sábado, 24 de abril de 2010

O ANEL DE FOGO

O cenário descrito no “post” anterior e as dúvidas que tenho vindo a colocar sobre a verdadeira origem e fundamentação das notícias e dos comentários sobre a dívida pública (e o risco soberano) denominada em euros já deveria ter sido suficiente para, no mínimo, lançar a dúvida sobre a ideia de cerco que pretendem criar em torno do Euro e da dívida denominada nessa moeda.

É que importa não esquecer que contrariamente a uma ideia corrente a actual crise não é produto meramente circunstancial mas sim o resultado do esgotamento do modelo de desenvolvimento que resultou da correlação de forças no final da II Guerra Mundial as quais sempre têm sido geridas em benefício de americanos e ingleses (os verdadeiros arquitectos do modelo financeiro acordado em 1944 em Bretton Woods), mas que agora apresenta fraquezas estruturais que se têm vindo a revelar cada vez mais insanáveis.

É precisamente por não estarmos a atravessar uma mera crise conjuntural que a sucessão de rápidos e cada vez mais graves acontecimentos não pode ser ignorada e ainda menos escamoteada das análises e das medidas com as quais governos, bancos centrais e demais agentes políticos e económicos se propõem enfrentá-la.

A realidade que se tem pretendido criar em torno do Euro e dos países do Eurogrupo, ganha outra dimensão (e clareza) quando observada numa perspectiva gráfica como a que nos é dada pelo quadro apresentado pela Reuters; neste aparece representada a posição de cada Estado em função dos volumes de crédito contraído (défice total do sector público) e do peso do défice anual (em função do respectivo PIB), revelando a situação difícil de algumas das economias da Zona Euro, mas também a igualmente vulnerável situação dos EUA, do Reino Unido e do Japão.

Se é certo que Portugal integra o grupo de economias que simultaneamente apresentam maiores défices públicos (quando avaliados na dupla perspectiva do seu saldo e da variação anula relativamente ao respectivo PIB), não é menos verdade que o seu maior risco apenas poderá derivar da maior fragilidade da sua capacidade económica, pois economias tidas como mais pujantes (como por exemplo a japonesa, a inglesa e a americana) apresentam maiores volumes de endividamento (Japão) ou taxas de variação anual (Reino Unido e EUA) bem maiores e destes três casos a imprensa anglo-saxónica pouco ou nada refere.

Ora a confirmarem-se os cenários previsionais elaborados pelo “think tank” europeu LEAP (Laboratoire Européen d’Antecipation Politique) as economias mais susceptíveis de ruptura são precisamente a americana e a inglesa, facto que aliado ao peso que as mesmas representam na economia mundial (e em especial no segmento financeiro) e ao facto do dólar americano ainda continuar a ser utilizado como moeda de referência e de pagamentos internacionais explicará a quase ausência de referências nos meios de comunicação.

Sendo uma realidade que Portugal integra um grupo de países cuja situação financeira deixa muito a desejar e que nos últimos anos os governos (do PS, do PSD e do CDS) que têm dirigido os destinos do país usaram e abusaram do endividamento como via para a resolução da crónica falta de recursos, e pior, do endividamento como solução para o cumprimento dos encargos dos endividamentos anteriores) nem por isso a nossa situação é geralmente pior que a de outros países com economias bem mais fortes (e teoricamente bem mais sólidas), pelo que a solução para a situação não pode passar pela tratamento de cada caso de forma isolada.

Se no caso da Grécia a própria UE (com maior ou menor empenho individual de cada um dos seus estados-membros) já começou a dar sinais da necessidade de uma abordagem colectiva e isso constitui um primeiro sinal de que não irá abandonar a sua moeda à voragem dos interesses especulativos nem admitir que ela sirva de meio para a salvaguarda de interesses de terceiros (dólar americano e libra inglesa), a dúvida pode voltar a colocar-se no caso de aumentar o número de estados-membros a necessitar de apoio e os montantes de financiamento a desbloquear.

Mas esse (o da dimensão das necessidades de financiamento) é precisamente o principal problema que enfrentarão em breve ingleses e americanos, que em conjunto necessitam mais de 2 biliões de dólares, quando é conhecido o facto dos chineses estarem a reduzir a sua habitual apetência pela dívida norte-americana[1].

Já os ingleses, a somar às inevitáveis dificuldades resultantes da escassez de liquidez que continua a fazer-se sentir nos mercados e à crescente debilidade da Libra, terão que enfrentar ainda o acto eleitoral que decorrerá no principio de Maio, concluído o qual poderá muito bem ocorrer um fenómeno idêntico ao recentemente registado na Grécia e “descobrir-se” que a dimensão do défice público é bem superior aos valores oficialmente anunciados pelo governo trabalhista de Gordon Brown.

Dada a relevância que ainda é comum associar-se ao mercado da Libra (sem esquecer os estreitíssimos laços entre a City londrina e a americana Wall Street) qualquer perturbação nele originada espalhar-se-á rapidamente e as já diminutas hipóteses de renovação da dívida americana deverão esfumar-se a idêntica velocidade, com o evidente inconveniente (quando comparado com a dívida portuguesa, a grega ou de qualquer outro dos membros do Eurogrupo) de que aquele efeito propagar-se-á à velocidade da luz. E se os ingleses ainda poderão acalentar algumas esperanças de vir a beneficiar de alguns restos de solidariedade europeia[2], já os americanos dificilmente poderão contar com quem quer que seja tamanho é o montante das suas necessidades de crédito.

Assim, pressagiar a ocorrência de uma nova fase no desenvolvimento da crise global – a da insolvência dos Estados – é cada vez menos um exercício de futurologia barata mas uma dura realidade.
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[1] Ver esta notícia da Associated Press.
[2] A dúvida afigura-se tanto mais pertinente quanto é reconhecida a atitude britânica de persistente distanciamento face às políticas de integração europeia e quanto tem sido prejudicial à UE a estratégia de permanente aproximação entre Londres e Washington.

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