domingo, 22 de julho de 2007

O QUARTETO E A PALESTINA

«Tony Blair disse esta quinta-feira, em Lisboa, que os seus primeiros passos como enviado especial para o Médio Oriente serão, em primeiro lugar, ouvir as partes palestinianas e israelitas, reflectir sobre essas audições e, só depois, apresentar propostas concretas para atingir o duplo objectivo da criação de um estado viável na Palestina e de garantir a confiança de Israel na sua segurança

Assim começava uma das muitas notícias (a citação é de uma do PORTUGALDIÁRIO) publicadas sobre a mais recente reunião do Quarteto da Paz[1], que recentemente ocorreu em Lisboa e que, fazendo fé nas palavras do ex-primeiro ministro britânico, deveria ter marcado um novo ciclo na crise do Médio Oriente.

Qualquer pessoa que procure efectivamente uma solução negociada para o problema palestiniano (ou para qualquer outro que envolva um conflito aberto ou latente) deverá começar por ouvir (e tentar compreender) as partes.

Talvez Tony Blair venha a fazer um esforço efectivo para procurar pacificar aquela região, mas ao ler as suas declarações, outras me vieram à memória. Concretamente, estou a referir-me a uma alocução proferida por Jorge Sampaio (pouco tempo após a sua nomeação como Alto Representante da Aliança das Civilizações[2]) na abertura da Conferência “Civilizations and the Challenge for Peace: obstacles and opportunities”, quando afirmou: «Estou aqui hoje mais para ouvir que para falar, para tomar notas mais que para fazer afirmações, para aprender com os vossos pensamentos, preocupações e desejos mais que para apresentar a minha própria visão e estratégia»[3], palavras que na sua boca soarão de forma muito diferente às de Tony Blair, especialmente a ouvidos mais habituados aos inflamados discursos de apoio à Guerra contra o Mal de George W. Bush que na defesa de princípios como o da igualdade e justiça entre os povos
Pois é, se o Quarteto espera que os estados árabes do Médio Oriente acolham Tony Blair qual “pomba da paz”, correm o sério risco que estes não o vejam com melhores olhos que aqueles que usou o caricaturista Dave Brown, no
THE INDEPENDENT

onde o retratou como aquilo que muita gente o vê – o caniche de Bush.

E o maior erro do Quarteto está longe de ter sido a nomeação de Blair para o papel de mediador, uma vez que persiste na estratégia de marginalização do Hamas enquanto parceiro nas negociações.

Este erro grosseiro, que além de ter degradado ainda mais as já muito precárias condições de vida das populações palestinianas, de ter conduzido a uma situação de confrontação armada entre os dois principais grupos palestinianos (Hamas e Fatah)[4], ainda se traduz no mais completo desrespeito daquilo que o ocidente diz defender – a democracia – pois o governo liderado pelo Hamas resultou de um processo eleitoral que a generalidade dos observadores ocidentais classificou como o mais democrático até então realizado em países árabes.
Questões como esta e um longo historial de apoio incondicional às políticas israelitas conduziram à situação de impasse na região e à óbvia degradação da imagem do ocidente entre os povos islâmicos. Mesmo sem querer defender a diferença pela diferença, tanto mais que vou aqui recorrer a uma citação de alguém absolutamente insuspeito nessa área, recordo o que há tempo escreveu Adriano Moreira numa sua
crónica sobre o indispensável diálogo entre o Islão e o Ocidente: «é indispensável reformular o diálogo e diminuir os erros de comunicação e de compreensão (…) para que minorias indisciplinadas sejam identificadas como minorias pela opinião pública, de modo a que as solidariedades intercomunitárias se fortaleçam no apoio à paz da sociedade civil e às leis do Estado». Ora o ocidente, e o seu Quarteto, parece cada vez mais apostado numa estratégia de fraccionar os palestinianos e não na construção de verdadeiras vias para a pacificação da região.

Mesmo sendo certo que Tony Blair apresenta no seu currículo a “pacificação” da Irlanda (mesmo carecendo do aprofundamento da sua real influência no processo, algo que só o tempo revelará), ninguém negará que a realidade no Médio Oriente é bem mais complexa e que a sua resolução apenas deverá ocorrer quando árabes e judeus forem “forçados” a negociar numa posição de maior igualdade, nunca enquanto os segundos se sentirem protegidos pelos seus “irmãos” ocidentais.

Persistindo numa estratégia de privilegiar a facção da Fatah (liderada pelo presidente da Autoridade Palestiniana) em detrimento do Hamas, sob a alegação de aquele é um movimento terrorista (quando o principal argumento para tal é a recusa no reconhecimento do Estado de Israel), não só este grupo tenderá a assumir posições cada vez mais radicais, como se estará a entregar a condução do processo de formação de um estado palestiniano a uma força política que a população acusa de práticas de corrupção e cujos líderes já demonstraram a sua incapacidade na condução do processo de pacificação resultante dos Acordos de Oslo.

Embora neste último caso quer o já falecido Yasser Arafat quer Mahmoud Abbas não sejam os únicos responsáveis pelo fracasso (Ariel Sharon e Ehoud Olmert partilham enormes responsabilidades nesta matéria), o facto é que as populações palestinianas continuam a viver em situação muito precária e num estado de total dependência do governo de Israel. A decisão deste governo de libertar duas centenas dos milhares de prisioneiros palestinianos que detém, poderá ter grande efeito na opinião pública ocidental mas dificilmente se traduzirá num movimento para a normalização da vida palestiniana (e principalmente da vida política) enquanto a nova geração de líderes, responsável pelo lançamento e condução da segunda Intifada, permanecer encarcerada. Mesmo admitindo que homens como Marwan Barghouti não resolvam por si só a crise, a sua intervenção directa na vida política palestiniana não poderia deixar de ser positiva; o verdadeiro problema é que Israel quase sempre tem preferido uma estratégia de confrontação (particularmente adequada a quem quase meio século volvido sobre a II Guerra Mundial persiste em se apresentar como mártir exclusivo da política de genocídio dos não-arianos decidida pela Alemanha nazi) como forma de justificar as acções de represália indiscriminada que regularmente exerce sobre os territórios palestinianos e a manutenção no poder de um líder fraco e contestado como Mahmoud Abbas é-lhe particularmente vantajosa.

Mas as indispensáveis mudanças do lado palestiniano apenas produzirão frutos se algo de idêntico ocorrer do lado judaico. Isso mesmo deixou bem claro o escritor peruano Mário Vargas Llosa num conjunto de crónicas que o jornal espanhol EL PAIS publicou em 2005[5]; este facto é tanto mais relevante quanto ao longo de muitos anos aquele foi um acérrimo defensor de Israel e dos seus métodos de actuação e pode constituir um claro sinal de que começam a registar-se mudanças na forma como muita gente “vê”, no ocidente, a situação palestiniana.

A questão agora é saber se o Quarteto e o seu “enviado especial” conseguirão (ou quererão) aproveitar os novos tempos… ou se iremos voltar a assistir aos inúteis desfiles de personalidades que além dos seus pomposos discursos pouco mais produzirão de útil para a resolução de uma das mais complicadas sequelas da II Guerra Mundial e para o justo tratamento dos cerca de cinco milhões de palestinianos (dados da UNRWA[6] disponíveis aqui) que se viram expulsos do seu território e forçados a viver como refugiados nos países vizinhos.

Para quem tanto tem lamentado a diáspora hebraica e tudo tem feito para a reparação dessa injustiça, quando começará a pensar enfrentar a resolução da diáspora palestiniana?

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[1] Designação que a par com a de Quarteto do Médio Oriente designa o conjunto dos EUA, UE, Rússia e ONU, grupo constituído em finais de 2002, numa altura em o conflito na região do Médio Oriente recrudesceu de intensidade, que é suposto procurar uma solução para o conflito israelo-palestiniano.
[2] A Aliança de Civilizações é uma iniciativa do secretário-geral da ONU, apoiada pelos governos espanhol e turco, que pretende incentivar vontades políticas e mobilizar acções concertadas para combater os preconceitos entre culturas e religiões. Foi lançada em 2005 por Kofi Annan e actualmente é seu Alto Representante o ex-presidente Jorge Sampaio.
[3] Ver o texto integral aqui (versão em inglês)
[4] Ver o post IRMÃOS INIMIGOS
[5] As referidas crónicas, em número de oito no seu formato original, estão agora disponíveis em livro (com tradução em português e edição da QUASI) sob o título ISRAEL PALESTINA – PAZ OU GUERRA SANTA e na sua introdução escreve o autor «Estive quinze dias em Israel/Palestina, entre 30 de Agosto e 15 de Setembro de 2005, para escreve esta reportagem. (…) Embora esperasse que a minha reportagem fosse alvo de críticas, fiquei surpreendido com a sua quantidade e virulência de algumas delas, sobretudo aquelas que conhecendo a minha trajectória de solidariedade para com Israel, me acusam de ter passado para o inimigo. Qualquer pessoa que leia este livro de forma desapaixonada comprovará que essa acusação é absurda. (…) As minhas críticas ao governo israelita pela política que leva a cabo em relação à questão palestiniana são inspiradas nos mesmos princípios de amor à liberdade e à justiça que me levaram a defender Israel contra aqueles que o caricaturaram como um mero peão do imperialismo no Próximo Oriente. E, claro, não aceito a chantagem a que recorrem muitos fanáticos que chamam «anti-semitas» a todos aqueles que denunciam os abusos e crimes que comete o Governo de Israel.» texto que é bem revelador do clima de pressão internacional que os grupos judaicos exercem sobre a opinião pública ocidental.
[6] A UNRWA –United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East é uma agência especializada da ONU no apoio à educação, saúde, serviços sociais e ajuda de emergência a mais de 4,4 milhões de refugiados palestinianos que vivem na Faixa de Gaza, Cisjordânia, Jordânia, Líbano e Síria.

1 comentário:

antonio ganhão disse...

Meu caro, em duas notas:

1- Eleições americanas a começar a marcar a agenda

2- Blair reconciliando-se com a história, eis o futuro Nobel da Paz.

Quanto ao resto, tudo vai ficar na mesma.