quarta-feira, 30 de agosto de 2006

UM ANO DEPOIS DO KATRINA

O dia 29 de Agosto marcou o primeiro aniversário da passagem do furacão Katrina pelo sul do território dos EUA. Esse grande país cuja dimensão territorial, riqueza e sede de poder dos seus dirigentes alcandorou à destacada posição de potência suprema do planeta.

Paralelamente com este cenário de grandiosidade e poder continuaram ao longo dos doze meses do ano que decorreu a chegarem-nos ecos da situação calamitosa em que as populações da cidade destruída de Nova Orleães continuam a viver. Embora correntemente se afirme que uma imagem vale mil palavras, prefiro marcar o desastre com as palavras escritas poucos dias depois por uma jornalista americana (negra) de um pequeno jornal do estado do Kentuky, no interior dos EUA.


«A AMÉRICA NEGRA ACUSA

Refugiados. Eis como os meios de comunicação nos apresentaram os deslocados por causa das inundações. Refugiados? Um refugiado é alguém que foge da guerra, da opressão, da perseguição, não de uma catástrofe natural. As pessoas que vemos nos nossos écrans de televisão ou nos jornais são habitantes de Nova Orleães. Contribuintes americanos. Negros e pobres, na sua maior parte. São pessoas como nós conhecemos, que vigiam as nossas crianças, que recolhem as mesas nos restaurantes, que limpam as nossas habitações e os quartos de hotel, que se desembaraçam como podem para aguentar entre cada pagamento de salário. Na sua grande maioria. São nossos compatriotas, Americanos. E nós tratamo-los pior que alguma vez vi este país tratar quem quer que fosse que se encontrasse numa situação tão desesperada.

Ser negro e pobre nestas circunstâncias é ser como um animal. Porque não existe qualquer dúvida que se fossem seres humanos teriam recebido auxílio muito, muito mais cedo. Muitos dias após a passagem do furacão Katrina, os que não puderam fugir viam-se obrigados a urinar diante dos forasteiros por falta de instalações de auxílio. Como fazem os animais. Encontrei ainda duas mulheres junto dos corpos em decomposição dos seus maridos, mortos alguns dias antes e tapados apenas com um cobertor. Sobreviventes contavam que tinham tido de abrir caminho, com a água pelo peito, entre os cadáveres que flutuavam. Nunca anteriormente se deixou que tal acontecesse nos Estados Unidos. Abandonou-se os habitantes de Nova Orleães à sua sorte. Sendo classificados como refugiados não é necessário apresentá-los como Americanos. Quando os tratam como refugiados, não é preciso tratá-los como vizinhos. Longe de querer ofender os habitantes de Alabama ou do Mississipi que tiveram, eles também, o azar de se encontrarem no caminho de passagem do Katrina. Quer sejam negros ou brancos, perderam entes queridos e bens. Mas retiraram-se os seus mortos e não estão cercados pelas águas. Sabendo que dezenas de milhares de pessoas foram abandonadas em Nova Orleães, sabendo que os diques rebentaram e que as águas corriam livremente pelas ruas da cidade, alguém devia ter enviado socorros muitos dias mais cedo. Mas também era preciso que o governo federal, democratas e republicanos, fossem capazes de se identificar com as classes trabalhadoras e desfavorecidas do país. E ainda faltava considerar as vítimas como pessoas deslocadas, como seres humanos, e não como refugiados. O valor da vida humana não pode depender dos meios financeiros de cada um ou da cor da sua pele

Merlene Davis no Lexington Herald Leader (início de Setembro de 2005) – sublinhados meus.

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