quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O GRANDE EQUÍVOCO

Anunciada a suspensão das operações militares russas na Geórgia[1] e quando na imprensa ocidental é comum atribuir-se aquela acção às tendências imperialistas russas, ainda que despoletada pela iniciativa do presidente da Geórgia, Mikhail Saakashvili[2], de avançar com tropas para a Ossétia do Sul[3], estará a chegar o momento de fazer uma leitura dos acontecimentos.


A Geórgia foi uma das repúblicas originadas com o final da União Soviética e desde essa data que as tenções de natureza separatista com as regiões da Ossétia do Sul e da Abkházia têm alternado entre períodos de acalmia e de fricção, muito em função das posições pró-russas ou pró-americanas dos governos de Tbilisi.

A subida ao poder de Saakashvili, na sequência dos levantamentos populares que conduziram ao afastamento de Eduard Shevardnadze[4] e a sua reconhecida proximidade com os EUA têm agravado aquelas divergências, facto a que não deverá ser igualmente estranho a importância da Geórgia como território de passagem do estratégico “pipeline” que liga Bakou, no Azerbeijão, a Ceyhan, na Turquia.

Esta importância, além de poder ser apreciada em qualquer mapa da região, será ainda melhor entendida se recordar que aquela infra-estrutura transporta cerca de 20% das necessidades energéticas de Israel e existe em curso um projecto para estabelecer uma ligação submarina entre Ceyhan e Askhelon, em Israel.


Embora isto não explique o problema que terá estado na origem dos recentes confrontos, nem sirva de qualquer tipo de consolação para as populações atingidas pelos combates, é um dos dados mais importantes a reter em torno de toda a polémica que há alguns anos rodeia a região do Cáucaso e sobre a qual já
aqui me referi. A forte presença dos interesses anglo-americanos na região (a multinacional BP é um dos grandes investidores naquele “pipeline”), a teia de interesses que inclui a Turquia e Israel e, obviamente, o interesse russo na preservação do seu espaço vital estarão no cerne de mais este episódio sangrento.

Mas o principal responsável e, talvez, o maior perdedor é seguramente Mikhail Saakashvili, que com uma estratégia quase suicida, que nem o mais que natural apoio discreto dos EUA pode justificar, não só trouxe um cenário de morte e destruição para o território que governa, forneceu de mão beijada um excelente argumento à Rússia de Medvedev e Putin para aumentar a sua influência na região e ainda poderá ter hipotecado o seu futuro político e a estratégia pró-ocidental da Geórgia e da Ucrânia.

A decisão de Saakachvili de quebrar o sentimento separatista dos ossetas mediante o uso da força, além de ter originado uma resposta armada da vizinha Rússia e um pronto reacender do conflito na Abkházia, merece ser analisada também no contexto da actuação da própria NATO, organização que a Geórgia pretende integrar, mas que, além de algumas declarações mais ou menos agressivas nada fez para conter a intervenção russa e se viu prontamente acusada pelos russos de ter fomentado a iniciativa da Geórgia.

Entre os grandes ganhadores (russos) e os grandes perdedores (georgianos e americanos) a UE e o seu presidente em exercício, Nicolas Sarkozy, lograram apresentar uma solução negociada que Medvedev e Saakachvili já aceitaram publicamente e que além de assegurar o regresso aos quartéis do exército da Geórgia e o recuo do exército russo para as suas anteriores posições, a abertura de corredores humanitários para a acudir às populações mais atingidas e em fuga, termina com a promessa de futuras conversações sobre o futuro da Ossétia do Sul e da Abkházia.

Ainda que perante esta nova realidade a Rússia tenha alterado a posição que defendeu a propósito da independência do Kosovo (na oportunidade Moscovo opôs-se àquela iniciativa separatista) quase tudo parece ter voltado à posição inicial, ou irá a NATO usar este incidente para reactivar as suas estratégias de confronto com a Rússia?
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[1] A Geórgia é uma pequena república do Cáucaso, com capital em Tbilisi situada na fronteira entre a Europa e Ásia, com fronteiras a norte e a leste com a Rússia, a leste e a sul com o Azerbaijão, a sul com a Arménia e a Turquia e a oeste com o Mar Negro.
[2] Mikhail Saakashvili, antigo aluno de ciências jurídicas da Universidade de Nova Iorque, trabalhou no Instituto de Direitos Humanos da Noruega, no Comité de Estado de Protecção dos Direitos Humanos da Geórgia e num escritório de advocacia em Nova Iorque, ocupa o lugar de presidente da Geórgia desde 2004.
[3] A Ossétia do Sul é uma região da Geórgia, de população maioritariamente russa que adquiriu considerável autonomia do governo da Geórgia, na sequência de um conflito armado em 1991, e que apesar de ter declarado unilateralmente a sua independência nunca a viu reconhecida pela comunidade internacional (oficialmente a totalidade dos membros da ONU continuam a considerar a Ossétia do Sul como parte integrante da Geórgia).
[4] Eduard Shevardnadze antes de ter assumido a presidência da Geórgia foi ministro dos negócios estrangeiros da União Soviética sob a presidência de Mikhail Gorbatchov (1985/1990); tomou posse do cargo em 1992 e foi afastado em 2003, em consequência da pressão popular que ficou conhecida como a Revolução das Rosas iniciada na sequência de acusações de fraude eleitoral nas eleições legislativas realizadas nesse ano.

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