Neste último “post” sobre o tema IVG, retomo a questão com que terminei o anterior: porque não deixar à consciência de cada um a resposta à situação?
Será apenas sintoma de final de campanha continuarmos a assistir ao desfile de defensores da moral pública, que insistem em misturar argumentos de natureza religiosa com outros de natureza científica (mesmo quando carecem de aceitação da generalidade da comunidade médica, como é o caso do célebre “bater do coração”), além do recurso a argumentos de natureza económica?
É que se respeito e consigo entender quem defenda o princípio de que a gravidez não deve ser interrompida (seja invocando razões de natureza religiosa ou moral) e tem este princípio para seu uso pessoal, tenho extrema dificuldade em assistir a uma argumentação muito desfasada de uma realidade nacional onde impera a baixa qualidade de vida da maioria da população, onde as carências de ordem material, de saúde e de bem-estar estão à vista de todos (os que as queiram ver) e pior ainda assistir silenciosamente ao desfiar de argumentos que deveriam ter feito corar de vergonha os seus autores.
Neste capítulo merecem particular destaque os considerandos apresentados por César das Neves numa conferência de imprensa patrocinada pelos defensores do NÃO, durante a qual aquele reputado professor de economia e ex-conselheiro económico de primeiros-ministros, proferiu afirmações como a de que em países onde se aprovou a liberalização do aborto (Europa, Estados Unidos e Canadá) esta conduziu a um aumento generalizado do número de abortos com taxas de crescimento a triplicarem anualmente. Eu sei que o insigne professor estava a falar para uma plateia “popular”, mas de uma figura como seu estatuto exige-se um mínimo de responsabilidade (em especial quando se abordam matérias mais controversas) e que nunca esqueça que nem todos os receptores da informação estarão dispostos a aceitar a manutenção do primado do “magister dixit”; então o ilustre professor comete o erro básico (que seguramente nunca perdoará aos seus alunos) de misturar informação estatística com estimativas para calcular taxas de crescimento e que, para cúmulo, apresenta como dados irrefutáveis?
Se o aborto é algo que merecerá sempre a condenação moral do professor César das Neves, que dizer de práticas desta natureza?
E do recurso a outros sofismas económicos do tipo, quanto irá custar ao SNS a prática legalizada do aborto? Respondendo a esta questão já houve especialistas que avançaram com estimativas de 20 ou 30 de milhões de euros (notícia no PUBLICO), valores que sendo discutíveis na sua dimensão absoluta, são-no ainda mais por não contemplarem a poupança alcançada na minimização das intervenções originadas na prática de abortos clandestinos que, fruto do seu elevado risco, acabam nas urgências dos nossos hospitais (segundo dados da Direcção-Geral de Saúde, em 2004, foram mais de 11 mil)!
Porque é que ainda se ouve quem afirme que não querendo ver as mulheres condenadas pela prática de aborto, não pode de modo algum aceitar que este seja realizado a pedido da mulher?
Se a questão já não é o aborto em si mas o facto deste ser solicitado pela mulher (então por quem é que havia de ser), de pouco valerão argumentos como o de César das Neves in “O verdadeiro combate pela liberdade” – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, segundo o qual «...cada um tem liberdade de pensar o que quiser sobre o início da vida humana. Mas quando se fala da destruição dessa vida então essa, como todas as liberdades, tem de ser regulada e protegida.»
O que este conhecido “opinion maker” diz é que cada um tem a liberdade de pensar o que quiser sobre o início da vida humana, desde que como ele, pense que aquela se inicia no acto da fecundação.
Confirmando que invariavelmente este tipo de argumentos resulta de conceitos que radicam mais do proselitismo que do racionalismo, César das Neves conclui que para os defensores do SIM a grande questão não pode ser senão a liberdade sexual.
É óbvio que para quem se veja permanentemente cercado de “feministas” e “praticantes do amor livre” (abrenuncio... Jesus credo!) a questão da despenalização do aborto será algo equivalente ao fim do Mundo; mas será que para o professor César das Neves não haverá ainda uma outra inconfessável razão?
Não receará ele, mais que tudo o resto, que a aceitação do primado do livre arbítrio (entendendo-se este como a capacidade de cada ser humano determinar livremente o seu futuro e o da sua descendência) possa contribuir para a organização de uma sociedade mais justa, equilibrada e com critérios mais equitativos de distribuição da riqueza?
Talvez em última instância o que defensores de argumentos deste tipo contra a despenalização do aborto receiam, é o aumento do número de pessoas que tomem decisões pela sua própria cabeça. É que pouco será mais adverso aos conceitos do neoliberalismo económico (corrente onde se integra o professor César das Neves) que a existência de grandes massas de cidadãos questionando a adequabilidade e a inevitabilidade de políticas que apenas contribuem para o enriquecimento de uma minoria.
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