domingo, 28 de setembro de 2008

O COLAPSO DE WALL STREET (parte II)

Insistir hoje na ideia de que a crise financeira que atravessamos resulta do rebentamento da bolha especulativa do imobiliário norte-americano é, não apenas, um erro grosseiro de análise como uma óbvia manobra de branqueamento de responsabilidades, como procurei demonstrar na primeira parte deste “post”.

As soluções apresentadas por personalidades demasiado próximas do poder político e económico não podem, obviamente, indicar um caminho diferente daquele que propõem – o recurso a fundos públicos, ou seja, originados nos impostos cobrados para colmatar os prejuízos encaixados pelo sistema financeiro que, em reacção a estes, ameaça estrangular o conjunto da economia.
Depois das economias ocidentais terem registado duas décadas em que, em nome do sacrossanto mercado e do dogma da sua infalibilidade, assistimos à privatização de toda e qualquer actividade pública que se configurasse geradora de lucros e após quase um século de concentração dos capitais no sector financeiro, eis que este regista mais uma crise originada no seu funcionamento antropofágico e... cúmulo da ironia, encontra a salvação na intervenção do Estado.

A opção assumida pela administração norte-americana constitui, à luz das suas próprias teorias, um evidente contra-senso e, podendo ser entendível no pressuposto de que a sua intervenção no sistema financeiro, impedindo a falência de uma empresa financeira privada evitará a propagação de uma onda de falências ao conjunto dos outros sectores da economia, é dificilmente sustentável no âmbito mais geral das regras de funcionamento de uma economia de mercado e poderá constituir factor de instabilidade noutros sectores económicos afectados por crises (se as empresas financeiras são intervencionadas, porque não as outras?).

Esta questão da intervenção pública justifica ainda outras questões, que vão desde a sua eficácia até à sua duração e dimensão[1], uma vez que os fundos originados nos contribuintes não são ilimitados, nem estes agentes económicos irão estar receptivos a assistir à delapidação das contas públicas em exclusivo benefício do sector financeiro.

Wall Street poderá ter sobrevivido aos primeiros abanões que a sua própria imprevidência originou, mas qual deverá ser o seu futuro?

É que se algo ficou cabalmente demonstrado com toda a agitação que tem vivido o coração financeiro do mundo é que este (ou qualquer outro) não pode continuar a funcionar como se nada de mais tivesse ocorrido.

Após a Grande Depressão de 1929, fenómeno que há quase um ano abordei aqui[2], a economia registou outros períodos de recessão e de crise financeira sem que os seus efeitos se tenham revelado tão dramáticos quanto os actuais. Nem o fracasso do LTCM[3], nem a bolha das DOTCOM[4], nem a falência da ENRON[5] originaram no sistema financeiro semelhante onda de choque, como a que está a provocar a conjugação do rebentamento da bolha do imobiliário (originada nos elevados volumes de créditos de alto risco – “subprime” – concedidos às famílias americanas) com o efeito multiplicador criado pelos complexos produtos financeiros (derivados) construídos com base naquele tipo de créditos e vendidos como se de produtos de cobertura de risco ou de risco baixo se tratassem.

Com a tomada de consciência da disseminação de produtos de elevado risco e na quase impossibilidade de uma rápida diferenciação entre estes (daí a designação de produtos sofisticados) os parceiros financeiros limitaram-se a agir de acordo com os manuais... e simplesmente limitaram o volume de crédito que habitualmente concediam entre si. ~

Na essência pode-se dizer que as empresas financeiras funcionam como se de um vulgar jogo de pirâmide[6] se tratasse; enquanto o sentimento dominante foi o da confiança não faltavam créditos nem novos parceiros desejosos de “entrar no jogo”, mas aos primeiros sinais da sua falta cada um tratou de contabilizar os respectivos ganhos e esperar.

Não é por isso de estranhar que imediatamente após o anúncio do plano Paulson os mercados tenham sentido uma onda generalizada de euforia e registado subidas consideráveis num único dia de negociação[7]...

para de pronto registarem quedas quando, no dia seguinte “alguém” se apercebeu que ainda faltava muito para a aplicação daquele plano.

Às dúvidas políticas, prontamente apresentadas na própria sessão de apresentação do plano no Senado norte-americano, de ambas as bancadas (democratas e republicanos), como refere esta notícia da BBC, outras têm sido colocadas por vários sectores da vida política, económica e académica norte-americana e mundial.

A fragilidade do plano Paulson, que na essência não representa mais que uma bóia de salvação para os banqueiros, chega até a merecer reparos do Director-geral do FMI, Dominique Strauss-Khan, que num artigo no LE MONDE que propõe uma solução alternativa e menos onerosa – a emissão de “swaps” de longo prazo de títulos hipotecários (os tais que figuram no balanço dos bancos e cujo valor se reduziu a quase zero) contra títulos do tesouro – que, segundo o autor, permitiria sanear o balanço dos bancos e mantém nestes o risco não o transferindo para os contribuintes.
No conjunto, qualquer uma destas soluções inclui um processo de branqueamento da actuação irresponsável dos dirigentes das empresas financeiras e do comportamento laxista das entidades de supervisão
[8] e das empresas de notação de risco; de forma mais ou menos intencional, todos contribuíram para o eclodir de uma situação que agora não parecem capazes, ou dispostos, a resolver.
Mais crítico que Strauss-Kahn é George Soros
[9], que num artigo publicado no FINANTIAL TIMES chama a atenção para a parcialidade de uma proposta que se limita a abordar o lado financeiro da crise e esquece a necessidade de intervir, por exemplo, sobre o próprio mercado imobiliário. Esta posição é tanto mais relevante quanto o seu autor é um dos mais conhecidos especuladores a nível mundial e de modo algum se pode considerar como um crítico do sistema vigente em Wall Street.

Entre defensores convictos e adversários cépticos mantém-se a discussão sobre a aprovação do plano de recuperação; enquanto prosseguem os contactos entre republicanos e democratas para delinearem os contornos finais da tábua de salvação do regime, o BLOOMBERG dava hoje como segura a sua aprovação para muito breve (tudo indica que vamos voltar a ter um domingo de grandes notícias) e o mundo aguarda para saber até onde irá a “boa vontade “ do Congresso norte-americano.
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[1] Isto mesmo pode ser confirmado nesta notícia do DIÁRIO ECONÒMICO que citando como fonte um notícia do BLOOMBERG assegura que o «SALVAMENTO DO SECTOR FINANCEIRO DOS EUA PODE CUSTAR SETE VEZES MAIS»; a informação baseia-se numa entrevista de Marc Faber, fundador e presidente da empresa de consultoria em investimentos MARC FABER, LDA, onde este afirma que o valor real poderá ser de 5 biliões de dólares.
[2] Devido à extensão do texto dividi-o em duas partes que podem ser lidas aqui e aqui.
[3] Long-Term Capital Management (LTCM) foi um “hedge-fund” criado, em 1994, por John Meriwether (que fizera carreira na Salomon Brothers) destinado à prática de arbitragem entre os títulos de renda fixa (obrigações públicas). Baseado no principio de que a longo prazo as taxas das diferentes dívidas públicas tenderiam para valores iguais, mas a velocidades diferentes, esta estratégia granjeou resultados fabulosos (cerca de 40% ao ano) nos primeiros tempos, até que em Setembro de 2008 se registou uma corrida aos resgates que não tendo sido acompanhada pela corresponde redução da exposição acarretou um prejuízo de mais de 3 mil milhões de dólares e a necessidade de intervenção das autoridades americanas
[4] DOTCOM foi a designação pela qual ficou conhecida uma bolha especulativa em torno das recém criadas indústrias das tecnologias de informação. Iniciou-se em meados dos anos 90 e durou até ao seu pico em Março de 2000 quando o acumular de maus resultados pelo sector das tecnologias de informação levou a uma desvalorização sucessiva das cotações em bolsa.
[5] A ENRON foi uma empresa americana do sector da energia que além de líder mundial no sector era conhecida pelos enormes lucros gerados e pela classificação da empresa americana mais inovadora que a revista Fortune lhe atribui durante seis anos consecutivos, até queem finais de 2001 se descobriu um os gigantesco processo de manipulação da sua contabilidade, que ficaria conhecido pelo “Escândalo ENRON”, que transformaria o seu nome em sinónimo de fraude e corrupção e que além de outros prejuízos ditou ainda o desaparecimento da mundialmente conhecida empresa de auditoria Arthur Andersen.
[6] Esta é a designação comum para um esquema que consiste na troca de dinheiro entre os participantes de forma que os recém-chegados alimentam um fundo distribuído pelos participantes mais antigos. Na essência este esquema funciona enquanto o número de novos aderentes for crescendo de forma exponencial relativamente aos mais antigos. Também é conhecido pela designação de Esquema de Ponzi (em homenagem ao seu criador, o italiano Charles Ponzi) e em Portugal ficou popularizado, nos anos 80 do século passado, pela sua associação ao nome de Dona Branca.
[7] Entre outras ver, sobre o mercado nacional, esta notícia do JORNAL DE NEGÒCIOS, esta do PUBLICO e esta do DIÁRIO ECONÒMICO; sobre os mercados internacionais ver esta notícia da BBC que apresenta uma interessante perspectiva gráfica dos principais índices mundiais.
[8] Refira-se que na fase inicial do desenvolvimento de instrumentos financeiros como os CDS, o então presidente do FED, Alan Greenspan, opôs-se veementemente a qualquer tentativa de supervisão sobre aquele tipo de produtos.
[9] De naturalidade húngara e de ascendência judaica, Soros tornou-se mundialmente conhecido enquanto especulador quando em 1992 forçou o Banco de Inglaterra a desvalorizar a Libra e a abandonar o sistema de câmbios fixos. Actualmente é o Presidente da Soros Fund Management e do Open Society Institute.

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