participam, sobretudo se isso significar a manutenção de condições para a continuação do diálogo), mas sim porque destes políticos (mesmo ressalvando a relativa novidade que poderá constituir Passos Coelho) e das suas ideias pouco poderá advir que efectivamente contribua para a ruptura do ciclo de endividamento que é originado por um modelo financeiro que retirou aos Estados a capacidade para a criação da sua própria moeda.

Talvez leve ainda muito tempo, mas chegará o dia em que os cidadãos entenderão que reside nas suas próprias mãos a possibilidade de inverter este ciclo que tem ditado o enriquecimento de muito poucos à custa do empobrecimento de todos os outros.
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[1] A expressão foi recentemente popularizada pelo Presidente do BCP, Santos Ferreira, na apreciação que fez sobre a situação financeira nacional durante a sessão de apresentação de lucros daquele banco e pode ser lida (e ouvida) aqui.

sábado, 1 de maio de 2010

LIBERDADES

É particularmente estranho que quase concomitantemente com a data em que se celebra a liberdade de associação sindical (um dos direitos básicos em qualquer sociedade que se pretenda livre e democrática) um dos estados-membros da UE tenha aprovado legislação que proíbe o uso do véu islâmico em locais públicos.

Antecipando-se a uma anunciada iniciativa francesa (o inefável Sarkozy está em todas) e sob pretextos de natureza securitária, de igualdade do género e de defesa de “princípios democráticos fundamentais”, os parlamentares da câmara baixa belga aprovaram esta semana uma lei que, na prática, discrimina os praticantes islâmicos e para cuja entrada em vigor falta apenas a aprovação da câmara alta (Senado).

A decisão, prontamente difundida pela comunicação social e rapidamente apoiada pelos grupos mais conservadores ou mais xenófobos, constitui apenas mais um claro exemplo da caricata preocupação dos poderes estabelecidos em legislarem sobre matérias de dúbia utilidade quando paralelamente revelam a maior das inépcias em legislarem sobre questões, como matérias laborais, salariais e outras de natureza económico-social, que, essas sim, ferem diariamente os mais elementares direitos dos cidadãos.

Ninguém negará que é muito mais fácil (e talvez até rentável em períodos eleitorais) legislar sobre o uso de véus, o fumo ou a obesidade (mais dia menos dia este será fatalmente tema de uma qualquer proibição), que procurar soluções para o uso abusivo das ditas “liberdades dos mercados” ou para outros abusos e desmandos praticados pelos que rodeiam as esferas do poder político e do poder económico, como aqueles de que regularmente vamos tendo conhecimento.

Era óbvio que após o precedente suíço da proibição da construção de minaretes[1] (elementos arquitectónicos julgados estranhos na paisagem, quando nada é referido relativamente aos equivalentes católicos – as torres e campanários das igrejas – ao à profusão de verdadeiros atentados arquitectónicos de duvidoso gosto) chegaríamos a outras formas de ostracismo e de perseguição aos que pensam ou agem de forma diferente.

Precisamente por reconhecer que existem valores e regras sociais próprios das sociedades ocidentais que se deverão sobrepor a princípios religiosos minoritários (estou por exemplo apensar na questão da poligamia masculina prevista nos princípios islâmicos e que colide de forma objectiva com as regras seculares ocidentais[2]) é que julgo que decisões lamentáveis e quase ridículas como estas mais não farão que acicatar ânimos e justificar os radicalismos (e bem sabemos como os piores destes são os de fundamento religioso) que os representantes das sociedades democráticas tanto dizem combater.

O facto da decisão ter sido tomado pela quase totalidade dos parlamentares (sem qualquer voto contra e apenas duas abstenções) não reduz o seu caracter de arbitrariedade e ainda o enorme precedente criado; é que se agora os deputados belgas resolveram proibir o véu, amanhã poderão resolver proibir o uso de barbas ou bigodes e depois o uso de cabelos compridos ou curtos.

Mais que nunca o apelo à coesão dos que prezam os valores da liberdade de expressão e de opinião será determinante para as sociedades seculares enfrentem os ventos de insanidade e intolerância que sopram por esse mundo fora.
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[1] Sobre o assunto ver algumas notícias da época, como:«Suíços banem minaretes das mesquitas do país», «Le coup de massue», «Le vote suisse, "insulte à l'islam" et "signe de haine"» e «Swiss voters back ban on minarets», publicadas respectivamente pelo DN, pelo Le Temps, pelo Le Monde e pela BBC.
[2] Esta não é questão única na polémica gerada pela presença de grupos religiosos particularmente activos em sociedades crescentemente seculares. Sobre esta questão ver este interessante artigo de Stéphanie Le Bars, muito adequadamente intitulado «Les sociétés européennes crispées face à l'enracinement de l'islam».

terça-feira, 27 de abril de 2010

DIAGNÓSTICOS...

É interessante que depois dos “avisos” sobre a inoperância dos governos dos diferentes países relativamente ao desenvolvimento da crise e à necessidade de uma rápida reformulação dos termos de funcionamento das instituições financeiras que em várias oportunidades tenho vindo a lançar, se possa hoje ter lido no ECONÓMICO que segundo Nouriel Roubini «Os Governos falam em reformas mas não as implementam».

Esta afirmação – pomposamente usada para título da notícia – é apenas uma parte do ponto de vista daquele analista que, tal como escrevi no passado fim-de-semana, salienta a existência de muitas outras economias em situação particularmente frágil, como a inglesa, a americana e a japonesa.

O tema além de pouco aprofundado, corre o risco de passar quase despercebido no manancial da restante informação, que varia desde o catastrófico «Portugal mais próximo da bancarrota» (como noticia o EXPRESSO), passa pelo aviso do JORNAL DE NEGÓCIOS de que «Risco da dívida de Portugal, Grécia e Espanha em máximos históricos» e pode até concluir-se com as opiniões (também lidas no ECONÓMICO) de Ricardo Reis que pressagia que «Portugal terá um ‘crash’ se continuar sem crescer» ou as de Vítor Bento que coloca ênfase na necessidade que «Portugal tem de estabilizar rápido o rácio de dívida», que sendo questões importantes apontam mais para acções pontuais (sempre necessárias para a correcção dos pequenos desvios) que para aquelas que pela sua natureza e extensão se revelam cada vez mais indispensáveis para um combate eficaz a à crise global que vivemos.

domingo, 25 de abril de 2010

A LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI

Apesar do arrazoado que há alguns meses se vez ouvir pela imprensa nacional e em especiais pelos canais televisivos, poucos terão dúvidas que com o fim do Estado Novo tem soprado um persistente vento de liberdade.
Mesmo durante o período de apogeu e declínio da ditadura corporativa/fascista, que teve em Oliveira Salazar o seu representante maior, sempre foram soprando algumas trovas e outros dizeres que incendiaram almas e fizeram renascer esperanças… que mantiveram a chama e o apego a esse bem maior que, goste-se ou não, saiu para a rua numa manhã de Abril.

Trinta e seis anos volvidos continua a haver quem (com a mais desavergonhada desfaçatez) a confunda com fazer o que muito bem se quer sem cuidar dos direitos dos outros, mas ainda assim é preferível isso, e a possibilidade de tal denunciar, que ver todo um Povo vergado a um qualquer clima de medo; até quando esse mesmo Povo parece resignado ao infortúnio de continuar a ser mal governado – e esbulhado do orgulho e da vontade de dizer BASTA – e temeroso de uma bancarrota que a incapacidade e os desmandos dos mandantes tornou possível de acontecer.

Trinta e seis anos volvidos continuamos a apresentar um tecido produtivo retrógrado e anquilosado, que nunca se conseguiu libertar dos preconceitos (e das vantagens) corporativistas do condicionalismo industrial, ansioso pela protecção e as benesses de um Estado que quer ver a funcionar à sua imagem e semelhança e visceralmente agarrado a um modelo de baixos salários.

Trinta e seis anos volvidos continuamos a revelar-nos incapazes de fazer funcionar os mais básicos dos mecanismos de equilíbrio social, como sejam um sistema de ensino onde os jovens adquiram efectivas capacidades e competências, um sistema de saúde onde TODOS sejam objecto de cuidados adequados e um sistema de redistribuição da riqueza produzida que efectivamente reduza as desigualdades.

Trinta e seis anos volvidos parece termos esquecido o brilho das alvoradas e a capacidade de sonharmos…mas nem todos, de quando em vez sempre se vai ouvindo uma ou outra voz que lembra (para escândalo e pronto repúdio dos Novos Senhores) que a LIBERDADE ESTÁ A PASSAR POR AQUI!

sábado, 24 de abril de 2010

O ANEL DE FOGO

O cenário descrito no “post” anterior e as dúvidas que tenho vindo a colocar sobre a verdadeira origem e fundamentação das notícias e dos comentários sobre a dívida pública (e o risco soberano) denominada em euros já deveria ter sido suficiente para, no mínimo, lançar a dúvida sobre a ideia de cerco que pretendem criar em torno do Euro e da dívida denominada nessa moeda.

É que importa não esquecer que contrariamente a uma ideia corrente a actual crise não é produto meramente circunstancial mas sim o resultado do esgotamento do modelo de desenvolvimento que resultou da correlação de forças no final da II Guerra Mundial as quais sempre têm sido geridas em benefício de americanos e ingleses (os verdadeiros arquitectos do modelo financeiro acordado em 1944 em Bretton Woods), mas que agora apresenta fraquezas estruturais que se têm vindo a revelar cada vez mais insanáveis.

É precisamente por não estarmos a atravessar uma mera crise conjuntural que a sucessão de rápidos e cada vez mais graves acontecimentos não pode ser ignorada e ainda menos escamoteada das análises e das medidas com as quais governos, bancos centrais e demais agentes políticos e económicos se propõem enfrentá-la.

A realidade que se tem pretendido criar em torno do Euro e dos países do Eurogrupo, ganha outra dimensão (e clareza) quando observada numa perspectiva gráfica como a que nos é dada pelo quadro apresentado pela Reuters; neste aparece representada a posição de cada Estado em função dos volumes de crédito contraído (défice total do sector público) e do peso do défice anual (em função do respectivo PIB), revelando a situação difícil de algumas das economias da Zona Euro, mas também a igualmente vulnerável situação dos EUA, do Reino Unido e do Japão.

Se é certo que Portugal integra o grupo de economias que simultaneamente apresentam maiores défices públicos (quando avaliados na dupla perspectiva do seu saldo e da variação anula relativamente ao respectivo PIB), não é menos verdade que o seu maior risco apenas poderá derivar da maior fragilidade da sua capacidade económica, pois economias tidas como mais pujantes (como por exemplo a japonesa, a inglesa e a americana) apresentam maiores volumes de endividamento (Japão) ou taxas de variação anual (Reino Unido e EUA) bem maiores e destes três casos a imprensa anglo-saxónica pouco ou nada refere.

Ora a confirmarem-se os cenários previsionais elaborados pelo “think tank” europeu LEAP (Laboratoire Européen d’Antecipation Politique) as economias mais susceptíveis de ruptura são precisamente a americana e a inglesa, facto que aliado ao peso que as mesmas representam na economia mundial (e em especial no segmento financeiro) e ao facto do dólar americano ainda continuar a ser utilizado como moeda de referência e de pagamentos internacionais explicará a quase ausência de referências nos meios de comunicação.

Sendo uma realidade que Portugal integra um grupo de países cuja situação financeira deixa muito a desejar e que nos últimos anos os governos (do PS, do PSD e do CDS) que têm dirigido os destinos do país usaram e abusaram do endividamento como via para a resolução da crónica falta de recursos, e pior, do endividamento como solução para o cumprimento dos encargos dos endividamentos anteriores) nem por isso a nossa situação é geralmente pior que a de outros países com economias bem mais fortes (e teoricamente bem mais sólidas), pelo que a solução para a situação não pode passar pela tratamento de cada caso de forma isolada.

Se no caso da Grécia a própria UE (com maior ou menor empenho individual de cada um dos seus estados-membros) já começou a dar sinais da necessidade de uma abordagem colectiva e isso constitui um primeiro sinal de que não irá abandonar a sua moeda à voragem dos interesses especulativos nem admitir que ela sirva de meio para a salvaguarda de interesses de terceiros (dólar americano e libra inglesa), a dúvida pode voltar a colocar-se no caso de aumentar o número de estados-membros a necessitar de apoio e os montantes de financiamento a desbloquear.

Mas esse (o da dimensão das necessidades de financiamento) é precisamente o principal problema que enfrentarão em breve ingleses e americanos, que em conjunto necessitam mais de 2 biliões de dólares, quando é conhecido o facto dos chineses estarem a reduzir a sua habitual apetência pela dívida norte-americana[1].

Já os ingleses, a somar às inevitáveis dificuldades resultantes da escassez de liquidez que continua a fazer-se sentir nos mercados e à crescente debilidade da Libra, terão que enfrentar ainda o acto eleitoral que decorrerá no principio de Maio, concluído o qual poderá muito bem ocorrer um fenómeno idêntico ao recentemente registado na Grécia e “descobrir-se” que a dimensão do défice público é bem superior aos valores oficialmente anunciados pelo governo trabalhista de Gordon Brown.

Dada a relevância que ainda é comum associar-se ao mercado da Libra (sem esquecer os estreitíssimos laços entre a City londrina e a americana Wall Street) qualquer perturbação nele originada espalhar-se-á rapidamente e as já diminutas hipóteses de renovação da dívida americana deverão esfumar-se a idêntica velocidade, com o evidente inconveniente (quando comparado com a dívida portuguesa, a grega ou de qualquer outro dos membros do Eurogrupo) de que aquele efeito propagar-se-á à velocidade da luz. E se os ingleses ainda poderão acalentar algumas esperanças de vir a beneficiar de alguns restos de solidariedade europeia[2], já os americanos dificilmente poderão contar com quem quer que seja tamanho é o montante das suas necessidades de crédito.

Assim, pressagiar a ocorrência de uma nova fase no desenvolvimento da crise global – a da insolvência dos Estados – é cada vez menos um exercício de futurologia barata mas uma dura realidade.
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[1] Ver esta notícia da Associated Press.
[2] A dúvida afigura-se tanto mais pertinente quanto é reconhecida a atitude britânica de persistente distanciamento face às políticas de integração europeia e quanto tem sido prejudicial à UE a estratégia de permanente aproximação entre Londres e Washington.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O RISCO SOBERANO

Pouco mais de quinze dias volvidos sobre o anúncio da decisão do Eurogrupo de apoiar financeiramente a depauperada Grécia e das primeiras notícias dando conta da reacção positiva dos mercados de capitais, eis que voltaram a ser notícia os problemas financeiros de outros países da Zona Euro.

Na primeira linha, como é evidente, não podia deixar de estar a economia portuguesa ou não fosse esta outra das mais endividadas; o estranho não é tanto aquele facto mas sim a forma cíclica como este tipo de notícias e comentários vão surgindo o que, somado a outros factores como sejam a persistência dos sinais de crise nos EUA e na Grã-Bretanha, a consequente fragilidade das respectivas moedas e os elevados níveis de endividamento, indicia que a verdadeira razão reside menos na realidade que descrevem que numa sustentada ânsia de propagandear os problemas alheios (nomeadamente os do Euro) como forma de escamotear os seus fantasmas e as suas próprias dificuldades.

A este factor, de natureza estratégica, deve ainda acrescentar-se um outro – a essência da actuação dos próprios intervenientes nos mercados de capitais e a inevitabilidade da aplicação das suas estratégias especulativas – para assim se poder compreender a verdadeira sustentabilidade das afirmações e o clima de terror que procuram instalar.

Porém, os interesses mais ou menos obscuros não podem justificar que as respostas àquelas críticas se resumam a silêncios comprometedores ou à mera denúncia dos óbvios interesses que lhes estão subjacentes. Queiramos ou não existe uma verdadeira fundamentação para os alertas – não só o nível do endividamento externo português é exagerado como as medidas propostas pelo governo de José Sócrates parecem insuficientes para inverter a situação – e de pouco servirá argumentar que os seus autores desconhecem a realidade da economia nacional ou que o que o que os move são meros objectivos especulativos.

Embora não esperasse ouvir de qualquer dos principais responsáveis nacionais ou comunitários declarações reveladoras de uma efectiva determinação para enfrentar o problema, não posso deixar de aqui referir duas que mais se destacaram; as recentemente proferidas pelo Presidente da República que disse que «Não acredito que se chegue a uma situação de bancarrota» – cuja essência se podia resumir a uma profissão de fé e como tal desprovida de fundamentação – ou as atribuídas ao comissário europeu dos Serviços Financeiros, o francês Michel Barnier, que defende a necessidade de «...pôr um ponto final a anos de escuridão, opacidade e comportamento secreto»[1] na produção e negociação de produtos derivados.

Tranquilizem-se os mais impressionados por esta ideia, pois rapidamente o membro da Comissão dirigida por Durão Barroso se apressou a esclarecer que tudo será feito e concertado no contexto das reuniões do G20 que deverão decorrer em Junho e Novembro; por outras palavras, tudo continuará como até agora pois evidentemente os líderes mundiais deverão optar pela estratégia reconhecidamente comprovada de pouco fazer para que tudo continue como antes.

É evidente que embora o paradigma desta estratégia seja representado por declarações como a de Cavaco Silva, a quem pouco faltou para propor que se aproveite a próxima visita papal para usar a influência do que tem assento no cadeirão de S. Pedro junto dos céus e assim garantir que nada de mau nos aconteça, nem por isso a tonitruante ameaça de Barnier representa mais que uma pia (e completamente inócua) ameaça.

A estratégia de nada ver, nada ouvir e nada dizer continuará a ser a privilegiada por aqueles que dizem representar os interesses do Povo na condução dos negócios públicos e que entretanto vão mantendo inalteradas as condições para que as grandes empresas financeiras mundiais (e os seus accionistas) continuem a lucrar com o cenário de crise económica mundial que criaram.
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[1] A citação foi extraída do artigo do I ONLINE «Bruxelas acusa bancos de empurrar Portugal para a falência».

domingo, 18 de abril de 2010

A NOVA LUTA DE ELBARADEI

Os egípcios, modernos representantes de uma das mais antigas e grandiosas civilizações, e a sua especial situação política têm nos últimos meses merecido algum destaque na imprensa internacional.

Seja porque se aproxima a data de fim do mandato presidencial de Hosni Mubarak, seja porque recentemente parece ter surgido uma nova estrela, o ex-director-geral da AIEA (Agência Internacional para a Energia Atómica) e prémio Nobel da Paz 2005 – Mohamed ElBaradei, no intricado firmamento político egípcio.

Se poucos têm dúvidas quanto ao pendor ditatorial do regime egípcio (fenómeno quase natural nos regimes árabes) e muitos reclamam a necessidade de uma maior democraticidade no país, raros serão os que verdadeiramente crêem numa possível democratização do regime.

Recorde-se que Mubarak (militar de carreira, nomeado comandante-chefe da Força Aérea e depois vice-presidente por Saddat) ascendeu ao poder, em 1981, na sequência do assassinato de Anwar Al Saddat (o presidente egípcio que assinara em 1979 os famigerados Acordos de Paz de Camp David, com o primeiro-ministro israelita Menachem Beguin e o presidente norte-americano Jimmy Carter) e desde então tem dirigido o país de forma praticamente ditatorial. O arremedo de abertura que representaram as eleições de 2005 traduziu-se numa vitória com mais de 88% dos votos e em 4 anos de prisão para o seu principal opositor Ayman Noor, o líder do partido ElGhad (Amanhã). Embora várias vezes desmentida é corrente no Egipto a ideia da preparação da candidatura do seu próprio filho, Gamal, à sua sucessão em 2011.

Sucede que a aparição na cena política egípcia de ElBaradei, aureolado por um Nobel da Paz e pela imagem de grande prestígio internacional que lhe granjeou a sua actuação durante o período que antecedeu a Segunda Guerra do Iraque e que recentemente cessou funções na AIEA, poderá introduzir um factor de considerável instabilidade e motivar até uma recandidatura de um Mubarak cada vez mais enfraquecido, não só pela idade (Mubarak conta já 82 anos) mas principalmente por uma saúde cada vez mais frágil.

Embora algumas vozes no interior do próprio Partido Nacional Democrático (o partido criado por Al Saddat e que apoia Mubarak) se manifestem favoráveis a uma abertura[1], a sua efectiva concretização estará sempre muito mais dependente dos egípcios e da sua mobilização que da iniciativa dos políticos instalados no poder, tanto mais que a própria oposição se revela especialmente fragmentada e dividida por interesses e personalidades particularmente vincadas.
Jogando habilidosamente com esta característica, com a agitação do espantalho (para consumo ocidental) do perigo do islamismo extremista (personificado na cena política egípcia pelos Irmãos Muçulmanos) e com a tradição muçulmana de governos autocráticos, Mubarak tem ultrapassado os escolhos que lhe forma surgindo no caminho.

A grande dúvida, que analistas locais e estrangeiros levantam é se conseguirá enfrentar ainda um ElBaradei que de forma inteligente fala mais na necessidade de democracia que na sua própria eleição[2] e assim se apresenta aos egípcios como importante factor de esperança na mudança.
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[1] Entre estes, a BBC NEWS cita nesta notícia o Professor Hossam Badrawi, figura proeminente do PND, que terá afirmado que «quem esteja no poder durante tanto tempo cria à sua volta quem se sinta confortável com o “status quo”. É importante para o povo ver mudança, pois essa é a natureza humana»
[2] Nos termos estritos das leis egípcias a possibilidade de Mohammed ElBaradei se candidatar em 2001 são remotas, pois estas obrigam à propositura por um dos partidos já existentes e isso implica que algum ou alguns dos seus líderes abdiquem dessa nomeação em favor do Nobel da Paz.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A GRANDE AMEAÇA

Depois do final do mês passado ter sido anunciado que «EUA e Rússia chegam a acordo sobre pacto de redução nuclear» eis que pouco após o início dos trabalhos de uma cimeira sobre Segurança Nuclear, que decorre em Washington, se ficou a saber que «Países prometem bloquear acesso de “actores não-estatais” a material nuclear».

Parecendo seguir a linha de pensamento expressa pelo presidente norte-americano, segundo a qual a maior ameaça reside no facto de grupos terroristas poderem ter acesso a material nuclear, os líderes reunidos em Washington terão concordado na coordenação de acções tendentes a evitar que entidades não oficiais tenham acesso a material radioactivo.


Apostando numa estratégia que mais que garantir a sua própria segurança (e reduzir os custos com a manutenção de arsenais nucleares obsoletos) visa principalmente conter as intenções iranianas, o presidente Obama parece ter obtido algumas cedências do cada vez mais importante “amigo chinês”[1], tanto mais importantes quanto durante o próximo mês de Maio se deverão concluir as negociações para a substituição do Tratado START[2] e não param de surgir notícias na imprensa ocidental sobre a continuação do desenvolvimento do programa nuclear iraniano.

O busilis é que por muito bem intencionadas que sejam este tipo de iniciativas, estados há que permanecem à sua margem, como seja o Irão, a Coreia do Norte (excluídos da reunião pela própria administração norte-americana) e Israel (que persiste em negar o facto reconhecido de também dispor de armamento nuclear).

Não será pois de espantar que as dúvidas em torno de todas estas questões se continuem a avolumar e que para muitos toda esta movimentação possa não passar de uma mera encenação internacional montada para coincidir com a passagem do aniversário do discurso de Barack Obama em que este anunciou a intenção de contribuir para um mundo livre de armas nucleares.
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[1] Pelo menos é o que se pode inferir da notícia do DN que assegura que «China aberta a discutir reforço de sanções ao Irão».
[2] Sigla de Strategic Arms Reduction Treaty, designação do acordo assinado em 1991 entre americanos em russos para a limitação dos respectivos arsenais nucleares.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

NÃO PERTURBEM...

Quando a comunicação social resume intervenções como a de João Cravinho na Comissão Parlamentar da Corrupção, com a frase «corrupção política está à solta» que outra coisa podemos pensar senão nesta feliz imagem do caricaturista Pavel Constantin.

A Justiça dorme porque sucessivos anos de inacção e de bem urdidas teias legislativas pearam os que pontualmente ainda vão tentando fazer algo de construtivo; enquanto isso a formação das gerações mais jovens é cada vez menos orientada para a construção de sólidos valores morais e sociais e o grande meio de divulgação da actualidade (que apesar de tudo ainda é a televisão) limita-se a difundir os conteúdos de menor qualidade quando não de duvidosa qualidade, ampliando ainda mais aquele défice.

Enquanto os políticos (no poder ou que a ele almejam), por pura incompetência ou intencionalmente, evitam abordar a questão e para sua própria sobrevivência inventam temas fracturantes (como o casamento homossexual), imiscuem-se cada vez nas decisões de natureza pessoal e cultural dos cidadãos (proibições de fumar e outros normativos de natureza higieno-sanitária) ou empolam as ameaças securitárias, os cidadãos isolam-se cada vez mais das questões públicas e alheiam-se dos problemas que as televisões lhes não façam entrar pela sala.

Assim, se a Justiça dorme é apenas porque todos nós preferimos fingir não ver ou tomar soporíferos a enfrentar a dolorosa existência das insónias e dos pesadelos que nos rodeiam.