Como bem é descrito no “Relatório Baker” a situação na Palestina é uma das chaves para uma possível resolução da instabilidade no Médio Oriente; porém, ao longo de todo o ano de 2006 a situação nos territórios palestinianos não tem parado de se agravar, seja por razões de ordem externa (fruto da actuação israelita ou outra) seja consequência das divisões internas entre a Fatah e o Hamas.
Este último grupo, vencedor das eleições legislativas realizadas no início do ano e desde então partido no poder, tem revelado grandes dificuldades na conciliação das suas teses mais adaptadas à luta armada com o combate político ou à acção governativa. É certo que os países ocidentais muito têm contribuído para estas dificuldades com a anacrónica decisão de boicotar um governo legitimamente eleito, mas os próprios palestinianos pouco têm feito em sentido contrário.
Logo após a derrota eleitoral foi a Fatah que recusou a constituição de um governo de unidade nacional, para em seguida o Hamas recusar qualquer forma de conciliação entre as suas responsabilidades governativas e as suas teses programáticas. O dogma da recusa do reconhecimento de Israel, aceitável para um grupo armado e empenhado na acção militar, tornou-se um empecilho à governação, mesmo que esta seja desempenhada por uma figura tida como moderada e pragmática. Numa palavra ao primeiro-ministro Ismail Haniyeh estará a faltar peso para sobrepor a realidade política da governação às concepções teóricas de líderes como Khaled Meshal, representante do Hamas no exílio.
Tudo isto será menos estranho se recordarmos a origem dos dois movimentos; a Fatah remonta a um período no qual as lutas de libertação eram uma realidade um pouco por todo o mundo, existiam fortes referenciais históricos desses mesmos movimentos e a luta, armada ou política, era desenvolvida segundo ideais precisos e pragmáticos, enquanto o Hamas é um movimento muito mais recente, tem por origem o grupo egípcio dos Irmãos Muçulmanos, e surge numa fase de profundo desencanto dos árabes face aos valores e à cultura ocidental.
Convictos das suas crenças (fundamentalmente de natureza religiosa) os dirigentes do Hamas acabam por se ver confrontados com a oposição dos países ocidentais (muito bem explorada e fomentada pelo governo israelita) e a própria actuação do movimento xiita libanês, o Hezbollah, que esteve na origem dos confrontos com Israel no Verão passado, em pouco ajudou a clarificar e/ou amenizar as opções do Hamas.
Cortado o acesso aos fundos económicos (os países ocidentais são os principais “financiadores” de um estado palestiniano que a acção política e económica judaica mantém num estádio vegetativo) não tardaram em registar-se os primeiros sinais de contestação e descontentamento das populações. Reais (e importa não esquecer face a uma economia mais que precária a principal fonte de rendimento são os salários dos que trabalham para a Autoridade Palestiniana) ou fomentados pela propaganda externa, o facto é que a tensão não tem parado de aumentar e nem as sucessivas acções militares israelitas na Faixa de Gaza e na Margem Ocidental têm logrado unificar os palestinianos.
De incidente em incidente e perante a tibieza e a incapacidade dos estado árabes se revelarem eficazes fontes alternativas de financiamento (seja em resultado das suas próprias contradições internas, seja fruto do seu alinhamento com as teses e práticas ocidentais, seja porque a acção fiscalizadora israelita tem funcionado), os territórios palestinianos aproximam-se a passos largos de uma situação de inanição que nem as mais ferozes ofensivas militares do Tsahal[i] alguma vez conseguiram criar.
Toda esta envolvente permitiu que na última semana se assistisse a situações tão caricatas e aberrantes como a de um primeiro-ministro retido no aeroporto do seu próprio país pelo exército de outra nação por suspeita de tráfico de divisas.
No futuro será difícil contarmos aos nossos netos que coisas como estas acontecem no planeta em que vivemos e envolvendo os governos de dois países que na sua região são apontados como modelos de democracias…
Mesmo entendendo o muito que separa a Fatah, movimento laico criado para lutar pela autonomia palestiniana, e o Hamas, movimento de natureza islâmica (inicialmente tolerado quando não incentivado por Israel, como forma de combater a Fatah) que tem vindo acrescer de popularidade numa região onde é crescente o peso e a influência do pensamento religioso, torna-se difícil explicar de forma racional como se chegou ao ponto em que nos encontramos, com o Presidente da Autoridade Palestiniana a anunciar a próxima convocatória de novas eleições e o Hamas a recusar semelhante solução e a ameaçar apelar ao seu boicote.
Tudo isto acontece depois de em finais de Novembro ter sido anunciada a celebração de um acordo entre o Hamas e a Fatah que permitiria a formação de um novo governo, chegando mesmo a anunciar-se a substituição de Haniyeh por Mohammad Al-Chbeir, um professor da universidade de Gaza tido como próximo do Hamas. Dias depois tudo voltava à estaca zero e reacendia-se a disputa entre Haniyeh e Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Palestiniana.
A situação insustentável que vivem as populações palestinianas da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, continuam a ser a última das preocupações dos responsáveis. EUA e União Europeia persistem na aplicação de um boicote económico do qual os mais atingidos são as populações. O Hamas não parece disposto a abandonar o seu muito próximo alinhamento com a Síria e o Irão e os Israelitas continuam a agitar o argumento do terrorismo (em tempo oportuno o governo de Ariel Sharom conseguiu que os EUA atribuíssem ao Hamas a classificação de grupo terrorista) para justificar a sua política agressiva e o cerco financeiro que mantém aos territórios palestinianos. A Fatah, que após a derrota eleitoral parece ter cerrado fileiras em torno de Abbas, não parece disposta a contribuir para a governabilidade dos territórios palestinianos, pelo menos enquanto o governo for liderado pelo Hamas, e enquanto for beneficiada pela existência de um poder bicéfalo, originalmente criado por pressão dos israelitas e como forma de fraccionar as forças em torno de Yasser Arafat. Os estados árabes vizinhos, muito mais preocupados com os seus próprios problemas (expansão dos movimentos islâmicos, aumento da pressão ocidental – americana – para a liberalização dos seus regimes, queda das receitas do petróleo originadas pela contínua desvalorização do dólar face ao euro) que com a sobrevivência da Palestina, mantém a velha política das promessas sem continuidade prática, ou seja continuam a servir-se da questão palestiniana apenas e só quando pensam poder obter benefícios dela.
Com este cenário de ausência de solução rápida e com a continuação dos confrontos que nos últimos dias têm oposto partidários da Fatah e do Hamas, já não é apenas a instável situação no Líbano que poderá evoluir para uma guerra civil. Continuando a manobrar na sombra, os defensores de ideias como a do redesenho do Médio Oriente ou a da transformação dos tradicionais regimes árabes[ii] em regimes democráticos estão em vias de garantir que outros conflitos se poderão em breve juntar aos actualmente em actividade, assegurando a perenidade da presença americana na região.
Os discursos e os apelos de algumas vozes palestinianas mais moderadas tardam em fazer efeito e dificilmente serão ouvidas num período tão conturbado, mas o facto que permanece é que seja qual venha a ser a resolução desta crise, quem vai sair enfraquecido e com minguadas possibilidades de ver a sua situação melhorada são os palestinianos e aqueles que se têm batido pela efectiva autonomia de um povo cujas últimas gerações têm sido malbaratadas (e massacradas) em nome de algo que nós apenas entendemos de forma superficial.
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[i] Designação por que é conhecido o exército israelita.
[ii] Custe a quem custar, a forma tradicional de ascensão ao poder entre os povos árabes sempre se fez por via do poderio militar.
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