Nada de espantoso no tema nem no conteúdo do relatório, que ao longo das suas quase 30 páginas procura enumerar as vertentes em que o Irão poderá constituir uma ameaça para os EUA, centrando-se todo ele, como seria de esperar, na questão deste país poder vir a dotar-se de armamento nuclear.
Podendo-se considerar este trabalho como mais una peça no “puzzle” que a administração americana procura montar para fundamentar a sua campanha contra o programa nuclear iraniano, tanto mais oportuna quanto terminava no final desse mês o prazo fixado por americanos e europeus para a resposta iraniana a uma proposta de compensações para terminar com aquele programa, parecem-me dignas de nota duas questões:
- o título do próprio relatório – Recognizing Iran as a Strategic Threat: An Intelligence Challenge for the US – que contrariamente à tradução proposta pelo DIÁRIO DE NOTÍCIAS na sua edição de 15 de Setembro – Identificando o Irão como Ameaça Estratégica: Um Desafio para a Recolha de Informações dos EUA – não significa uma identificação clara, mas sim a necessidade dos seus argumentos serem aceites como tal;
- a contestação, dias depois, pela AIEA de algumas das afirmações que contém.
A tradução que proponho para o título do relatório – Reconher o Irão como Ameaça Estratégica: Um Desafio para a Recolha de Informações dos EUA –, não é displicente nem inócua, na medida em que todo o texto do relatório se centra na questão fundamental de ver reconhecido o Irão como ameaça estratégica e não a da apresentação de provas conclusivas e irrefutáveis dessa mesma perigosidade.
Como muito bem assinala a AGÊNCIA INTERNACIONAL PARA A ENERGIA ATÓMICA, numa carta assinada pelo seu director para as Relações Externas e Coordenação Política, o conteúdo do relatório é enganador. Este alto responsável da agência internacional encarregue de vigiar a utilização da energia nuclear aponta o seguinte conjunto de erros e deturpações contidas no relatório:
- o Irão está a utilizar as suas instalações nucleares de Natanz, equipadas com 164 centrifugadoras, para a produção de urânio enriquecido para fins militares. Ora a AIEA afirma que o Irão apenas está a enriquecer urânio a 3,6%, quando o enriquecimento em urânio-235 para fins militares terá que ser da ordem dos 90%;
- com a cobertura da AIEA o Irão tem produzido Polónio-210, elemento utilizado em armas nucleares e em baterias para satélites. Mas a AIEA afirma que a produção daquele componente não está limitada nos termos do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, como insinua o relatório;
- a AIEA não pratica qualquer política de restrição de informação como afirma o relatório quando associa a demissão de um antigo membro da equipa de inspectores a declarações por ele prestadas sobre irregularidades nas práticas nucleares iranianas;
- em momento algum o relatório reconhece o trabalho feito pela AIEA, nem o facto do Conselho de Segurança da ONU considerar aquele trabalho como imparcial e relevante para a resolução da questão nuclear iraniana (resolução 1696);
- o director para as Relações Externas e Coordenação Política da AIEA termina lamentando que em momento algum os autores do relatório tenham contactado aquela agência para colher informações ou esclarecimento de dúvidas.
Perante os esclarecimentos prestados pela AIEA, mesmo admitindo que possa haver algo por explicar no afastamento da equipa de inspectores de Christopher Charlier, então inspector-chefe para o Irão, permanecem as incongruências entre aquilo que a agência afirma passar-se nas instalações nucleares iranianas e aquilo que os americanos dizem que estará a acontecer.
Não admira que se avolume a sensação de que estamos a voltar a assistir a algo de semelhante com a campanha de desinformação patrocinada pela administração de George W Bush para justificar a invasão do Iraque; tal como então afirmava que Saddam Hussein dispunha de um vasto e perigoso arsenal de armas químicas, também agora não restam quaisquer dúvidas que o Irão está prestes a produzir armas nucleares. Para os sectores mais conservadores (e belicistas) da sociedade norte-americana não se trata de produzir provas do incumprimento iraniano do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, mas tão-somente de realizar afirmações nas quais todos devem acreditar como verdade irrefutável e absoluta em si mesma.
Para servir mais directamente os interesses de grupos económicos que anseiam pela perpetuação de situações de conflito e instabilidade (grandes geradores de chorudos negócios para sectores de actividade como a produção de armamento e de toda a espécie de equipamentos, produtos e serviços militares, os sectores da segurança e da construção civil) e que alimentam:
- os “think tank”, cada vez mais numerosos grupos de reflexão normalmente baseados em universidades;
- as empresas de “lobby”, que se dedicam a influenciar os senadores para votarem num ou noutro sentido as propostas de lei e constituem uma verdadeira excrescência da “democracia” norte-americana;
- uma economia em geral que desde a II Guerra Mundial se habituou a funcionar segundo os padrões e mecanismos de uma economia de guerra;
os representantes dos eleitores norte-americanos não hesitam em agitar monstros e fantasmas com os quais continuam a iludir e enganar a maioria dos que os elegeram.
Este relatório não é mais que uma peça exemplar de desinformação, mistificação e apresentação de hipóteses e/ou suspeitas como de dados seguros e irrefutáveis se tratassem.
Não encontrei nele nenhuma novidade relativamente a muitos outros ensaios, reportagens e notícias jornalísticas ou artigos de opinião que me levassem a concluir que o Irão esteja a violar os termos do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (confirmado pela própria AIEA) e tal como já o afirmei aqui, não duvido que o objectivo último de Teerão seja a produção de armamento nuclear, mas quem moralmente poderá impedi-lo?
Os países que já dispõe de idênticos arsenais, alguns dos quais nem sequer aderiram ao Tratado de Não-Proliferação (como é o caso de Israel)?
Os países que desenvolvem programas nucleares (como o Brasil e a Argentina) ou aqueles que já anunciaram a intenção de iniciar idênticos programas (como é o caso do Egipto)?
Os países que não dispõem de qualquer tecnologia nuclear?
A ausência de resposta afirmativa perante estas questões deixa antever apenas uma solução para a questão do nuclear iraniano: a negociação.
A razão para a recusa americana da solução óbvia nada tem a ver, como pretendem alguns, com a natureza teocrática e autocrática do regime iraniano, nem com razões de natureza psicológica (vingança da invasão da embaixada americana em Teerão após o derrube do Xá), como pretendem outros. Aquela hipótese, que a administração Bush tem vindo a recusar, debate-se mais do que com estes obstáculos, com as dificuldades originadas pela complexa situação naquela região do Médio Oriente (ver a propósito este “post”), para a qual a recente invasão israelita do Líbano com nada contribuiu de útil. Embora com alguns meses de data veja-se o que a este respeito escreveu o actual ministro português da Defesa – Nuno Severiano Teixeira – no DIÁRIO DE NOTÍCIAS de 13 de Maio último, e constate-se a que ponto evoluiu ou regrediu a hipótese de concertação de posições entre os países membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.
Sendo a concertação de opiniões uma questão fulcral, como entender este relatório do Senado Americano senão como mais uma manobra da desastrosa política unilateralista da actual administração americana?
Sabendo-se que um dos sectores económicos que mais tem combatido a aplicação daquele Protocolo é o petrolífero, que a família Bush (pai e filho) têm importantes ligações àquele sector de actividade, que o Médio Oriente constitui, ainda, a principal fonte de exploração (e de reservas) de hidrocarbonetos a nível mundial, como não ligar todas estas “pontas” e perceber que o que realmente tem estado em causa no “modus operandi” da administração Bush é apenas a preservação de uns quantos interesses corporativos e nunca (como bem se viu nos acontecimentos que sucederam ao furacão Katrina) a aplicação de uma política de interesse geral das populações americanas.
Pior ainda, qual o significado de apresentar na capa do relatório uma fotografia do presidente iraniano – Mahmoud Ahmadinejad – discursando durante a conferência 'The World without Zionism' que teve lugar em Outubro de 2005 em Teerão?
Manobras tão primitivas e infantis para “diabolizar” o Irão poderão funcionar entre uma população americana habituada a acreditar em tudo o que vê reflectido nos écrans de televisão, mas dificilmente conhecerão o mesmo tipo de sucesso junto dos europeus, cada vez mais cansados deste clima de permanente insegurança e ameaça que alguns persistem em querer perpetuar.
1 comentário:
Não importa se estas manobras primitivas "funcionam" na população americana ou sequer na europeia, enquanto os governantes do Mundo estiverem dispostas o servir de capachos, à revelia das opiniões maioritárais dos seus cidadãos e enquanto os OCS fizerem campanha cerrada com estas desinformações e censura, ainda mais cerrada, às vozes discordantes e sensatas. Não se esqueça de Durão, da sua colaboração nas mentiras que levaram à invasão do Iraque contra a vontade manifesta da maioria da população portuguesa e Mundial. Quanto a Blair, idem, como com Aznar... e não esqueça que Durão é agora o Presidente da Comissão Europeia... tendo tomado posse depois de ter sido corrido com menos de 13% dos votos dos eleitores portugueses, precisamente para as Europeias.
Este sistema eleitoral vigarista tem de ser alterado urgentemente, apra se poder "cortar o passo" a tanta infâmia.
Até porque as nossas competências quanto às posições a adoptar nestas matérias são mesmo essas: determinar as posições a adoptar pelos nossos governantes, porque é aqui que temos os nossos direitos de cidadania...
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