Enquanto persiste a ideia de converter Tony Blair, o aliado preferencial de George W Bush e da inqualificável campanha militar contra o Médio Oriente, no negociador da paz israelo-árabe, algo que se assemelha a procurar combater o fogo com gasolina, um dos mais prestigiados defensores israelitas do princípio “dois povos-dois estados”, o escritor Amós Oz, viu-lhe ser atribuído um dos mais prestigiados prémios internacionais de letras – o Princípe das Astúrias.
Natural de Jeruslaém, Amós Oz foi um dos fundadores do movimento Peace Now e tem procurado com as suas obras descrever o ambiente em que vivem israelitas e palestinianos. Polémico quanto baste, tem vindo a defender uma solução que julga mais justa para os dois povos e, como seria de esperar, tem recebido fortes críticas de ambos os lados do conflito.
Apesar de ter combatido nas principais guerras em que Israel se viu envolvido (a Guerra dos Seis Dias e a do Yom-Kippur) e de afirmar sem pejos que voltaria a pegar em armas caso sentisse que o seu país estava realmente ameaçado, tem sido sistematicamente acusado de traição pelos mais radicais dos seus concidadãos e simultaneamente de pouco radical pelos palestinianos.
Embora não inesperado, é curioso que perante o delicado equilíbrio que deve ser o dia-a-dia de palestinianos e israelitas seja a comunidade internacional da cultura a revelar um maior equilíbrio e um maior sentido ético que a comunidade política.
Bom seria se propósitos e princípios como os defendidos por Amós Oz neste texto data de 2004:
«As duas faces do fanatismo, por Amós Oz
Uma onda de fanatismo religioso e nacionalista está a crescer por todo o mundo islâmico, das Filipinas a Gaza, Líbia e Argélia, do Afeganistão, Irão e Iraque até o Líbano e o Sudão.
Aqui, em Israel, temos sofrido os efeitos desta maré de fanatismo letal: quase diariamente somos testemunhas de assassinatos em massa e incitamentos odiosos, entre sermões religiosos que tecem loas à Jihad e sua concretização por meio de bombas suicidas e carros-bomba lançados contra civis inocentes.
O facto de sermos vítimas do fundamentalismo árabe e muçulmano deixa-nos frequentemente cegos, de modo que tendemos a deixar passar em branco a ascensão do extremismo chauvinista e religioso não apenas no mundo islâmico mas também em várias partes do mundo cristão e, de facto, também no judaico.
Se ficar comprovado que a terrível provação sofrida pelos Estados Unidos resulta do fato de “mulahs” e “ayatolahs” fanáticos persistirem em retratar o país como "o Grande Satã", então os EUA e Israel, o "Pequeno Satã", terão que preparar-se para enfrentar uma luta longa e árdua.
Talvez seja apenas humano que, por baixo do choque e da dor, sempre persista em alguns de nós, aqui em Israel, uma pequena voz que diz: "Agora, finalmente, todos eles vão compreender o que estamos a passar", ou "agora, finalmente, eles vão ficar de nosso lado".
Mas esta voz pequena é extremamente perigosa para nós. Ela pode facilmente levar-nos a esquecer que, com ou sem fundamentalismo islâmico, com ou sem terrorismo árabe, nada justifica a duradoura ocupação e repressão da população palestina por Israel. Não temos nenhum direito de negar aos palestinos o seu direito natural à autodeterminação.
Dois enormes oceanos não puderam proteger os EUA do terrorismo; a Cisjordânia e a Faixa de Gaza certamente não protegem Israel. Pelo contrário, dificultam e complicam a nossa autodefesa. Quanto antes terminar essa ocupação, melhor será tanto para os ocupantes quanto para os ocupados.
Neste momento, é muito fácil e tentador cair em clichés racistas sobre a "mentalidade muçulmana", o "carácter árabe" ou outras asneiras desse tipo.
O crime hediondo cometido contra Nova York e Washington vem lembrar-nos, de maneira contundente, que esta não é uma guerra entre religiões nem uma luta entre países. É, mais uma vez, a batalha entre fanáticos, para quem os fins - sejam eles religiosos, nacionalistas ou ideológicos - santificam os meios, e o resto de nós, que atribuímos santidade à própria vida.
Apesar da manifestação repulsiva de alegria e comemoração vista em Gaza e Ramallah enquanto pessoas em Nova York ainda estavam a ser queimadas vivas, que nenhum ser humano decente se esqueça de que a imensa maioria dos árabes e outros muçulmanos não é cúmplice do crime nem se regozija com ele. Quase todos estão tão chocados e aflitos quanto o resto da humanidade.
Talvez eles até tenham algum motivo especial de preocupação, na medida em que alguns sons ameaçadores de sentimentos anti-islâmicos indiscriminados já se fazem ouvir em alguns lugares. Tais manifestações não constituem reacção apropriada a este crime - pelo contrário, elas servem aos propósitos daqueles que o perpetraram.
Lembremo-nos: nem o Ocidente, nem o islamismo, nem os árabes são o "Grande Satã". O "Grande Satã" é personificado no ódio e no fanatismo.
Essas duas doenças mentais que vêm da Antiguidade ainda nos afligem hoje. Precisamos tomar muito cuidado para não deixar que nos contagiem.»
fossem utilizados pelos políticos que persistem em alimentar um clima de confrontação enquanto, candidamente, anunciam aos quatro ventos tudo fazer em prol da Paz.
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