quarta-feira, 22 de setembro de 2010

FANTASMAS ORÇAMENTAIS


O resultado do leilão, hoje realizado, de dívida pública portuguesa apresentou a esperada consonância com as operações congéneres espanhola e irlandesa que esta semana tiveram lugar e que no seu conjunto mereceram uma aceitação positiva (com a procura a exceder a oferta), mas com taxas cada vez mais elevadas.

Este resultado, tal como quase tudo o que nos últimos tempos tem acontecido em Portugal, será apreciado pelo governo de José Sócrates como um claro sinal positivo e pela oposição (com especial destaque para o partido da alternância) como um sinal negativo.

Ninguém poderá duvidar que é grave a situação do endividamento público em Portugal, nem que o governo em funções ou os seus antecessores pouco ou nada têm feito para a contrariar, começando pelo simples facto de que todos têm subordinado as suas intervenções aos interesses e aos calendários políticos das respectivas clientelas. Isto é tanto verdade quanto se constata que governo após governo se repetem as mesmas piedosas intenções e as mesmas práticas – privilegiando recurso ao aumento de impostos em detrimento de um controlo e/ou redução dos gastos – quando não a mesma incapacidade na abordagem da questão.

Que as economias mundiais se revelam cada vez frágeis e que as perspectivas de resolução da crise mundial se encontra ainda muito longe, parece deixar cada vez menos dúvidas, mas tudo isso não constitui senão uma pequena fracção do problema quando políticos e dirigentes parecem orientados por uma agenda completamente diferente.

A nível do grão de areia que representa a economia portuguesa no cômputo global, a questão do endividamento público é quase irrelevante, mas constitui uma clara evidência da incapacidade do modelo de endividamento global. Tal como as famílias foram progressivamente empurradas para o endividamento (como única via para o acesso a bens e serviços que os decrescentes salários não podiam assegurar), também as finanças públicas, privadas de maiores receitas por via de políticas fiscais que isentando empresas e fortunas beneficiaram a concentração da riqueza, sofreram o mesmo tipo de pressão, com os resultados conhecidos.

Curioso é vermos agora os mesmos políticos e economistas, que defenderam a realização de investimentos públicos espúrios (como os estádios de futebol e pontes de reduzida ou nula utilidade pública), fazerem coro pela necessidade de redução da despesa pública, como se na actual crise o essencial desta não consistisse num dos possíveis instrumentos para a redução das desigualdades e uma indispensável ferramenta para a dinamização do tal “mercado” de que sempre foram paladinos empenhados.

Haverá sinal mais claro da gravidade da situação que ouvir aqueles senhores clamar (de forma indirecta e capciosa, pois convém não esquecer a regra do politicamente correcto) contra mais um aumento de impostos? É que embora eles não o digam, o seu real receio é que não havendo já grande margem para aumento dos impostos sobre os trabalhadores por conta de outrém, o governo, agora apodado de despesista, se vire para os rendimentos do capital como última fonte de rendimento.

Constituindo o endividamento (do Estado e das famílias) uma das melhores formas de concentração da riqueza nas mãos de um grupo diminuto de poderosos, estranha-se que os políticos que sempre representaram tão bem os interesses daqueles pareçam subitamente tão preocupados como bem das multidões de deserdados, depois de nas últimas décadas terem defendido e aplicado uma política de esbulho do património público e em especial da sua componente produtiva. Privados das receitas das empresas públicas – oportunisticamente apontadas como ineficientes e fonte de despesa, mas que logo que oferecidas à iniciativa privada se revelaram grandes geradoras de lucros e dividendos – os Estados foram progressivamente manietados à dependência da dívida, a mesma que agora os sufoca e que deles exige a imposição de ainda maiores sacrifícios às populações.

A grande lição que já deveria ter sido extraída da crise que atravessamos é que ela está a abalar os próprios fundamentos de um modelo de desenvolvimento assente no enriquecimento de uma minoria a expensas da vasta maioria e que se quisermos ultrapassar as suas actuais limitações teremos que gizar um novo modelo de organização que, definitivamente, separe as esferas produtivas da financeira e limite esta ao realmente importante papel de canalização do aforro para o investimento.

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