domingo, 17 de setembro de 2006

O SAQUE DAS REFERÊNCIAS CULTURAIS

Ninguém, com um mínimo de formação cívica e ética, discordará do princípio de que é fundamental a preservação das raízes históricas e culturais de qualquer povo para assegurar a sua continuidade e a preservação das suas características próprias.

Vem esta introdução a propósito de um tema que há muito gostava de aqui abordar e para o qual tenho vindo a recolher a informação possível – a pilhagem de obras de arte.

Sendo históricas as pilhagens de bens em períodos de guerra, são-no igualmente a destruição e o roubo de objectos de arte. Os meios de comunicação recordam-nos regularmente as práticas do regime nazi nos territórios ocupados durante a II Guerra Mundial e mais recentemente fizeram eco dos saques realizados em museus iraquianos, com particular destaque para o Museu Nacional do Iraque, logo após a entrada das tropas americanas em Bagdad. Além deste museu que continha a maior colecção conhecida de materiais pertencentes às antigas culturas do berço civilizacional mesopotâmico, foi ainda saqueada a Biblioteca Nacional do Iraque, donde desapareceram manuscritos e tabuinhas cuneiformes de valor incalculável, e a Escola de Estudos Islâmicos e o Ministério dos Assuntos Religiosos, onde existia uma colecção única de edições do Corão.

As primeiras notícias que davam conta do desaparecimento de mais de uma centena de milhar de peças arqueológicas foram sendo “suavizadas” ao longo do tempo, ficando sempre a dúvida sobre a realidade do prejuízo (incalculável quer do ponto de vista monetário, quer do cultural) e sobre a autoria material dos actos.

Entre mais antigas as peças desaparecidas (datadas de 2000 AC) encontram-se: uma harpa em ouro maciço; uma escultura de cabeça feminina de Ur, uma das principais cidades sumérias e uma colecção de jóias constituída por colares, pulseiras e brincos das dinastias sumérias.

Após numa primeira fase os actos de vandalismo terem sido atribuídos à própria população iraquiana parecem agora prevalecer duas teses:

  • a primeira delas atribui os roubos aos antigos membros do governo de Saddam Hussein, que nas horas que antecederam a queda do regime terão aproveitado para pilhar o que puderam;
  • a segunda defende que a pilhagem foi organizada por especialista no comércio internacional de objectos de arte que, como forma de disfarçar a sua actuação, organizaram as pilhagens e a destruição que se lhe seguiram.

De uma forma ou outra parece um dado assente que as galerias e os cofres do Museu Nacional do Iraque, bem como outros situados noutras cidades, viram os seus acervos e registos pilhados e destruídos e que o estado em que estes ficaram pode bem resultar quer da acção de ex-membros do governo de Saddam quer do inqualificável desleixo das forças de ocupação, que apesar de terem abandonado à sua sorte o espólio museológico de artefactos de civilizações com mais 4.000 anos de existência, por alegada falta de meios para assegurar a respectiva protecção, dispunham dos meios necessários para proteger os Ministérios do Petróleo e do Interior (seguramente por estes disporem, respectivamente, de informação estratégica sobre os poços petrolíferos existentes, a localização das reservas conhecidas e de informação de segurança interna), os únicos edifícios públicos que não foram alvo de qualquer acção de pilhagem.

Apesar dos esforços realizados por organizações como o MIDLE EAST FORUM para lançar a responsabilidade pelo saque sobre o regime de Saddam Hussein, recorrendo entre outros argumentos a uma táctica de desacreditação dos arqueólogos ocidentais que têm denunciado a situação, acusando-os de terem colaborado com aquele regime durante o período em que os EUA decretaram sanções comerciais e económicas ao governo iraquiano, estou em crer que a realidade andará mais próxima daquela que Júlia Navarro ficcionou na sua obra a «A Bíblia de Barro», que se inspira em muito do que se terá passado.

A tese da participação de elementos de topo da hierarquia do partido Baath é perfeitamente verosímil, até pelo facto de muitos responsáveis do Museu Nacional terem declarado que boa parte das obras mais valiosas se encontrava guardada em cofres e das respectivas portas se mostrarem arrombadas (algo particularmente difícil de executar por um “bando” de pilhadores), tal como a da operação ter sido organizada no exterior (forma mais óbvia e simples de assegurar que as obras roubadas chegassem rapidamente aos potenciais compradores).

Há muito que em defesa desta tese o meio académico se vem interrogando sobre o papel que poderá ter desempenhado o AMERICAN COUNCIL FOR CULTURAL POLICY (ACCP), associação norte-americana, fundada com o objectivo de influenciar a suavização das futuras leis iraquianas de protecção da exportação de antiguidades. De acordo com a jornalista Sonja Zekri, do jornal alemão SÜDDEUTSCHE ZEITUNG, será a legalização da pilhagem da cultura mesopotâmica pelos americanos.

Esta asserção é parcialmente confirmada por declarações de responsáveis por aquela associação, que não escondem o seu interesse em que as leis do novo Iraque permitam a exportação de obras de arte antigas. Não é por isso estranho que para muitos o ACCP seja entendido com um grupo de influentes comerciantes que preconizam a abrandamento das apertadas restrições que o Iraque impunha sobre a propriedade e a exportação de peças arqueológicas. Entre os principais críticos da ACCP encontra-se Patty Gerstenblith, presidente do ARCHAEOLOGICAL INSTITUTE OF AMERICA (AIA), que acusa frontalmente aquele grupo de pretender estimular a criação de colecções de artefactos arqueológicos através da eliminação dos entraves criados pelos estados donde estas são originárias, bem como a sua classificação como propriedade pública para melhor permitir a sua exportação para os países ricos.

A realidade é que contrariamente ao que aconteceu durante a II Guerra Mundial, em que o avanço dos exércitos americanos pela Europa foi acompanhado por equipas de especialistas em arte afim de assegurar a preservação de locais e obras encontradas, no recente caso da invasão do Iraque tal não aconteceu.

Sabendo-se que o número de potenciais adquirentes das peças saqueadas do Iraque não deve ultrapassar a meia centena de pessoas (que além da característica de disporem de muito dinheiro aceitarão nunca poderem exibir as peças obtidas por aquela via) é de esperar que muitas das peças desaparecidas nunca apareçam no mercado para venda, tornando assim muito mais difícil a sua localização.

O reduzido número de “interessados” e a sua enorme capacidade financeira permitem a elaboração de um cenário para a operação particularmente rebuscado, mas não inverosímil de todo. Assim, pode bem ter sido elaborado um acordo com as altas esferas norte-americanas que planearam a invasão do Iraque, no sentido da obtenção de informação privilegiada sobre o início da campanha militar bem como a “indisponibilidade” para as tropas no terreno assegurarem a protecção dos principais museus.

Assegurada a participação de alguns altos responsáveis iraquianos as peças mais valiosas de locais como o Museu Nacional do Iraque, terão sido enviadas para fora do território nas primeiras horas da invasão. Na euforia da chegada das primeiras tropas americanas as populações terão sido instrumentalizadas para uma acção de saque aos museus, perante a passividade das tropas invasoras.

Com esta acção assegurava-se a destruição de muitas provas do saque organizado e dificultar-se-ia a rápida identificação das peças desaparecidas.

Um cenário desta natureza não parece difícil de imaginar e ainda menos de concretizar.

As imagens dão bem conta do estado de destruição das próprias áreas de armazenamento de obras e pior, a confirmar-se que se tratou de uma acção planificada e executada com verdadeira precisão militar, dificilmente as obras voltarão a aparecer nos anos mais próximos.

A coberto da sua posição de dominância os autores deste roubo dificilmente virão a ser conhecidos e a suportar qualquer sanção pelos actos praticados.

Além da barbaridade que é o roubo de peças com o valor histórico destas, a elaboração de um plano desta natureza pressupõe a existência de pessoas sem quaisquer escrúpulos morais e ainda de um grupo que poderá ter participado neste plano com o simples objectivo de ver destruído (ou desaparecido) tudo o que possa constituir elemento de agregação civilizacional, para melhor obter o resultado do desmembramento do Iraque enquanto nação.

Organizações insuspeitas, como a UNESCO, já reconheceram a existência de planificação neste processo de saque às riquezas artísticas do Iraque, recentemente agravada pela demissão do presidente da Comissão Iraquiana de Antiguidades e Património, fundamentada nas seguintes razões:

  • a comissão está cada vez mais influenciada por militantes do partido xiita de Moqtada Al-Sadr;
  • é crescente a predominância de um ponto de vista islamista em detrimento das culturas mais antigas do Iraque;
  • os contactos com os representantes americanos e estrangeiros em geral é desencorajado;
  • a partir de Setembro não haverá disponibilidades para continuar a pagar aos cerca de 1400 membros da força local de segurança e protecção;

o que leva a antever ainda maiores dificuldades na prossecução de uma política de protecção e preservação do património histórico daquela região e de todos nós.



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