quinta-feira, 25 de setembro de 2008

O COLAPSO DE WALL STREET (parte I)

Ninguém de boa-fé negará que vivemos tempos crescentemente complicados.

Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e do concomitante anúncio do fim da história[1], ampliado por um grupo de fanáticos crentes no “american way of life” e no absolutismo de um liberalismo económico levado ao absurdo, o Mundo assistiu ao 11 de Setembro de 2001 e às invasões americanas do Afeganistão e do Iraque (abrindo um conflito directo com o designado fundamentalismo islâmico). A esta agitação geo-estratégica e perante uma plêiade de governantes europeus cada vez mais convertidos às maravilhosas vantagens de uma globalização ao gosto norte-americano, seguiu-se em 2007 o eclodir de uma crise financeira originada no mercado imobiliário norte-americano, que assume já proporções incomensuravelmente maiores graças à alavancagem resultante do contágio pelos sofisticados produtos financeiros que Wall Street disseminou por todo o mundo.

Perante este cenário (descrito de forma muito rápida e sucinta) e quando se fazem ouvir as vozes mais díspares não posso deixar de trazer as mais recentes declarações do presidente da nossa república sobre os previsíveis efeitos da crise financeira sobre a economia nacional.

Com os pés bem assentes no epicentro do desastre, Cavaco Silva assegurou que a crise nos vai atingir, à semelhança do que acontecerá aos contribuintes norte-americanos[2] e que pretende aproveitar a sua presença em Nova York para “ouvir” o que pensa Wall Street.

Acrescentou ainda que tem alguma ideia do que originou a crise - reguladores, supervisores, bancos centrais, a invenção que se fez de produtos financeiros[3] - mas é preciso esperar para ver qual a reacção ao plano da administração de George W Bush.

Este tipo de análise e de comentários poderá “ficar bem” e até ser entendida num político qualquer, mas de um dos mais reputados economistas nacionais tem que se esperar mais e muito melhor. Não basta referir vagamente o efeito de contágio originado pelos veículos financeiros (leia-se produtos derivados e de securitização de créditos que englobando activos com níveis de risco muito díspar foram classificados pelas agências de “rating” como se de produtos de baixo risco se tratassem) e esperar ouvir dos responsáveis pela situação uma opinião abalizada para a resolver.

Assumir publicamente uma postura anódina é algo a que os políticos (de pacotilha) de quase todos os quadrantes (da direita à esquerda, nacionais e internacionais) nos têm habituado, mas agora o que importa é exigirmo-lhes respostas claras e que de forma rigorosa permitam aos eleitores determinar quais os que pretendem manter em vigor este modelo de desenvolvimento que está a conduzir a economia (e a esmagadora maioria das pessoas) para um precipício e os que, reconhecendo as origens do problema, se mostrem efectivamente empenhados na correcção dos erros e na construção de alternativas que impeçam a sua repetição.

É que apontar o dedo aos banqueiros (incluindo os todo-poderosos presidentes dos bancos centrais) e optar por lhes financiar a ganância e os erros, mediante o recurso a fundos públicos que são suportados pelo “bolso” dos contribuintes, sem a correcção das regras que conduziram à actual situação e continuando a incensar as virtualidades do “mercado” para corrigir os desvios, equivale a invocar a protecção divina em situações de catástrofe e a oferecer santuário aos prevaricadores. Exemplo disto mesmo foi a reacção dos mercados pós o anúncio do plano da administração Bush (plano Paulson), que sem qualquer justificação real registaram uma subida generalizada e espectacular das cotações numa única sessão, para na sessão seguinte voltarem à tendência de queda, único comportamento lógico face à actual conjuntura financeira e à total ausência de soluções à vista.

A tibieza dos políticos (ou o seu simples enfeudamento aos interesses do sector financeiro) tem-se revelado não só na forma como têm abordado – ou simplesmente fingido que não vêem – os problemas originados por uma crise que muitos especialistas comparam com a que ficou para a história como a Grande Depressão, mas também na forma como os diferentes responsáveis têm procurado eximir-se às responsabilidades que lhes cabem, de que pode servir de exemplo a recente notícia do LE MONDE que anuncia que está em curso uma investigação policial (pelo FBI) a eventuais práticas de falsa informação ao mercado e às autoridades de supervisão.

A extensão da crise é de tal magnitude que o director-geral do FMI, o francês Dominique Strauss-Khan[4], se lhe refere num artigo de opinião publicado no LE MONDE, como crise sistémica e apela ao desenho de uma solução global e à reformulação da regulamentação que rege os mercados de capitais. Não se tratando o autor de nenhum crítico do sistema económico liberal, a sua proposta é tanto mais relevante quanto aponta para a manifesta insuficiência das políticas até agora seguidas – constante injecção de liquidez no mercado interbancário e proposta de intervenção pública para a aquisição dos activos desvalorizados – e para a necessidade de uma intervenção mais profunda.

Como qualquer bom aluno, Strauss-Khan inibe-se de criticar quer o recurso às injecções de liquidez ou até o plano Paulson – que na essência não representam mais que um aval das práticas de especulação e de mistificação do risco que nos últimos anos se tornaram apanágio dos sistema financeiro – mas sempre vai apontando aquela que deve ser a preocupação principal de quem queira impedir a repetição dos erros.
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[1] Referência às teses de Francis Fukuyama que sustentam que com a queda do Muro de Berlim, o fim do conflito leste-oeste e a emersão dos EUA como potência hegemónica, a democracia liberal ocidental constitui o culminar da história da humanidade.
[2] Cavaco Silva estará a referir-se ao plano de salvamento proposto pelo secretário de estado do Tesouro dos EUA, Henri Paulson, que prevê um gasto de 700 mil milhões de dólares para sanear os balanços dos bancos
[3] A resposta foi publicada aqui, pelo DIÁRIO DE NOTÍCIAS, e aqui, pelo DIÁRIO ECONÓMICO.
[4] Político francês, de origem judaica, professor de economia, ex-ministro das finanças no governo do também socialista Lionel Jospin, foi candidato à nomeação pelo PS para concorrer ao Eliseu contra Laurent Fabius e Ségolène Royal. Com a vitória presidencial de Nicolas Sarkozy (que bateu a candidata socialista Ségolène Royal) Strauss-Khan viu-se recompensado com a nomeação para a direcção do FMI.

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