Esta aparentemente complicada movimentação geográfica acaba por na realidade contribuir para esclarecer muito do que actualmente se encontra em jogo nas fronteiras europeias. Contrariamente às análises vulgarmente encontradas na imprensa europeia e ocidental, o que está em jogo no Cáucaso não é nenhuma investida Russa contra as liberdades georgianas, não se assiste no Afeganistão a nenhum reacendimento da actividade dos guerrilheiros “talibans” (as emboscadas e os atentados fazem há muito parte da rotina naquele país), nem a Polónia necessita desesperadamente da presença militar norte-americana para defender a sua existência; o que na realidade se assiste é a um jogo de xadrez político visando a definição de posições estratégicas para melhor defender, ou contrariar, os interesses norte-americanos numa área particularmente importante pela riqueza da sua produção de hidrocarbonetos.
Como já aqui referi, não fora o facto do território georgiano ser atravessado pelo importante “pipeline” que liga Bakou, no Azerbeijão, a Ceyhan, na Turquia, e talvez o actual governo de Mikhail Saakashvili fosse menos apoiado pelos EUA e pela UE, talvez os sentimentos separatistas da Ossétia do Sul e da Abkházia registassem menor acolhimento de Moscovo…
…mas a realidade é que após a desastrada opção de força do governo georgiano contra os separatistas da Ossétia, a resposta da Rússia dificilmente poderia ser diferente e os seus resultados menos preocupantes. Como se não bastasse, a demonstração de força do exército russo não só revelou que a dupla Putin – Medvedev parece pouco disposta a continuar a assumir um papel subalterno nas grandes questões internacionais (e em especial naquela que classificam como sua zona natural de influência), como tornou evidentes as fragilidades e as contradições da NATO.
A organização político-militar que após a queda do Muro de Berlim parecia ter perdido a razão de existir e que a reencontrou quando se converteu num instrumento de projecção de poder dos EUA (nomeadamente após a intervenção nos Balcãs e no Afeganistão), mas que se encontra completamente enredada numa luta sem fim à vista naquele importante nó da antiga Rota da Seda e região de ponto de contacto entre a Ásia Central, a Ásia do Sul e o Médio Oriente.
Apesar dos quase sete anos de actividade militar da NATO na região, o Afeganistão continua a ser um país dilacerado pela constante actividade dos guerrilheiros ligados ao anterior regime “taliban”[1], facto que além de representar um significativo fracasso para aquela organização militar representa ainda o total insucesso da política norte-americana de “exportação da democracia”, significando para as populações envolvidas um estado de guerra permanente com milhares de baixas civis[2] e o recrudescimento da produção e comércio do ópio[3].
As contradições dos diversos governos ocidentais que integram a NATO têm-se traduzido numa quase total ausência de resultados por parte dos cerca de 35.000 homens estacionados na região que, a avaliar pelas notícias mais recentes, nem sequer conseguem estabelecer um governo sólido quanto mais opor-se de forma consistente ao crescimento da influência dos grupos mais extremistas[4].
Entre outras razões importa ainda referir a actuação do governo do vizinho Paquistão, país islâmico, minado pela alternância entre regimes militares e governos de natureza oligárquica[5], tem constituído mais um problema. Desde os anos 80 do século passado, época em que governo paquistanês então dirigido por Benazir Bhutto apoiou o movimento “taliban” (secundando a estratégia norte-americana de criação de uma força de oposição à presença soviética no Afeganistão) até ao do recentemente auto-demitido Pervez Musharraf, passando pelo governo liderado por Nawaz Sharif[6], todos se mostraram pouco empenhados em contrariar os sentimentos religiosos dos paquistaneses e enfrentar de forma decisiva aquele movimento[7].
Porque o muito que se noticia nos meios de comunicação ocidentais a propósito do Cáucaso não constituiu mais que uma visão parcelar dos problemas que o mundo em geral e aquela região em particular vive, é que importa não perder de vista o conjunto do tabuleiro onde se disputa um jogo de xadrez mais global e entender que os esforços que dos lados de Washington se continuam a fazer para transformar a fraqueza em força – nomeadamente no rápido aproveitamento para a instalação de mísseis na Polónia – e as divergências em estratégias concertadas, constituem sinais evidentes de algo está realmente a mudar no cenário mundial.
As fragilidades da NATO e o esgotamento das suas capacidades militares no Afeganistão não passarão dos primeiros sinais de mudança, tanto mais evidentes quanto a incursão russa na Geórgia o veio demonstrar da forma mais preocupante – elevando a Rússia além do papel de potência regional.
As questões que hoje se debatem nas fronteiras da Europa, com alguns países da ex-União Soviética[8] a ansiarem por integrar a NATO, e com a Rússia a denunciar a escalada armamentista dos EUA e da NATO próximo das suas fronteiras, avisando de forma cada vez mais agressiva que não permanecerá muito mais tempo inactiva, parece cada vez próxima a inevitabilidade do esgotamento do modelo unipolar, tão do agrado da actual administração norte-americana.
Ainda que possa pairar a dúvida quanto ao resultado final, parece cada vez mais seguro que o que resultará desta nova realidade vai depender principalmente das novas potência emergentes – China, Índia, Brasil e Rússia – e cada vez menos da exclusiva vontade dos EUA, temperada aqui ou ali, pela opinião da UE.
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[1] Uma das grandes manchetes do início desta semana foi a morte de 10 soldados franceses, notícia que o LE MONDE reportou, a par de outra sobre a reacção do governo de Sarkozy.
[2] Para obter dados mais actualizados sobre o número de mortos e feridos, ver a página UNKNONW NEWS.
[3] De acordo com um artigo publicado na página INTÉRÊT GÉNÉRAL, que citava um relatório da ONU, o Afeganistão produziu 95% do ópio cultivado em 2006.
[4] Em finais de 2007 o LE MONDE fazia-se eco do possível regresso dos “talibans” num prazo de dois anos.
[5] Sobre esta questão ver o post: «O DILEMA PAQUISTANÊS» e para uma noção da realidade actual ver a notícia da TSF que dá conta de que o «Viúvo de Benazir Bhutto aceita ser candidato presidencial» e das reacções de Nawaz Sharif.
[6] Nawaz Sharif, oriundo de uma das mais antigas famílias da região de Kashmir, exerceu as funções de primeiro-ministro do Paquistão entre 1990 e 1993 e entre Fevereiro de 1997 e Outubro de 1999, data em que foi deposto pelo golpe militar que levou ao poder o general Pervez Musharraf.
[7] A questão das ligações paquistanesas com os “talibans” não se resume à esfera religiosa, pois são antigas e públicas as ligações do ISI (os serviços secretos paquistaneses) e aquele movimento, questão a que já aqui me referi.
[8] Os casos mais falados são os da Geórgia e da Ucrânia.
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