Marcando bem a importância da situação no Cáucaso, veio hoje Adriano Moreira, na sua habitual coluna semanal no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, chamar a atenção para a mensagem da intervenção militar russa, a qual segundo ele se traduz «...em informar os ocidentais, EUA, NATO, União Europeia, de que a Rússia recomenda a devida atenção para as suas propostas e interesses» e lembrar que o «...acordo de retirada das tropas invasoras é um intervalo, que o tipo de diálogo exigido tem um objecto mais vasto do que deixar a Geórgia a recuperar das feridas: é a definição das áreas de interesse, e das fronteiras amigas, ou pelo menos não inquietantes, que está em causa».
Esta abordagem da questão recorda-me uma outra que há dias li no LIBÉRATION, produzida por alguém que analisa a situação do ponto de vista russo – algo raro na imprensa ocidental[1] – e cuja relevância me parece ainda maior por o seu autor se encontrar longe de poder ser conotado com a corrente oficial do governo de Moscovo.
Assinado por Mikhail Gorbatchev[2] e com a ressalva de quaisquer erros de tradução da versão francesa serem da minha exclusiva responsabilidade, aqui fica o texto:
«Geórgia: A crise que a Rússia não desejava
A fase aguda da crise, provocada pelo assalto das forças georgianas a Tskhinvali, a capital da Ossétia do Sul, já faz parte do passado. Mas a dor continua presente. Como esquecer o horror do ataque nocturno com mísseis sobre essa pacífica cidade, a destruição de quarteirões inteiros, a morte dos habitantes soterrados nas caves das suas casas, a bárbara destruição de monumentos antigos e de sepulturas de antepassados? A Rússia não queria esta crise. Os dirigentes russos estão em posição de força suficiente no plano interno, não tinham necessidade de uma «pequena guerra vitoriosa».
A Rússia foi forçada ao combate pela imprudência do presidente georgiano, Mikhail Saakachvili, que não ousaria passar ao ataque sem apoio externo. A Rússia não se podia permitir não reagir. Ao decidir suspender as hostilidades, o presidente russo, Dmitri Medvedev, fez o que devia fazer um dirigente responsável. Os que esperavam um clima de confusão em Moscovo foram decepcionados. O presidente russo fez prova de calma, segurança e firmeza.
Os instigadores desta campanha queriam à evidência que a Rússia fosse acusada de ter agravado a situação na região e no mundo, independentemente do desfecho do conflito. Com o seu apoio, o Ocidente lançou uma ofensiva de propaganda contra a Rússia, em particular nos meios de comunicação americanos. A cobertura mediática esteve longe de ser justa e equilibrada, em especial durante os primeiros dias da crise. Tskhinvali estava em ruínas e milhares de pessoas fugiam da cidade na qual as tropas russas ainda não tinham entrado, mas já a Rússia era acusada de agressão, os meios de comunicação faziam-se eco das mentiras escandalosas proferidas por um líder georgiano galvanizado pelos seus apoiantes.
O Ocidente estaria a para dos planos de Mikhail Saakachvili? Esta questão fundamental ainda não foi respondida. O que é garantido é que a participação de ocidentais na formação das tropas georgianas e a venda de armas em massa conduziram a região à guerra e não à paz. Se a derrota militar surpreendeu os protectores estrangeiros do dirigente georgiano, pior para eles. Isto parece-se muito com uma manobra de diversão. O Ocidente desfez-se em elogios sobre Mikhail Saakachvili: um aliado fiel dos Estados Unidos e um verdadeiro democrata, que, além do mais, prestou um grande auxílio no Iraque. Hoje, cabe-nos a todos, os Europeus, e em especial aos civis inocentes que vivem naquela região, recolher os bocados para reparar a desordem provocada pelo melhor amigo da América.
Antes de fazer um julgamento apressado do que acontece no Cáucaso ou de procurar uma razão, é preciso compreender a complexidade desta região. Encontram-se Ossetas na Geórgia e na Rússia. Aliás, toda a região é uma manta de retalhos de grupos étnicos que vivem lado a lado. È por isso que é preferível esquecer todos esses conceitos sobre «a pátria» ou sobre «a libertação do nosso país». Devemos pensar nas pessoas que lá vivem. Os problemas do Cáucaso não podem ser resolvidos pela força. Tentou-se em diversas ocasiões, e essas tentativas voltaram-se contra os que as ensaiaram. O que é preciso é um acordo rigoroso que inviabilize o recurso à força. Po diversas vezes Mikhail Saakachvili recusou assinar um acordo, por razões agora bem claras. Ao Ocidente seria proveitoso contribuir agora para a assinatura de um tal acordo. Se preferir acusar a Rússia e rearmar a Geórgia, como defendem os responsáveis americanos, uma nova crise será inevitável em breve e nesse caso deveremos estar preparados para o pior.
Po último, Condoleezza Rice e George Bush prometeram isolar a Rússia. Alguns altos responsáveis americanos ameaçam expulsá-la do G8, suprimir o Conselho OTAN –Rússia ou pressionar para que não seja admitida na OMC. São ameaças vãs. Há já algum tempo que os Russos sentem que, se a sua opinião não tem qualquer influência nessas instituições internacionais, para que serve integrá-las? Desde há alguns anos a Rússia tem sido confrontada com os factos consumados: a independência do Kosovo, o abandono do tratado antimíssil e a construção de instalações antimísseis nos países vizinhos, ou ainda o alargamento incessante da NATO. Tudo isto a coberto de um discurso delico-doce evocando uma «parceria», mas que não passa de uma farsa. A quem é que isto pode agradar?
Ouvem-se hoje nos Estados Unidos apelos à revisão das relações com a Rússia. Penso que se é preciso rever alguma coisa, será a forma sobranceira de falar à Rússia, sem ter em conta a sua posição e os seus interesses. Os nossos dois países podiam elaborar uma agenda construtiva de verdadeira cooperação e não meramente simbólica. Penso que muitos Americanos e Russos estão conscientes dessa necessidade, mas e os dirigentes políticos? Uma comissão bipartida, presidida pelo antigo senador Gary Hart e pelo senador Chuck Hagel, acaba de ser criada para estudar as relações entre os Estado Unidos e a Rússia. A comissão é composta por gente honesta e a acreditar na sua primeira declaração compreende a importância da Rússia e de uma relação construtiva com esse país. A comissão tem por missão apresentar «recomendações à nova administração, destinadas a promover os interesses nacionais dos Estados Unidos nas suas relações com a Rússia». Se este é o seu único objectivo, então, duvido que dela saia qualquer coisa de útil. Se, pelo contrário, a comissão estiver pronta a considerar os interesses da outra parte e da segurança comum, será possível restaurar a confiança e começar a trabalhar conjuntamente de forma útil.»
que reforça precisamente a ideia da necessidade de respeito entre as partes para que situações idênticas possam ser prevenidas e de que o fracasso no processo de entendimento apenas poderá significar uma nova fase de corrida aos armamentos.
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[1] Manda a verdade que refira um outro artigo do mesmo autor, intitulado «A PATH TO PEACE IN THE CAUCASUS», publicado em 12 de Agosto no WASHINGTON POST.
[2] Mikhail Gorbatchev, jurista e economista de formação foi o último Secretário-Geral do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, entre 1985 e 1991. O seu programa de reformas, popularizado sob a designação “perestroika” (reestruturação) permitiu o final da Guerra Fria e iniciou o processo de dissolução da União Soviética. Em 1990 foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz. Após o seu afastamento em 1991, ditado por uma tentativa de golpe e pelo facto dos EUA terem transferido o seu apoio para Boris Yeltsin, fundou em 1992 um “think tank” russo – a Fundação Gorbatchev.
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