No tradicional discurso presidencial do 5 de Outubro, Cavaco Silva escolheu abordar uma das questões basilares de todos os regimes que o país conheceu nos últimos cem anos – a corrupção.
Não parecendo estranha a oportunidade (seja a efeméride, seja o ambiente nacional) já me parece digna de nota a personalidade que abordou o tema.
Não porque englobe directamente Cavaco Silva no grupo dos grandes corruptores/corrompidos, mas porque ainda tenho bem presente muitas das ocorrências durante a vigência dos seus governos. Entre estas destaco o facto deste ter sido um dos períodos mais férteis para a proliferação de múltiplos compadrios e outros “esquemas” muito pouco lícitos na vida pública nacional (para este facto muito terá contribuído o facto deste ter sido o primeiro período de maioria política de um só partido e o grande afluxo de fundos comunitários) e principalmente um episódio com o próprio Cavaco que reputo de perfeitamente ilustrativo, quando ele (ou alguém com sua ordem ou consentimento) mandou encerrar um troço de estrada no Algarve para que aquele e a sua família se pudessem deslocar em segurança à praia.
Refiro este episódio não pela sua dimensão, mas pelo que ele representa de prepotência e de potenciador para outros comportamentos igualmente pouco éticos e seguramente bem mais prejudiciais.
Será neste mesmo nível de preocupação que se insere a proposta recentemente apresentada por João Cravinho para que se consagre em lei a responsabilização, por negligência ou omissão, do superior hierárquico do funcionário que cometa um crime de corrupção.
Mas, sejamos pragmáticos, por melhor e mais dura que seja a reformulação jurídica em torno do fenómeno da corrupção (como seja o caso da distinção entre corrupção para acto lícito e para acto ilícito) e por melhor intencionado e bem dotado de meios que possa vir a ser um eventual organismo de fiscalização, um fenómeno tão generalizado e enraizado a todos os níveis da vida nacional como o da corrupção dificilmente será combatido sem uma outra condição – uma profunda alteração de valores e mentalidades.
Naturalmente que numa primeira fase haverá a necessidade de proceder à introdução de mecanismos formais de emissão de regras (tanto mais draconianas quanto o fenómeno tende a alastrar rapidamente) e de controlo, que terão de receber das principais instâncias do poder um claro sinal de apoio e a adesão da opinião pública (aquela que tanto clama contra o oportunismo, mas muito pouco tem feito para lhe por cobro). Terá sido neste contexto que a magistrada Cândida Almeida, directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal da Polícia Judiciária, num seminário promovido pelo Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais defendeu que a lei, pura e simplesmente, deveria proibir a aceitação de presentes por parte do funcionário público «porque pode haver corrupção sem a contrapartida imediata. Mas criam-se condições para uma num futuro próximo» e que a actual Lei de Protecção de Testemunhas não pode ser aplicada aos casos de corrupção, porque apenas prevê medidas de protecção mais fortes para os crimes de terrorismo, associação criminosa e tráfico de seres humanos.
Muitas são as ocasiões em que vozes, mais esclarecidas (e talvez menos sujeitas ao “doce encanto” e aos altos proventos proporcionados pela corrupção) se têm feito ouvir para apontar medidas e enunciar modelos de actuação, mas até esta data pouco ou nada se tem feito e muitos são os casos de conhecimento público em que as suspeitas parecem bem mais que fundadas. Aliás até hoje ainda não compreendi porque é que relativamente a certas figuras do panorama político, autárquico e desportivo deste país não foram minimamente investigados os seus rápidos enriquecimentos (normalmente coincidentes com períodos de exercício de funções públicas e autárquicas de elevada responsabilidade), deixando-nos na eterna dúvida, com as suspeitas a manterem-se num estado latente e os suspeitos a viverem de forma cada vez mais ostentatória.
Em meados de Setembro, escrevia Eduardo Dâmaso, num editorial do DIÁRIO DE NOTÍCIAS, que «…só pode estar a brincar quem não ache importante ultrapassar o inexpugnável obstáculo da lei penal que exige uma contrapartida directa, promessa ou solicitação da mesma, para que o crime [de corrupção] se verifique. Na prática, esta formulação não penaliza o funcionário público (autarca, deputado, funcionário administrativo, juiz, procurador, polícia) por receber prendas de grande ou considerável valor. Um funcionário que tenha recebido de um empresário a prenda de uma viagem à volta do mundo para toda a família uns meses depois de esse empresário ter ganhado um concurso onde o primeiro possa ter tido intervenção decisiva não deve ser punido? Um político que entrega concursos de obras públicas por ajuste directo a uma empresa para onde irá trabalhar quando terminar o mandato deve continuar a viver no actual regime de completa impunidade? A actual formulação do crime de tráfico de influências satisfaz a consciência dos eminentes juristas que legislam em Portugal? Os exemplos poderiam ser intermináveis. Bastaria que o Governo quisesse ouvir quem sabe. O que não é suportável são as respostas "políticas" de assobiar para o lado que se têm visto nos últimos dias», reforçando a ideia da necessidade de actuação. Outros analistas, como António Costa Pinto, também partilham a mesma preocupação (veja-se este seu recente artigo de opinião no DIÁRIO DE NOTÍCIAS), centrando-se principalmente na área da corrupção política onde «…Portugal tem infelizmente uma vasta panóplia da grande, pequena e média, que nos coloca em pior posição, «…» sobretudo, a inexistência de punição».
A par com as alterações legislativas que João Cravinho vem defendendo, com a mudança nas mentalidades e comportamentos a que outras personalidades vêm apelando, parece-me igualmente indispensável que seja desde o início da formação de cada cidadão que se verifique uma radical alteração de valores.
Assim, a par com a necessidade de inculcar aos mais novos a ideia de que a aprendizagem se faz por um processo de trabalho e esforço, também noções como as da honestidade e a condenação dos oportunismos que vemos grassar um pouco por todos os lados deverá acontecer desde os primeiros anos de formação.
A ética, ciência ultimamente tão maltratada, terá que voltar a marcar a primazia na mente e nos actos de cada um de nós.
Sem bucolismos saudosistas ou boçais, os tempos em que os homens fechavam negócios com um simples aperto de mão, em que a palavra dada era algo de sagrado e inviolável e em que ninguém arriscava o opróbrio público (ou semi público) de se ver apontado como menos íntegro, terão de voltar a integrar o dia-a-dia de todos nós como algo de natural, devendo a regra deixar de ser a glorificação da fama, sucesso e riqueza a qualquer preço e à custa do prejuízo alheio.
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