segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

«NUNCA MÁS»

Voltou hoje à primeira página de um jornal chileno este antigo grito contra Pinochet, por ocasião da sua morte, coisa pouco extraordinária, atendendo aos seus 91 anos e ao estado de saúde que há vários anos vinha servindo de pretexto para o eximir à justiça, a uma justiça que se exigia face às atrocidades que ordenara, ou em seu nome foram cometidas, após o golpe militar que em 1973 o colocou no lugar que era ocupado por Salvador Allende, uma das suas primeiras vítimas.

Para quem possa ter alguma dúvida, basta recordar os mais de 3.000 mortos ou desaparecidos que as estatísticas (as possíveis de elaborar) revelaram e as mais de 30.000 pessoas submetidas a prisão arbitrária e tortura, tudo em nome da “sacrossanta” luta contra o comunismo. Sim, porque convém não esquecer que o governo democraticamente eleito que derrubou era encabeçado por um perigoso comunista, nacionalizador de empresas e terras, patrono de uma reforma agrária e de muitos outros “crimes” caso tivesse permanecido no poder.

Felizmente Pinochet e o exército chileno puderam contar com o desinteressado auxílio dos EUA (na altura governado por Richard Nixon, o único presidente americano que se viu obrigado a demitir-se por espionagem política) que através de uma das suas agências (a CIA, no caso concreto) investiu milhões de dólares num programa de sublevação e de desestabilização económica para derrubar Allende. Resultado: além dos milhares de mortos e desaparecidos, da banalização do desrespeito dos mais elementares direitos humanos, Pinochet e o seu governo militar rapidamente inverteram o processo de nacionalizações iniciado por Allende, devolvendo aquelas empresas aos seus proprietários, incluindo a exploração do minério de cobre aos americanos, e como prémio acrescentou ainda sectores tradicionalmente públicos como os telefones, a electricidade e os transportes aéreos.

Tudo isto foi feito em prol do combate à inflação e ao deficit externo e mereceu o apoio e o aplauso de um dos economistas mais reputados da época: Milton Friedman, o designado “pai” da “escola de Chicago”, que além de mentor de Pinochet seria mais tarde um dos ideólogos mais ouvido pela equipa de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher.

Bem podem clamar os ainda hoje seus indefectíveis apoiantes que sem a intervenção de Pinochet a economia chilena caminhava para o colapso e que a situação relativamente saudável que ela hoje atravessa a ele se deve. É certo que com tão radicais medidas (e sem o contra vapor americano) a economia chilena conheceu anos de grande crescimento, mas isso foi fundamentalmente alcançado à custa da redução dos salários e do nível de vida da esmagadora maioria da população chilena, que no final do consulado militar (Março de 1990) apresentava um quarto da população a viver abaixo do limiar de pobreza e, pasme-se, uma dívida externa várias vezes superior à de 1973.

Registe-se ainda que com a saída do poder em 1990, Pinochet manteve a qualidade de chefe supremo das forças armadas chilenas, situação que lhe permitiu evitar qualquer tentativa de julgamento. Apenas após o abandono daquele cargo, que ocupou além dos 80 anos, se registaram as primeiras tentativas de o apresentar à justiça, sob as mais diversas acusações: homicídio, rapto, tortura e ainda por corrupção, evasão fiscal e posse de passaporte falso.

Debate económico e político aparte, resultou da morte de Pinochet algo que muita gente classifica de flagrante injustiça – mais de uma década após o seu afastamento do poder nunca as suas vítimas lograram ver aplicada a justiça que mereciam. Bem pregarão aqueles que recordam que a restauração do regime democrático no Chile e noutros países da América Latina é por si só o reconhecimento e a celebração de uma certa justiça àquelas vítimas, mas, em nome da mais elementar justiça Pinochet não podia ter morrido sem ter sido julgado e condenado em conformidade com as suas responsabilidades durante o período da ditadura militar.

Não é por isso de estranhar que desde ontem seja notícia nos jornais o que está a acontecer no Chile, onde a par com os que choram a morte do ditador outros saíram à rua para manifestar a sua alegria.

Triste espectáculo a de se ver comemorada em praça pública a morte de alguém, mas inevitável quando uma sociedade, e os seus governos, permitem que malabarismos judiciais se sobreponham ao superior interesse nacional que é o de julgar mais que evidentes suspeitos da prática de crimes contra a humanidade.

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