Apesar de tudo parecer na mesma após os longos dias do confronto entre os israelitas e o Hezbollah (excepção feita aos mortos, deslocados e à destruição praticada) o ambiente mudou bastante nos territórios mais directamente afectados. Enquanto o governo libanês se preocupará com dois níveis diferentes de problemas – ao nível económico enfrentando as dificuldades da reconstrução das infraestruturas destruídas pelos israelitas e o fornecimento de um mínimo de condições às populações atingidas e às deslocadas, enquanto a nível político e militar procura mostrar empenho e capacidade para desarmar o Hezbollah, ou garantir um mínimo de violações ao cessar-fogo – o Hezbollah procura capitalizar os resultados de um confronto do qual se pode afirmar vencedor e não enjeita sequer as oportunas acções de propaganda junto das populações civis mais afectadas, a quem promete ajuda material e financeira para a normalização das suas actividades. Do outro lado da fronteira o governo israelita enfrenta as críticas da oposição pelo evidente fracasso da opção militar e reorienta a sua actividade militar sobre os territórios palestinianos (revelando de forma cada vez mais evidente a sua nula disposição ao diálogo) persistindo na realização de operações destinadas à eliminação física de militantes palestinianos (já abrangem mais que os militantes do Hamas) e que agora também já inclui a detenção de membros do governo e da assembleia palestiniana.
O clima que se vive no interior de Israel, de crítica ou defesa das opções do governo de Ehud Olmert, já começou a estender-se a outros países do ocidente, mostrando bem quanto a questão israelo-árabe ultrapassa em muito as simples fronteiras do Médio Oriente (ou não tivesse ela sido originada por um processo desastroso da gestão colonial britânica o Médio Oriente).
Evidências deste “conflito” entre defensores da acção militar e apologistas de soluções menos agressivas encontram-se até entre nós, com aqueles a funcionarem normalmente como correias de transmissão das teses há muito defendidas pelos sionistas judaicos e pelos extremistas neoconservadores americanos.
Durante a semana que agora terminou voltou Vasco Graça Moura a utilizar a sua crónica semanal no DIÁRIO DE NOTÍCIAS para propagandear estas posições extremistas, justificando-as com o que apresenta como «…o sinistro resultado que Israel colheria se embarcasse nas injunções tão penosamente cozinhadas da comunidade internacional. Até se sentir em segurança, Israel dirá "sim, mas" ao cessar-fogo e fará o que entende que deve fazer. Felizmente para os judeus e para o mundo civilizado. O quadro da sobrevivência de Israel passa pela criação de um conjunto de condições que respeitam ao mundo árabe, ao mundo islâmico em geral e às redes terroristas» e criticando tudo e todos que diz oporem-se-lhe, começando pela ONU que «…não presta para nada. Não evita conflitos, não evita guerras, não evita destruições, não evita catástrofes humanas (e decretou) …um cessar-fogo em que os beligerantes não têm o mesmo estatuto», continuando com o Hezbollah que «…é uma canalha assassina que não pode ser tomada a sério nem é fiável como interlocutor» e com o Líbano que «praticamente não existe como Estado. É um joguete de várias forças e não tem qualquer capacidade negocial. O seu exército nunca foi capaz de limpar o Sul do país, nem nos tempos da OLP nem nos do Hezbollah». Mistura tudo isto com a UNIFIL e os países europeus quando afirma que «Não se vislumbra que a tal força militar da ONU venha a ter uma composição satisfatória. Franceses, italianos e espanhóis, cuja participação nela se anuncia, acabarão a contribuir submissamente para o falhanço da missão: é o que pode esperar-se da mediocridade congénita e irremissível dos srs. Chirac e Villepin, da periclitante salada de esquerda do sr. Prodi e do progressismo alvar do sr. Zapatero» e espera ter demonstrado a indispensabilidade da violência porque o «…quadro da sobrevivência de Israel passa pela criação de um conjunto de condições que respeitam ao mundo árabe, ao mundo islâmico em geral e às redes terroristas. É inalcançável sem fortes dispositivos militares e sem parcerias em que o Ocidente intervenha decididamente…» para concluir beatificamente que «…para já, só os Estados Unidos e a Grã-Bretanha é que parecem ter compreendido todas as implicações civilizacionais e geostratégicas de uma questão cujos termos estão todos interligados, ao contrário do que pensam algumas almas ingénuas e do que afirma a esquerda pós-soviética» o que em última instância determinará que de forma altruística os «…israelitas não terão outro remédio senão neutralizar o potencial nuclear do Irão. Mas a União Europeia continua a contentar-se com as patéticas deslocações do sr. Solana por esse mundo fora e a achar que tantas andanças tão exemplarmente sem sentido correspondem ao papel mais eficaz que a História lhe reservou».
Em jeito de comentário e como proposta de informação alternativa aconselho a leitura de um artigo de Uri Avnery, que encontrei traduzido aqui, lugar onde também encontrei o artigo de José António Carvalho, publicado no Público de 18/08/2006, a que se refere o texto de Vasco Graça Moura.
Para evitar repetir-me nas críticas às formulações e opiniões de Vasco Graça Moura sobre a questão israelo-árabe (e sobre a recente invasão do Líbano), vou apenas referir dois dados que me parecem significativamente importantes: a publicação, na mesma data do seu artigo, de um relatório da AMNISTIA INTERNACIONAL e de um trabalho da BBC NEWS, no qual se estabelece um paralelismo dos efeitos e resultados da invasão israelita do Líbano.
Começando por este último, cuja versão original se encontra aqui, leia-se e compare-se:
(para ampliar o quadro clique uma vez com o botão esquerdo do rato e uma segunda vez para ampliar)
Para facilitar o trabalho das conclusões, recordo que Israel tem um PNB estimado em 163,45 mil milhões de US$ e uma população de 7,026 milhões (incluindo os colonatos na Cisjordânia), enquanto o Líbano apresenta um PNB estimado em 19,49 mil milhões de US$ e uma população de 3,874 milhões.
Analisando de forma abstracta os números constata-se que o meio milhão de deslocados israelitas motivados pelos bombardeamentos do Hezbollah representam apenas 7,12% da população, contra os quase 25% de libaneses forçados a abandonar as suas casas; os 159 israelitas mortos representam 0,0023% da população total de Israel enquanto os do Líbano já ascendem a 0,43% (20 vezes mais para uma população que representa pouco mais de 50% da de Israel). Estendendo esta análise ao tipo de baixas (militares e civis) constata-se que as baixas militares de Israel (116) representam 72,96% do total de mortos daquela nacionalidade, enquanto para o caso libanês representa apenas 31,79% (530 milícias do Hezbollah mortos); mais gritante é o facto das baixas civis no Líbano representarem 68,21% dos mortos daquela nacionalidade, enquanto os civis israelitas representam apenas 27% do total. Fica assim perfeitamente claro que se Israel não tomou como alvo preferencial as populações civis também não terá tomado as medidas mais eficazes para o evitar.
Observando a disparidade no volume e tipo dos estragos infligidos por ambas as partes torna-se perfeitamente claro que o exército israelita fez muito pouco para evitar as baixas civis (as tais que normalmente são referidas como danos colaterais) e pior, tudo tentou para incapacitar as infraestruturas mínimas para as populações civis, até porque só as mentalidades mais inconscientes podem entender que bombardeamentos a estações de tratamento de água e esgotos, instalações de produção e distribuição de electricidade e diques, constituam alvos militares e contribuam para evitar a fuga do grupo que capturou os dois soldados israelitas, cuja recuperação o governo israelitas usou como justificação para a invasão.
Esquecendo os dramas humanos, sempre associados a fenómenos como o da guerra, e analisando os custos desta acção militar o aparente equilíbrio expresso no trabalho da BBC que estima em 5,9 mil milhões de US$ os prejuízos de Israel e em 6,5 mil milhões de US$ os do Líbano, revela-se muito diferente quando se comparam estes valores com o PNB de cada um dos países. Assim, enquanto os prejuízos israelitas não representam mais de 5,9% do seu PNB, já os prejuízos libaneses representam 33,35% do respectivo PNB, com a agravante deste país se debater com a total destruição da sua principal indústria de exportação – o turismo.
Clarificada um pouco mais a realidade dos dois países é talvez a altura de analisarmos o conteúdo do relatório da Amnistia Internacional sobre o conflito no Líbano. Segundo este documento daquela ONG quer Israel quer o Hezbollah infringiram as leis humanitárias internacionais durante o conflito, tomando populações civis por alvo das suas acções militares. Contudo o relatório é particularmente claro quando atribui um maior grau de responsabilidade ao Tsahal (exército de Israel), não hesitando mesmo em mencionar a expressão “crimes de guerra” a propósito dos ataques israelitas a habitações, locais de armazenamento de água e combustíveis.
Na apresentação daquele relatório intitulado «Destruição deliberada ou “danos colaterais”? Ataques israelitas contra infraestruturas civis», Kate Gilmore, Secretária Geral Executiva da Amnesty International, afirmou que a «…asserção israelita de que ataques a infraestruturas eram legais está manifestamente errada. Muitas das violações identificadas no nosso relatório constituem crimes de guerra, incluindo os ataques indiscriminados e desproporcionados. As evidências manifestamente sugerem que a extensão destrutiva de unidades de produção eléctrica e de tratamento de águas, bem como da infraestrutura de transportes, vital para o abastecimento de géneros e outro auxílio humanitário, foi deliberada e parte integrante de uma estratégia militar.»
Contrariando o argumento israelita de que as suas acções apenas visavam o Hezbollah e que os danos nas infraestruturas civis eram fruto daquela organização utilizar as populações civis como “escudos humanos”, a mesma responsável afirmou que o «padrão, a finalidade e a dimensão dos ataques tornam o argumento israelita de que se trata de “danos colaterais”, simplesmente não credível» e concluiu defendendo que «as vítimas civis de ambos os lados deste conflito merecem justiça. A natureza grave das violações praticadas torna urgente uma investigação à conduta de ambas as partes. Tem que haver responsabilização para os perpetradores de crimes de guerra e indemnizações para as vítimas», algo que a generalidade dos cidadãos mundiais que se preocupem com princípios como a justiça e a equidade não pode deixar de subscrever.
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