Tanto quanto julgo saber trata-se do primeiro banqueiro galardoado com semelhante tipo de prémio, mas, a distinção não parece tão estranha conhecendo-se o empenho deste economista, natural do Bangladesh (um dos países mais pobres do mundo), na luta contra a pobreza.
A fórmula singular do seu método fica perfeitamente esclarecida quando afirma: «Acredito firmemente que todos os seres humanos têm uma habilidade natural. Chamo a isso a habilidade de sobreviver. O facto dos pobres se encontrarem vivos é a prova da sua própria habilidade. Eles sabem isso naturalmente. Disponibilizando crédito aos mais pobres permitimo-lhes que exerçam as suas próprias capacidades. Então, o dinheiro que ganham é uma ferramenta, uma chave que resolve outros problemas.»[1]
Detentor de uma sólida formação académica (foi bolseiro na Vanderbilt University, no Tennessee, onde obteve o seu PhD e leccionou durante sete anos), Mohammad Yunus regressou ao seu país, um dos mais pobres do Mundo, onde se confrontou com o dilema de leccionar grandes teorias económicas enquanto milhares de pessoas morriam de fome à sua volta. Um trabalho de campo, desenvolvido conjuntamente como os seus alunos da época, permitiu-lhe constatar que a maioria da população padecia de um crónico problema de falta de capital para poder exercer uma actividade que lhe proporcionasse o sustento e o da sua família.
Não resultando a sua extrema pobreza de nenhuma situação de preguiça ou desinteresse, mas sim de um sistema financeiro no qual apenas os detentores de bens materiais podem aspirar a obter o crédito que necessitam, Yunus concebeu um esquema de financiamento de pequenas quantias baseado num sistema de confiança e de mútua vigilância (do credor sobre os mutuários e destes entre si). Montado sobre apertados planos de pagamento (prestações semanais ou bimensais) e garantindo aos bons cumpridores o acesso a futuros financiamentos de maiores montantes, o Grameen Bank dispõe de mais de 1.400 agências, opera em mais de 50.000 aldeias por todo o Bangladesh[2] e orgulha-se hoje de ter emprestado mais 4,7 mil milhões de dólares e apresentar uma taxa de incumprimento da ordem dos 1% (algo com sonham todos os grandes banqueiros mundiais).
A razão do sucesso deste arrojado, mas extremamente simples, plano de combate à pobreza consiste em ter organizado um sistema transparente e que dispensa a maioria das necessidades associadas à imagem de um banco tradicional.
O Grameen Bank não dispõe de meios sofisticados nas suas instalações e os seus empregados visitam regularmente os clientes nas suas próprias aldeias, onde expõem as regras de funcionamento, entre as quais se contam princípios como o da obrigatoriedade de mandarem os filhos à escola, e procedem às entregas dos montantes emprestados e à recolha regular dos juros devidos. Os incumpridores são afastados do sistema (com o tempo revelou-se que as mulheres eram melhores cumpridores e que os benefícios do crédito eram mais rapidamente sentidos por toda a família) e os bons cumpridores vão-se tornando accionistas do próprio banco que com o tempo começou por alargar a sua actividade aos seguros de saúde. Também o sistema de organizar os devedores em pequenos grupos de quatro tem potenciado a confiança e a entreajuda entre os membros bem como o incremento da responsabilidade individual, uma vez que o insucesso de um penaliza o conjunto do grupo.
As transacções são propositadamente conservadas na sua expressão mais simples; os empréstimos são contratados sempre pelo prazo de um ano e os juros pagos a partir da segunda semana. Este sistema liberta os devedores da pressão e da necessidade de gerir somas maiores, caso os pagamentos fossem de maior periodicidade, e simultaneamente contribui para aumentar o seu próprio grau de confiança. Todos os pagamentos são efectuados em público, em reuniões que juntam entre oito e dez grupos de devedores, pelo que num país onde grassa a corrupção aos mais variados níveis da administração, o Grameen Bank orgulha-se de ser tão transparente quanto possível.
Contrariando as previsões e a clássica perspectiva do sector bancário de que os que não têm recursos não são suficientemente credíveis para assegurar um financiamento bancário, o modelo desenvolvido e implementado através do Grameen Bank tem apresentado resultados na redução da pobreza. Estudos independentes, realizados pelo Banco Mundial, indicam que cerca de metade dos mais de 2 milhões de pessoas que o Grameen Bank financiou conseguirão num prazo de 5 anos ultrapassar o nível de pobreza, enquanto outros 25% estarão próximo dessa linha.
Entre as razões para o sucesso deste esquema de microcrédito, Yunus aponta o facto da «...pobreza revestir os pobres de uma imagem de incapacidade e falta de iniciativa. Porém, se obtiverem crédito voltarão lentamente à vida, Até os que parecem menos adaptados são bastante inteligentes e dotados na arte da sobrevivência. O crédito é a chave que desbloqueia a sua humanidade.» [3]
O conceito de microcrédito lançado por Mohammad Yunus vai muito além do que vulgarmente é praticado por outro tipo de operadores (prestamistas, familiares, bancos, etc.) no mercado. Yunus denomina-o “Grameencrédito” e define-o como aquele que:
- promove o crédito como um direito humanitário;
tem por missão ajudar as famílias mais pobres a ultrapassarem a pobreza;
- não é baseado na existência de qualquer garantia real ou contrato formal, mas sim na confiança;
- tem prazos curtos (um ano), destina-se à criação do próprio emprego e à geração de rendimento para as famílias e não orientado para o consumo;
- implica a adesão a um grupo de devedores e está associado a um plano de poupança, com uma dupla componente (obrigatória e facultativa), é sujeito a planos de amortização semanais ou quinzenais e a correcta amortização assegurará o acesso a novos empréstimos;
- a caridade não é uma resposta adequada para a lutar contra a pobreza, pois apenas ajuda a sua perpetuação;
- a caridade cria dependência e anula a iniciativa individual para romper o ciclo de pobreza;
- a solução passa pela força de vontade e a criatividade de cada ser humano para lutar contra a pobreza.
A filosofia subjacente ao funcionamento do Grameen Bank, que criou um sistema mutualista e de entreajuda dos grupos e subverte todas as regras da banca comercial, tem vindo a ganhar consistência e actualmente o microcrédito começa a diversificar-se, abrindo linhas de crédito à habitação, produtos de poupança, seguros de saúde e crédito para a aquisição de equipamentos de energia solar e telemóveis. Paralelamente estão também a nascer novas empresas no seu universo, vocacionadas para outros sectores de actividade como as pescas, a indústria têxtil, as telecomunicações, as energias renováveis e a Internet.
Mohammad Yunus é particularmente duro quando afirma que «...podemos afirmar que as pessoas são pobres hoje devido ao fracasso do apoio que as instituições financeiras lhe deram no passado. Tal como o direito à comida, ao vestuário, ao abrigo, à educação e à saúde, o acesso ao crédito devia ser reconhecido como um direito humano fundamental».[5]
Se é certo que a eliminação das condições de pobreza extrema em que vivem milhões de seres humanos poderá constituir um forte contributo para a redução das tensões sociais e económicas que muitas vezes conduzem aos conflitos armados, não é menos verdade que o trabalho de Mohammad Yunus demonstrou a validade de toda uma formulação teórica em torno do fenómeno do empobrecimento e do método para a resolução do ciclo infernal do subdesenvolvimento.
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[1] Traduzido de Good Banker, de Alan Jolis in The Independent on Sunday Supplement, 5 May 1996 (in http://www.grameen-info.org/agrameen/profile.php3?profile=2)
[2] Este conceito encontra-se já difundido em 52 outros países (situados na Ásia, América do Norte e do Sul, África, Europa e Oceânia), entre os quais os EUA onde, a convite do ex-presidente Clinton, então governador do Arkansas, opera desde 1980, em Pine Bluff, a rede do Good Faith Fund.
[3] Traduzido de Good Banker, de Alan Jolis in The Independent on Sunday Supplement, 5 May 1996 (in http://www.grameen-info.org/agrameen/profile.php3?profile=2)
[4] Traduzido de “TWENTY GREAT ASIANS – THE LENDER – Muhammad Yunus” in Asiaweek (in http://www.grameen-info.org/agrameen/profile.php3?profile=3)
[5] ibidem
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