domingo, 8 de fevereiro de 2009

A QUEDA DE UM ÍDOLO

Uma das ideias que pode ressaltar a quem tente acompanhar a evolução da crise económica, face ao manancial de informação que vai dando conta das contínuas quedas nas cotações bolsistas, do volume crescente dos fundos públicos destinados a injectar nos balanços dos bancos e das grandes empresas, da volatilidade de matérias-primas como o petróleo (cujo preço varia ao sabor de notícias sobre os volumes de reservas, a descoberta de novas jazidas ou mais uma qualquer acção armada no Médio Oriente), é a de que na prática toda a gente parece desorientada.

Banqueiros e autoridades reguladoras trocam acusações sobre a responsabilidade no eclodir da crise; os políticos (quer estejam no governo ou na oposição) continuam a apontar medidas avulsas e todo o somatório de boas intenções que se lhes afigure que rendam votos; até os “ricos” e os “pobres”, reunidos em cimeiras, não conseguem produzir melhores contributos e a maior parte dos habituais opinantes[1] parece insistir na velha panaceia de adicionar crédito em cima de crédito, na expectativa que com o tempo a economia retome.

Como deixei claro no post” anterior, é minha convicção que o crédito longe de constituir a solução é ele próprio parte fundamental da actual crise. Não que a existência da possibilidade de recurso a capitais alheios (bancários ou não) não seja um importante factor para o aumento do investimento, mas pelo efeito perverso que o crédito bancário introduziu nas economias quando, criado segundo o livre arbítrio dos banqueiros, passou a alimentar o processo de acumulação de juros em detrimento do natural mecanismo económico da criação de riqueza.

Por outras palavras, quando o crédito deixou de resultar dos ganhos acumulados nas actividades produtivas e de existir em resposta às necessidades de investimentos na esfera produtiva da economia (agricultura, industria, comércio e serviços), para ser criado a partir da simples vontade dos banqueiros e a existir para financiar a especulação financeira, passámos a atravessar crises de ciclos cada vez mais curtos.

Estas simples constatações deveriam bastar para que as soluções propostas, do tipo das que reputados economistas como o já citado Nouriel Roubini, Joseph Stiglitz ou Paul Krugman, sejam de duvidosa eficácia. É que soluções do tipo keynesiano[2] resultaram relativamente bem na primeira metade do século passado quando o grau de interdependência das economias era francamente menor que o que agora se verifica e não se tinha ainda iniciado o processo de deslocalização da produção em busca dos menores custos de mão-de-obra, fenómeno que não só atirou para o desemprego milhões de trabalhadores como lhes recusa a possibilidade de regresso à situação de activos.

Assim, a redução do preço do dinheiro (juro) não terá o efeito que teve no século passado na reanimação da actividade económica (salvo nas tais regiões onde se concentrou a produção por nelas se praticarem salários muito baixos); é certo que poderá proporcionar algum alívio às empresas (que não tenham cessado a sua actividade) e às famílias sobreendividadas, mas estas últimas nunca teriam chegado a esta situação se ao longo do tempo não tivessem visto persistentemente degradado o seu poder de compra e o incentivo ao seu endividamento não fosse a única forma das empresas continuarem a dispor de mercados.

Constatando-se que a origem das dificuldades se encontra numa óbvia distorção dos mecanismos de distribuição da riqueza – a começar pela destruição de empregos e a concluir-se nas políticas fiscais orientadas para o benefício dos maiores rendimentos – agravada ainda pelo facto de há muito tempo os Estados terem oferecido o monopólio da criação de moeda a interesses privados, como esperar que os responsáveis pela situação proponham agora as melhores soluções para o problema?

As operações de salvamento (bailout) não têm passado de novas operações de crédito para pagamento de créditos vencidos ou em vias de vencimento e o seu real efeito sobre a economia tem-se reduzido a um quase zero absoluto. Se em lugar de assegurar a sobrevivência dos bancos que se colocaram a si próprios em situações de quase insolvência (seja por excesso de endividamento, seja por excesso de exposição nos mercados de produtos de derivados ou por pura ganância especulativa), os governos actuassem de forma a aumentar o rendimento disponível das famílias e assim estimulassem as economias pela via da procura, o resultado seria seguramente mais rápido e mais efectivo.

A criação de um sistema económico baseado na apropriação da riqueza planetária por uma ínfima minoria não é apenas imoral e condenável, é também economicamente insustentável, como esta crise bem o demonstra. A concentração da riqueza numa elite tecnicamente dotada, tendo como óbvia contrapartida uma drástica redução no rendimento disponível da vasta maioria que, forçada a viver a crédito contribui duplamente para o enriquecimento da minoria, não pode senão culminar numa crise de retracção do consumo logo que ocorre um primeiro sinal de redução do crédito.

Esta realidade apenas poderá ser invertida se, e quando, for revisto o mecanismo de distribuição da riqueza produzida (seja através de uma política de redistribuição da riqueza radicalmente diferente, seja através da distribuição de um dividendo universal[3], seja através de uma política fiscal mais equitativa, seja através de uma combinação de todas elas) e se terminar com o monopólio privado da emissão de moeda, para que o crédito necessário ao desenvolvimento e ao crescimento das sociedades seja encarado como o bem público que deve ser.

Isto não implica o fim obrigatório da chamada banca comercial mas a sua indispensável adaptação a uma nova realidade, onde o seu papel de guarda de valores e de agente de redistribuição de capital (entre os sectores naturalmente aforradores e aqueles que procuram capital para complementar os seus projectos de investimento) decorra sob estrito controlo da regulação pública.

O regresso do processo de criação de moeda à esfera pública deverá assegurar não só vias menos onerosas de acesso aos financiamentos necessários ao desenvolvimento económico, como, caso seja acompanhada de outras medidas orientadas para a redistribuição da riqueza, contribuir para o progressivo desendividamento das famílias; já a implementação de regras mais restritivas no controlo dos bancos deverá reduzir substancialmente o risco originado pelos excessos na especulação.

Escusado será recordar que grandes tormentas exigem grandes medidas e que esta hipótese de actuação só atingirá uma eficácia reconhecida quando for um modelo de aplicação generalizada, facto que reafirma a necessidade de elaboração de estratégias internacionais e exclui soluções de dimensão ou âmbito meramente nacional ou regional.

Estarão os nossos decisores à altura de entender este desafio? Ou continuarão, embalados no remanso dos ganhos do passado, convictos que as velhas mezinhas voltarão a produzir milagres?
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[1] Segundo noticiou o JORNAL DE NEGÓCIOS, até Nouriel Roubini (o “guru” que é apontado como o primeiro a ter previsto a chegada da crise) preconiza a descida da taxa de referência do euro para ZERO como forma de relançamento da actividade económica, por via do crédito.
[2] John Maynard Keynes (1883–1946), economista inglês considerado um dos mais influentes economistas do século XX e considerado o pai da teoria macroeconómica, defendeu o papel regulador do Estado na economia, através de medidas de política monetária e fiscal e de investimentos directos, para promover políticas anti-cíclicas, principalmente em períodos de crise. Foi nas suas teorias que se baseou o essencial da política norte-americana de combate à Grande Recessão e que ficou conhecida com a designação de New Deal.
[3] O conceito de dividendo universal resulta da aplicação prática do princípio de que as riquezas naturais são propriedade de todos os cidadãos, pelo que a cada um será devida uma contrapartida pela venda, arrendamento ou uso privado desses mesmos bens.

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