A afirmação de Constâncio insere-se naquela que pode ser hoje considerada como um “mantra”[1] das modernas sociedades ocidentais – a omnipresença e omnipotência dos “mercados” – que sem igual rege o dia-a-dia dos pobres e tristes mortais, como nós.
O problema é que a falta de isenção e de rigor técnico dos jornalistas e dos economistas, a quem aqueles dão voz, resulta no avolumar da ideia que para combater o défice excessivo não existirá outra alternativa ao agravamento fiscal. Sobre a redução da despesa pública pouco ou nada é dito ou escrito em concreto, salvo para a necessidade de redução da componente dos gastos com salários, bem como sobre a imperiosa necessidade de aplicação de critérios de rigor e boa gestão sobre os efectivos e sobre as despesas correntes da maioria dos ministérios, secretarias, repartições e demais instituições públicas (como sejam os tão populares institutos e fundações que ultimamente se têm multiplicado como cogumelos), autarquias e restantes organismos locais.
É óbvio que nunca esperaria de uma alta individualidade (e para mais dum governador dum Banco Central recentemente eleito para o BCE) qualquer afirmação que pusesse em dúvida quer os seus prodigiosamente elevados conhecimentos económicos e financeiros quer o seu apego à defesa das regras do jogo financeiro mundial, mas talvez não fosse necessário fazer tábua rasa da realidade em que vivemos e produzir afirmações como a de que «…as empresas portuguesas são as mais endividadas da União Europeia, mas que as famílias não têm problemas de liquidez», apenas, e tão só, para justificar as opções governativas de privilegiar o aumento dos impostos indirectos.
Talvez Constâncio, já em plena fase de mudança para Frankfurt, tenha esquecido as conclusões apresentadas pelo “seu” Banco de Portugal em Maio de 2009 quando assegurava que o «Endividamento das famílias portuguesas é o segundo mais elevado da Europa», que este representava já 135% do rendimento disponível, quando em Maio do ano anterior fora noticiado que o «Endividamento das famílias portuguesas sobe para 129% do rendimento disponível», e que a tendência era para o seu aumento ou a opinião que em Maio de 2009 defendeu perante a Comissão Parlamentar de Orçamento e Finanças de que «cortar salários agravaria recessão em Portugal».
A velocidade e a facilidade com que políticos e pretensos técnicos mudam de opinião, justificadas agora de forma oportunista pela situação conjuntural, só consegue ter comparação com a desfaçatez como mentem sobre a realidade. A crise que atravessamos não começou agora, nem os seus mais de dois anos de duração permitem que alguém minimamente sério a rotule de fenómeno conjuntural, pelo que continuara a propor panaceias orientadas para os seus reflexos conjunturais – por mais graves e preocupantes que estes sejam – nunca irá resolver o problema.
Quando se torna cada vez mais evidente que a origem da crise global é muito mais profunda que o que persistem em nos fazer crer, apenas razões de natureza diversa das invocadas podem explicar o atavismo e a ineficácia dos decisores mundiais perante o problema. Na realidade nenhum dirigente político (no poder ou no seu círculo que incluiu aqueles que alimentem esperanças de o alcançar em breve), nacional ou estrangeiro, dispõe da indispensável vontade para enfrentar o problema de fundo: o sistema capitalista mundial atravessa uma fase de mutação sistémica[2] e as suas contradições internas são de tal modo profundas que se revela absolutamente incapaz de formular uma via para ultrapassar a sua actual situação.
Exemplo dos elevados níveis de incerteza que grassam entre as populações e das limitações das elites políticas podem ser observados no dia-a-dia nas reacções (e em especial nas oportunidades em que os eleitores são chamados às urnas, como recentemente aconteceu no Reino Unido e na Alemanha) e no constante ziguezaguear das medidas anunciadas pelos governantes; a facilidade com que os dirigentes desdizem hoje o deram como assegurado na véspera, prometem para amanhã o que ontem disseram que nunca fariam, não é apenas reflexo da respectiva incompetência, mas também sinal claro da sua mais completa capacidade (e da dos seus mentores) para verdadeiramente entenderem a realidade que os rodeia.
Inevitável e fácil de prever é, como venho dizendo há algum tempo, que as medidas até agora tomadas quer a nível interno, quer a nível da UE, quer nos restantes países (com os EUA à cabeça), são totalmente desadequadas para resolver os problemas. Ninguém alguma vez conseguiu, ou conseguirá resolver problema de natureza estrutural com meros paliativos de dimensão conjuntural. Enquanto esta realidade (difícil de “engolir” para todos aqueles que não têm vindo a fazer outra coisa que servir os interesses dos que nos arrastaram para esta situação) não for entendida pela generalidade dos cidadãos e estes não entregarem a condução dos países e das economias a quem tem vindo a postular, de forma fundamentada, a necessidade de novas políticas e de novas práticas, estaremos condenados a assistir pacificamente ao inexorável “afundar do barco”.
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[2] Uso a expressão mutação sistémica no sentido em que perante uma crise da amplitude e profundidade da actual apenas grandes mudanças de paradigma (a organização das principais economias mundiais segundo os ditames e as regras da designada economia de mercado é apenas um dos paradigmas em que assenta o Mundo actual) poderão responder de forma eficaz às actuais necessidades. Se observada do ponto vista histórico a génese da economia capitalista representou a resposta à falência e à desagregação do modo de produção feudal, também agora, numa fase de profundas convulsões do sistema capitalista, poderá haver lugar à concepção de um novo modelo de produção que resolva as insuficiências (sobretudo no capítulo da distribuição da riqueza produzida) e as contradições (no plano económico, entre os sectores produtivos e as franjas especulativas do capital) que não têm parado de aumentar.
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